Três poemas de André Breton
Em meados de 83 do século transacto, Mário Cesariny sugeriu-me traduzisse alguns poemas do Autor de “Clair de Terre” para darmos a lume numa folha-volante do então criado “Bureau Surrealista Alentejo-Lisboa”.
Na minha resposta positiva o resultado foi este que agora aqui se deixa, cordialmente, aos leitores.
POEMA
1.
Tenho na minha frente a fada de sal
cuja túnica recamada de cordeiros
desce até ao mar
cujo véu pregueado
de queda em queda ilumina toda a montanha.
Ela brilha ao sol como um lustro de água iridiscente
e os pequenos oleiros da noite serviram-se das suas
unhas onde a lua não se reflecte
para moldar o barro do serviço de café da beladona.
O tempo enrodilha-se miraculosamente detrás dos seus
sapatos de estrelas de neve
ao longo dum rasto perdido nas carícias
de dois arminhos.
Os perigos anteriores foram ricamente repartidos
e mal extintos os carvões no abrunheiro bravo das sebes
pela serpente coral que sem custo passa
por um delgado
filete de sangue seco
na lareira profunda
sempre e sempre esplendidamente negra
Esta lareira onde aprendi a ver
e sobre a qual dança sem cessar
o crepe das costas das primaveras
Aquele que é necessário lançar muito alto para dourar
a mulher em cujos cabelos encontro
o sabor que perdera
O crepe mágico o sinete voador
do amor que é nosso.
2.
O marquês de Sade retornou ao interior do vulcão
em erupção
de onde tinha vindo
com as suas belas mãos de novo franjadas
os seus olhos de rapariga
e à superfície esta satisfação dum salve-se quem puder
que não foi senão dele
mas do salão fosforescente das luzes viscerais
não cessou de lançar as ordens misteriosas
abrindo uma brecha na noite moral
É por esta brecha que eu vejo
as grandes sombras estralejantes a velha crosta escavada
desfazerem-se
para me deixarem amar-te
como o primeiro homem amou a primeira mulher
em liberdade inteira
essa liberdade
pela qual o fogo se fez homem
pela qual o divino marquês desafiou os séculos as suas
grandes árvores distraídas
os acrobatas sinistros
presos ao fio da Virgem do desejo.
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SOMBRA DE PALHA
Dêem-me todas as jóias das afogadas
dois presépios
um cavalinho e uma agulha de chapeleira
em seguida desculpem-me
já que não tenho tempo de respirar
sou um acaso
a construção solar deteve-me aqui mesmo
e agora nada faço senão deixá-la morrer
procurem na tabela das contas atrasadas
a trote na mão fechada debaixo da minha cabeça tilintante
um copo no qual se abre um olho amarelo
abre também o sentimento
e no ar puro esvoaçam as princesas
tenho nisso muito orgulho
e ao mesmo tempo uma gotas de água insulsa
para refrescar o vaso das flores bolorentas
ao fundo da escada
o pensamento divino no azulejo estrelado do céu
a expressão das banhistas é a morte do lobo
tende-me por amiga
a amiga dos ardores e das raivas
que duas vezes vos olha
alisai a vossa plumagem diz ela
os meus remos de pau-santo fazem cantar vossos cabelos
um som claro abandonava a praia
negra da cólera dos seixos
vermelha do lado do horizonte como uma chapa incandescente.
in “Luz da Terra” – André Breton
Trad. NS
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Homenagem a Breton – ns
(Folha volante do Bureau Surrealista Alentejo-Lisboa, 1983)
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Nicolau Saião é poeta, pintor, publicista e actor/declamador, nasceu em Monforte do Alentejo em 1946. Vive em Portalegre, Portugal. Como pintor participou em mostras de Arte Postal em diversos países (Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Austrália, Mali…), além de ter exposto individual e colectivamente em diversas localidades (Paris, Lisboa, Porto, Elvas, Tiblissi, Portalegre, Messina, Borba, Campo Maior, Sevilha…). Organizou, com Mário Cesariny e Carlos Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”, patente no Teatro de Xabregas e na Soc. Nac. de Belas Artes ( tendo traduzido diversos autores incluídos no livro-catálogo) e, com João Garção, a mostra de mail-art “O futebol”.Está representado em diversas antologias de poesia e pintura. Traduziu “Os fungos de Yuggoth” de H. P. Lovecraft e “Vestígios” de Gérard Calandre, bem como poemas avulsos de Benjamin Péret, Derek Soames, Jules Morot, Emílio A. Westphalen, Jacques Tombelle, Edward Burton, Philipe Dennis, Juan Ramón Jimenez, Philip Jose Farmer, etc. Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes” (Editorial Caminho). Outros livros: “Flauta de Pan, “Os olhares perdidos, “Assembleia geral”, “Passagem de nível”, “Os labirintos do real“ – publicados. “Cantos do deserto”(poemas relacionados com o deserto de Tabernas, Espanha), “As vozes ausentes”(crónicas e textos diversos), “As estrelas sobre a casa”(teatro), “Em nós o céu”(novela policial). E-mail: nicolau19@yahoo.com
19 junho, 2022 as 13:58