Quatro poemas
POEMA CONFESSIONAL I
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Eu poderia ter dito apenas vermelho
uma carta
é o que menos se espera
ou o mapa da lua
aberto no escritório
enquanto mísseis voam sobre Gaza
teu corpo fragmentado
em um dois três cinco segundos
pedaços de carne
por toda parte
Eu poderia ter dito apenas vermelho
uma partitura
é algo inverossímil nesta era
algo como miríades
de corvos brancos
numa árvore aérea
estranho é o avesso de uma lagosta inócua
Eu poderia ter dito apenas vermelho
para a menina corcunda
que atravessa a rua
um ruído um eco
um latido
um som qualquer nesta Era de Kali
é algo ininteligível
disse para mim o miniaturista cego
tudo insanidade tudo insanidade
tudo insanity tudo locura
folie kiôki bezumiye
e a menina corcunda
joga pedrinhas no meio da calçada
dança sorri dança
sorri dança sorri
e depois
seu corpo nu estendido numa mesa
cirúrgica
enquanto mísseis voam sobre Gaza
flamingos
flertam com o apocalipse
2024
POEMA CONFESSIONAL II
Penso em teu sexo
em tua caveira aberta
repousada na mão esquerda
de um filósofo louco.
Penso em tuas pernas abertas
mais claras ou mais escuras
do que em todos os mundos possíveis.
Penso com o corpo, a mente
os testículos, o esqueleto
com meus olhos que crocitam como corvos.
O Homem Mais Velho do Mundo
encontrou-me numa ponte de pedra
e disse a mais terrível de todas as palavras:
AMOR.
Por que estas flores cobertas de sombras
e esquadros?
Por que estas flores cobertas de peles
de homens queimados?
Aqui nós estamos em um longo poço sem fundo
e apesar de tudo nós dançamos.
2024
POEMA CONFESSIONAL III
Eu morei muito tempo em uma casa estranha
em uma casa-coruja
em uma casa-caracol
em uma casa-ouriço-do-mar
situada a dois passos
do beco-do-nunca-visto
perto do boteco da caveira
onde os relógios são mudos.
Lá, onde os ventos sopram ao contrário
e as pedras podem ser palavras
que podem ser estrelas
que podem ser os gritos de um surdo.
No Salão da Afetividade
nesta casa-coruja
nesta casa-caracol
nesta casa-ouriço-do-mar
viveiros de orquídeas, azaleias, damas-da-noite
servem de cenário para o retrato
em que a mulher de pele dourada
exibe os seus três seios.
Em cada mamilo, um anel de prata.
Em seus tornozelos, correntinhas de prata.
Em seu umbigo, um anel de prata.
Senhora da prata
senhora de mim, senhora do alfenim.
No Salão da Invisibilidade
nesta casa-coruja
nesta casa-caracol
nesta casa-ouriço-do-mar
escrevi poemas para ninguém
escritos com a tinta de pequenas mortes
em páginas oceânicas de alumbramento.
Poemas com o aroma do sal marinho
e o sabor do mar noturno de uma praia de Salvador.
No Salão da Imparcialidade
nesta casa-coruja
nesta casa-caracol
nesta casa-ouriço-do-mar
ficaram as minhas coleções
de pensamentos rotos, adágios, provérbios,
sentenças de oradores romanos e mestres de sânscrito
que visitei nas horas de agonia em busca de algo
que me aliviasse da simples dor do existir.
Esta casa estranha em que morei e que ainda está em mim
essa casa-coruja
essa casa-caracol
essa casa-ouriço-do-mar
situa-se numa cidade sobreposta a outra cidade
que flutua no escuro de outra cidade
numa região inabitável onde talvez encontrareis meu nome
essa abstração em que disfarço talvez a mera inexistência.
2024
ELEGIA PARA UM LOBO
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O que posso dizer enquanto que
o lobo multiplicado
em lobos
ou aquele que nasceu embaixo
da árvore
e fala o idioma dos lobos
se talvez entretanto ou quase.
O que posso dizer enquanto que
o lobo é a árvore ou a raiz
do quando
e o homem que nasceu
embaixo da árvore
engole uma duas três quatro
cinco muitas moscas
— fio de cobre tenso é uma canção
disse para mim Chapeuzinho Vermelho.
O que posso dizer enquanto que
o mago branco
ou negro ou quase
brinca com as suas cobras
e o trágico microscopista
em seu desnorteio
esquece as cinco primeiras letras
do alfabeto?
O que posso dizer enquanto que
o mundo, esse lugar
faminto, infame, infausto,
lentamente se despedaça?
Flor de ameixa tua voz
meu amor com pele de búfala
e ternos escorpiões nas faces.
Pequenos ossos brancos
são o alimento da Morte.
2024
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Claudio Daniel é poeta, romancista, crítico literário e professor de literatura. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP). Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo e colunista da revista CULT. Atualmente, Claudio Daniel é editor da revista impressa GROU Cultura e Arte e ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética. Publicou diversos livros de poesia, ensaio e ficção, entre eles Cadernos bestiais: breviário da tragédia brasileira, Portão 7, Marabô Obatalá, Sete olhos & outros poemas e Dialeto açafrão (sob a lua de Gaza), todos de poesia, o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo e os romances Mojubá e A casa das encantadas.