Talvez o espanto de Wislawa


 

Num ato, uma caneca de porcelana abriga um poço. Em outro, dois corpos são um eclipse, “(…) e cobre/com a luz/do seu dia/a minha noite”. Camila Paixão olha para cima e inaugura uma cartografia íntima de um corpo poético que se contorce. Um buraco pode ser tanto intruso quanto escape: o intercâmbio entre fora e dentro se articula em simbioses – se entrar é inevitável, sair é urgente.

Somos convidados a olhar para o passado e experimentar memórias que denunciam: “os passos/eram falsos”. Sem a possibilidade de esquecimento, não há leveza no caminhar; o que há é peso, acúmulo e pressão. Em “deve ser um buraco no teto”, estamos diante de um corpo que fala – mãos, boca, olhos, língua e garganta se colocam em movimentos de intradiálogos, subindo, à superfície da pele, as profundezas da alma. Se Paul Valéry estava certo quando disse que “o mais profundo é a pele”, então “O corpo/é também/um caminho/a ser percorrido”. Para o sujeito lírico, a palavra é um músculo que tensiona.

Entre prelúdios, prólogos e epílogos, a perspectiva da subjetividade poética é a de ser forjada a partir de uma espiral de ausências, vazios e silêncios. Embora, para Camila, o livro seja um corpo habitado e exista o desejo de arremate, o que há, no fundo, é um buraco no teto.

 

Carol Sanches

 

 

***

 

 

Poemas do livro “deve ser um buraco no teto” (Laranja Original, 2022)

 

Entranhas

Não sei sobre o que
um poema deve ser.
Qual assunto é relevante
para as palavras?
Talvez o poema deva
conter o que a boca
por si só não sabe exprimir.
A boca quando abre
fala demais, fala por falar,
fala sem saber o que está
falando. Não sei qual o
objetivo do poema, nem a
metodologia utilizada pelas
palavras, mas o resultado
quase sempre é o mesmo:
o poema vomita o que o corpo
não consegue mais digerir.

 

Prólogo

O corpo
é também
um caminho
a ser percorrido.

 

Deve ser um buraco no teto
(Quarentena – novembro de 2020)

Talvez o espanto de Wislawa
já nos tenha escapado,
ou os nossos olhos,
espantados demais com o que enxergam,
não mais consigam ver.
Nove meses em casa
presa entre quatro paredes,
uma gravidez indesejada
gerada de vazios, rios, risos sombrios:
a luz no fim do túnel
me cega com sua imprevisibilidade,
deve ser um buraco no teto,
concreto furado de fora
para dentro: Wislawa é quem estava
certa, o espanto me escapa
e sou uma pessoa
completamente outra.

 

Língua

Minha língua
roça o céu da tua boca
e ainda assim
nenhuma palavra
te atinge.

 

A pergunta que não quer calar:

Podem os nossos dedos
tocar a textura da língua
quando as palavras roçam o dente
e tropeçam na boca?

 

Remoto

O falso controle
de ter o controle
me escapa pelas
mãos – quando penso
tê-lo contido, pisco e
ele escorre e percorre
os caminhos mais
obscuros do meu corpo:
eu, mulher,
eu, criança,
eu, menina,
encolhida
no colo do útero,
casulo minúsculo,
baixo,
bem lá embaixo,
vai se esgueirando
a criança que fui e
a mulher que ainda
quero ser, dar à luz,
ver nascer e
ter o controle
do falso controle
de ter o controle.

 

 

 

 




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