Circuitos de Solaris
Descontinuidade
O mundo está Vazio.
Não há ninguém ao lado, apenas botos, peixes,
cores com odor, pedras sem sabor.
Palhaços andam
E ocupam os espaços vazios foscos.
E não há quem veja a paisagem
Apenas névoas, manchas.
Aquele que se encosta na parede externa da casa
a aguardar alguma aparição sólida,
que fale, que fale.
Diante do muro, aqui, observo esta piscina
pela qual apreendo, aqui e acolá, um esboço distante dos elementos do mundo.
Invenção
Esconde-se nas palavras, não nos objetos,
nem nas casas, nem nos escritórios,
nem por detrás das roupas.
O esconderijo mais profundo não abriga as
roupas, sorrisos fartos, nem corpo robusto.
A linguagem como pele se costura e descostura entre, de um lado, o jardim de fora,
de outro, com as formigas que revolvem o solo.
Não se pode camuflar nestas paragens,
pois o que a palavra constrói não é matéria etérea, não é manifestação do fantástico,
mas pedra, solo, corpos vivos, presentes.
E a linguagem aponta ao fluxo, à vontade, trazendo o ritmo ao corpo.
Possibilidade de costura do corpo,
mas incluindo os seus intervalos Vazios.
E, quem sabe, neles, a linguagem se desdobre
e reinvente uma forma, aparentemente nova,
de se portar no mundo:
sem contenções e sem resistências.
Azul
O azul escorre entre a aparência das coisas:
Parte etérea, inconsistente.
Flutua nos interstícios,
nos casulos e esconderijos infindos.
A asa, se aberta, põe-se a planar
entre as descontinuidades do ar.
E tudo parece suspenso.
E não há quem saiba endereço de algum símbolo sequer.
O azul abriga seres de outros tempos.
Canta o insondável.
Pessoas tagarelas,
por vezes, se aproximam do Real,
como quem apronta a mala às pressas.
Animais rastejantes aquecem o frio.
Erguem paredes tortas.
Interrogam velhos senis.
O azul desabrocha –se no vento,
ao fazer voar Almas errantes.
Enciclopédias no Vazio.
Enciclopédias no Vazio.
Máquina
Portas e janelas de vidro
Ventanias do sul
Corredores frios
Pessoas se revezam ao dia.
Cavalos levam flores
Recolhem as pétalas da noite
Pequenos animais dormem sobre o orvalho
Caravanas de palhaços dão volta pela cidade.
Quem são os que recolhem as flores dos edifícios?
Animais escondidos dormem
E esquecidos tornam-se mais urgentes
aos vermes e meninas de hospitais.
Eles olham, nos acompanham,
mas não enxergam nada além de fantasmas
que andam apressadamente.
Conjecturam, mordem os lábios
Certezas no Vazio.
Percebem, fabulam,
mas apenas são peças,
peças na sua maquina de brincar.
Regaço turvo
Da boca escorre o limo, a água, a águia.
Os dedos desenham montanhas e lixos.
Os ouvidos não ouvem,
não reconhecem,
não discretizam símbolos.
Não há mais máquinas de brincar.
Esgotaram-se os métodos de construção,
de arquiteturas mudas.
Não há saber, nem código.
Na carência de tudo, esbarrei-me no caos,
no excesso do mundo.
Espaços vazios.
O que não pode ser dito.
O abstrato, o incomensurável.
A bicicleta no céu.
O fantástico.
A Realidade sutil, o ininteligível.
O sopro, o ímpar, a incongruência.
Não. Não vamos chegar.
Não, não vou chegar ao final.
Não há porta, não há janela.
Não há nada.
E quem dirá: ainda há estrelas para nos guiar?
Não se apresse, escute.
Não fale, deite-se.
Hesite, não confie.
O infinito, a curva:
o desespero de não saber.
O animal e o regaço turvo.
As trombetas tocam
As trombetas tocam de dia.
O lobo rastejando nos pântanos.
Azuis anis cobertos de gelo colorido.
O fogo das mentes cheira às vozes mortas.
As trombetas tocam de dia.
Dormem sob o mar.
Reiniciam computadores mortos e navalhas frias.
Sorriem dos mortos.
As trombetas tocam de dia,
a esperar a lua contornar o círculo das mentes,
dos náufragos, dos anjos sem visão, dos colecionadores de nada.
Da lama que inunda o dia.
As trombetas tocam, tocam.
E o Ser gira no vazio, despedaça-se em flores frias
e colhe os mortos de dia.
E não há noite nem dia – só Vazio.
.
.
Rosana Batista Almeida é engenheira civil e nasceu em Salvador, na Bahia. Publicou em antologias e revistas literárias, como Marinatambalo, Mallamargens, Quatetê e Acrobata. Foi classificada em Concurso Literário da Universidade Federal de Goiás/Campos Catalão, com o poema intitulado Elo. Em 2018, publica, pela editora Pragmatha, o seu primeiro livro de poemas intitulado Circuitos de Solaris, com desenho da capa do artista Dilermando de Castro Lemos Costa e orelha da profa. Vera Maria Tietzmann Silva. E-mail: rsnalmeida@yahoo.com
Comente o texto