Outras (poesias) urbanas
Outras (poesias) urbanas & outras (lendas) urbanas na nova obra de Jorge Ventura
“Outras Urbanas” (Ventura Editora, 2023) é o mais novo livro de poemas do poeta e editor, jornalista e ator Jorge Ventura. Trata-se de sua décima obra.
O título foi extraído do poema “Urbi et Orbi”, presente na 4ª parte da nova obra – “Caos”. Lê-se o trecho: “são ruínas aqui como em outras urbanas / cidades não têm culpa do que os homens fazem”. As outras três partes são “Gentes”, “Bichos” e “Ruas”, nessa ordem.
Senhor da palavra, o artista se apossa do texto poético e encara os aspectos verbais e não verbais do signo, fundindo verso e imagem, explorando ritmos e sonoridades. Ao mesmo tempo, ele imprime à obra um apelo social, uma urgência em resgatar (e instaurar) a normalidade tão desejada, visando, assim, à passagem do caos ao cosmo. Se é que isso seja possível a essa altura dos acontecimentos.
A seção “Gentes” é aberta com o poema “Crueza”, que anuncia o que virá pela frente – uma série de textos com a desenvoltura técnica e temática de que as pessoas, com seu jeito de ser e estar no espaço urbano, são protagonistas.
Citem-se os poemas “Culpa”, “Delinquência”, “Marginal”, “Romance Urbano”, “Droga”, “Feminicídio”, “Vulnerabilidade”, “Expatriado” e “Andar, Andar”. Enfim, títulos que compõem um vocabulário bem conhecido e que abarcam a violência urbana de que todos, querendo ou não, participam. Seja nas grandes, médias ou pequenas cidades.
“Crueza” retrata muito bem – através de redondilhas menores e tom pessimista impressos no espaço negro (não branco) da página – as impressões que o artista tem de si e do mundo à sua volta: caos pessoal versus distopia social.
Lê-se no poema em questão: “à sorte me atrevo / só creio em meus atos”. O poeta dispara: “vejo o que não devo / o osso em vez da carne”.
Na seção “Bichos” o leitor é presenteado, logo na abertura, com as redondilhas maiores do poemíssimo “Dúvida”: “Abro a caixa de Pandora / Sob o luar sedutor / Que selva aguarda lá fora? / Serei caça ou caçador?”
A seguir, somos envolvidos numa verdadeira (sic) fábula cujo melhor representante não poderia ser outro senão o bicho homem que, cheio de arrogância, continua achando que sabe que sabe das coisas…
O destaque vai para “Zoo 1” e “Zoo 2”, textos povoados por bichos feitos mais de metáforas do que de realidades. No primeiro, o poeta enumera os animais do marketing estampados nas latas, produtos, slogans e logos tão comuns numa selva de pedra como o Rio de Janeiro, mas que poderia ser qualquer outra metrópole brasileira. O poema acaba em chave de ouro, ou melhor, em advertência do Ministério do Marketing: “Cuidado, homem, o rifle da mídia costuma acerta o seu público-alvo”!
No segundo poema, o bicho-poeta recupera algumas metáforas cotidianas que, de tão repetidas, já se tornaram piadas ou expressões assimiladas pela repetição. Ele se diverte: “Não suporto selvagens / nem aceito crocodilagem”.
Outros poemas – como “Capital Selvagem”, “Gatuna”, “Felina”, “Último Uivo” e “Engasgo” – garantem o alto nível da seção pet. Inclusive com boas doses de lirismo e nenhuma referência – que peninha! – aos bichos do Barão Drummond.
O texto “Engasgo” – pelo requinte estilístico, jogo metafórico e tensão simbólica instaurados – merece uma análise à parte. Eis que o poeta, em visita à feira livre, se vê cara a cara com um peixe morto à venda numa barraca. Eles se entreolham, como se fosse um amor à primeira vista. Em seguida, um espanto, um desconforto e um pedido de socorro se instauram instantaneamente. O envolvimento é tamanho que o eu lírico já desconfia de que aqueles olhos ainda detêm a vida e que, na verdade, suplicam por um salvador. Passado o entrevero, o poeta volta à realidade: “essa espinha – até hoje – / me atravessa a garganta”.
A seção “Ruas” começa com um “Maniqueísmo” de boas-vindas: “O que dá mais prazer entre Deus e Satã? / Os infernos da noite… Os céus da manhã…”
Pessoalmente, não tenho a resposta e tampouco saberia escolher, de pronto, entre céu e inferno. Talvez ficasse com os dois, mas não seria maniqueísmo nem dualismo psicopoético! Certo é que um poeta não menos sagaz já sacou que “Deus escreve certo por ruas tortas”.
Essa 3ª parte – um flâneur mais atento vai notar isso – apresenta uma série de poemas que dialogam com a pandemia da Covid-19 e, também, com a morte – física ou metafísica –, da qual nenhum cidadão consegue escapar. A propósito, leem-se “Lockdown”, “Memento Pandêmico” (um grito em prol da utilidade poética), “Praça Seca”, “Cemitério Municipal”, “Réquiem para uma flor” (à moda drummondiana), “Mártir”, “De todos os jogos o jogo” (gostaria de me deter nesse espetáculo/tragédia) e “Desorigem”, que li e comentei nas redes socais, enaltecendo o talento minimalista do autor.
Antes de entrar na 4ª e última seção de “Outras Urbanas”, precisamos nos valer da música: as quatro partes ou seções da nova obra de JV se nos apresentam como movimentos de uma peça sinfônica (“As Quatro Estações”, de Antonio Vivaldi, por exemplo), cujo 1º movimento mais rápido é seguido por um 2º movimento mais suave. O mesmo se dá com o 3º e 4º movimentos, que se repetem alto e baixo som, respectivamente.
Também verificamos quatro movimentos na obra em questão, em que o primeiro é sucedido pelo segundo, assim sucessivamente. No entanto, em vez do andamento alto/baixo, aqui temos uma espécie de “crescendo”, em que o 1º movimento alcança o 2º movimento, que atinge o 3º movimento, que finalmente chega ao 4º movimento. Mas isso se dá de maneira gradativa, em que a intensidade poética ganha qualidade técnica (forma e fundo) à medida que se verifica a passagem de uma seção para a seguinte. Essa é uma constatação minha pura e simplesmente.
Por fim, chegamos à seção caótica, em que poesia e prosa se con-fundem, gerando uma prosa poética (os leitores mais experimentados vão lembrar “Le Spleen de Paris”, de Charles Baudelaire, e/ou “Spleen de BH”, de Leonardo de Magalhaens). Mas se trata de um caos urbano e, portanto, humano e histórico. A mesmíssima Cidade Maravilhosa de hoje foi, no início do século XX, apelidada de Cemitério de Europeu – de tanto malcheirosa, caótica e contaminante que era.
“Caos” se inicia com a pequena obra-prima “Ovulação” (haicai), que é seguida do ótimo “Urbi et Orbi”, do qual foi retirado o título da obra. A seguir, temos “Para amar e morrer”, “Tempos inexatos”, “Vampiros Urbanos”, “A Chuva”, “Parque Industrial” (abaixo o consumismo!), “Semáforo”, “Segunda-Feira” e “Sempre Assim”. Ainda que não abram mão do rigor formal, esses textos são marcados pela discursividade, informalidade e espontaneidade próprias da prosa e, portanto, conseguem dialogar mais e melhor com os leitores. Mas sem prescindir da poeticidade que, o tempo todo, se mantém presente ou em estado de potência.
Haja fôlego para vivenciar tanta emoção proporcionada pela leitura de “Outras Urbanas”, que brinda seus leitores com o rigor técnico de um mestre da palavra e a riqueza temática de um cidadão do mundo antenado com os eventos atuais. Sem esquecer o projeto gráfico-visual de encher os olhos.
Comedido metaforicamente, equilibrado formalmente e plural humanisticamente, o autor nos envolve com sua poesia que, depois, só nos restará torcer para que caos se transforme em cosmo e a desordem dê lugar à ordem. Quanto às outras (lendas) urbanas, com a palavra Jorge Ventura!
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Almir Zarfeg é poeta, jornalista e ficcionista. Autor de mais de vinte livros abrangendo os mais diversos gêneros textuais: poema, crônica, conto, novela, romance, infantojuvenil e reportagem. Participa de inúmeras instituições literárias dentro e fora do país. Iniciou-se na literatura em 1991 com o livro de poemas “Água Preta”, atualmente na 5ª edição. Nos 30 anos de sua trajetória literária, celebrados em 2021, ganhou a biografia “Geração AZ”, assinada pelo jornalista Edelvânio Pinheiro. Premiado e celebrado, seu nome virou verbete de dicionários e enciclopédias de literatura, como o “Dicionário de Escritores Contemporâneos da Bahia” e a “Enciclopédia de Artistas Contemporâneos Lusófonos”. Em 2017, recebeu o título de “Personalidade de Importância Cultural” da