O leitor pelo avesso
O leitor pelo avesso – Anotações de leitura
Um dos grandes méritos da literatura é nos oferecer a possibilidade de experimentar outras vidas através dos personagens. É pela aproximação das suas dores que saímos da experiência da leitura capazes de olhar generosamente para outros percursos, algumas vezes, distintos do nosso. A literatura, portanto, nem sempre pode nos proporcionar um lugar de fala, mas certamente nos sensibiliza para assumir o lugar de observação, de escuta e de alteridade.
Nos últimos anos, a ficção brasileira tem experimentado novos pontos de vista e dado voz àqueles que no dia a dia nem sempre conseguem expressar sua voz. Em O avesso da pele, vencedor do prêmio Jabuti 2021, na categoria Romance Literário, Jeferson Tenório, por meio de uma linguagem simples, permite ao leitor o contato íntimo com as consequências diretas e indiretas do racismo estrutural.
Tenório nasceu no Rio de Janeiro em 1977, mas se radicou em Porto Alegre. É professor de língua e literatura no ensino público de Porto Alegre e atualmente se divide entre a literatura, o ensino e a pesquisa. Sua estreia na literatura foi em 2013 com o romance O beijo na parede e é também autor de Estela sem Deus, de 2018. O avesso da pele, publicado em 2020, é seu mais recente livro.
A história de Henrique é narrada de forma sensível por seu filho Pedro, num processo de resgate da figura do pai, um professor do ensino público, cuja trajetória foi atravessada pelo preconceito racial, numa cidade branca como Porto Alegre. Um professor que não idealizou ser herói, mas acreditava que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. Um pai que ensinou a seu filho que não era a pele quem deveria defini-lo, mas sim o seu avesso:
é necessário preservar o seu avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos.
Espaços ocupados pela família, escola e polícia, instituições que deveriam estar a serviço da construção, integração, bem-estar social e proteção dos sujeitos — cada qual com seu respectivo papel — aparecem na narrativa como reprodutores de violência: a casa, a creche e a sala de aula, as ruas e os demais espaços públicos.
Muitos são os assuntos pulsantes misturados no livro, como a busca de identidade, o racismo estrutural, as complexas relações familiares, um sistema educacional falido, dramas particulares e sociais, todos organizados numa estrutura narrativa concisa e fluida. O Avesso da Pele é uma obra contundente que realmente consagra Jeferson Tenório como uma grande voz da literatura brasileira contemporânea.
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Rita Morais nasceu no Ceará, mas migrou para São Paulo aos 8 meses de idade. Por isso, considera-se paulistana, com todas as dores e delícias desta condição. É bacharel e licenciada em Língua e Literatura portuguesas pela PUC/SP e Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Mackenzie. Atualmente dedica-se à revisão de textos e ao ensino de gramática e redação. E-mail: rmfmorais@hotmail.com
27 março, 2022 as 14:30
27 março, 2022 as 15:00
28 março, 2022 as 18:22