O Palhaço Degolado


Nascido no Recife em 1942, Jomard Muniz de Brito construiu uma trajetória marcada por inquietações estéticas, experimentações poéticas e engajamento político. Poeta, performer, tipógrafo e artista gráfico, sua produção escapa a classificações rígidas e permanece como um dos testemunhos mais potentes da cultura marginal e da contracultura no Nordeste brasileiro. Sua vida e obra estiveram profundamente entrelaçadas aos movimentos artísticos e políticos que agitavam o país, especialmente à cena alternativa que se desenvolvia à margem das instituições culturais tradicionais — nos becos, nas salas de exibição improvisadas e nos palcos da resistência recifense.

Jomard foi um dos pioneiros da poesia visual no Brasil, manipulando com engenho a linguagem gráfica e a tipografia como suporte poético, antecipando, com ousadia, formas de expressão que só mais tarde viriam a ser reconhecidas por parte da crítica. Sua obra inscreve-se no que podemos chamar de “poesia de invenção”, dialogando de forma autônoma e irreverente com figuras representantes das vanguardas concretas e neoconcretas — embora nunca tenha se filiado formalmente a esses movimentos.

A complexidade de sua poética está também em seu posicionamento crítico diante dos dilemas da arte nordestina de seu tempo. Por um lado, Jomard valorizou os traços culturais de sua região; por outro, rejeitou os estigmas do regionalismo exótico e do folclore domesticado. Criou uma linguagem híbrida, cosmopolita e mordaz, que transitou entre o erudito e o popular, entre o riso e o abismo, entre o gesto gráfico e o silêncio poético.

É nesse contexto que se insere o livro “O Palhaço Degolado”, do professor e escritor piauiense Aristides Oliveira, que realiza uma leitura sensível da trajetória e da obra fílmica de Jomard, fruto de pesquisa acadêmica. O título da obra faz referência direta a um curta-metragem de ficção de 13 minutos realizado por  Jomard em Recife, entre 1976 e 1977, no qual ele mesmo se apresenta vestido de palhaço. A figura cômica e grotesca serve como instrumento de subversão simbólica: nela, o artista encarna uma crítica feroz às figuras consagradas da intelectualidade local, como Gilberto Freyre e Ariano Suassuna, e tensiona os limites das vanguardas artísticas e das construções da ideia de brasilidade.

……………….Fonte: “O Palhaço Degolado”, Jomard Muniz de Britto.

[https://assistebrasil.com.br/espelhos/o-famigerado-pernambucano-jomard-muniz-de-britto/]

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Aristides Oliveira estrutura sua análise em quatro capítulos — denominados “entradas”, como se o leitor fosse conduzido a um espetáculo em atos — e nos oferece, com precisão, um percurso interpretativo que articula estética, política e memória.

A primeira entrada contextualiza a produção cinematográfica brasileira nos anos 1960 e 1970, abordando o fortalecimento do parque industrial do cinema nacional, os mecanismos de censura do regime militar e o surgimento do Super-8 como prática de resistência. Nesse ambiente de repressão e invenção, surge a obra fílmica de Jomard, que, longe de se ajustar aos circuitos institucionais, constrói seu cinema nas margens, com poucos recursos e muitos riscos.

Na segunda entrada, o autor se dedica à análise interna do filme “O Palhaço Degolado”, evidenciando sua força crítica e seu teor provocativo. É nesse momento que emerge o deboche como linguagem: Jomard se utiliza da performance como arma simbólica para questionar, ironizar e ridicularizar os discursos hegemônicos (bem ao tempero tropicalista), sobretudo aqueles articulados em torno de uma ideia de cultura “oficial” ou “legítima”.

A terceira entrada amplia o escopo da análise para discutir os usos do conceito de brasilidade no interior do projeto nacional e cultural do Estado brasileiro. Oliveira examina como Jomard tensiona esses discursos, tanto ao criticar o pensamento de Gilberto Freyre quanto ao deslocar o debate para a cultura popular dos anos 1970, em confronto com movimentos como o Armorial, que, embora inovadores, também buscavam fixar uma certa ideia de “alma nordestina”.

Por fim, na quarta entrada, Aristides mergulha nas relações entre a produção fílmica de Jomard e sua própria biografia intelectual, situando sua obra no bojo de um tropicalismo pernambucano, que, embora menos difundido do que o tropicalismo baiano, revela-se igualmente radical em suas propostas de mistura, desvio e invenção. Através dessa aproximação entre vida e obra, o autor nos revela as camadas mais íntimas de um artista que viveu e produziu em constante atrito com seu tempo.

Apesar de sua relevância, Jomard Muniz de Brito segue como figura periférica nas narrativas oficiais da literatura e do cinema brasileiro. Produziu à margem — e é talvez justamente essa marginalidade que hoje nos permite revisitá-lo com mais liberdade, atentos à força de sua irreverência e à densidade crítica de sua criação. Sua poesia, atravessada por colagens visuais, gestos performáticos e rupturas formais, é também o retrato de um país em conflito, onde o riso é forma de insubordinação e o palhaço (“aquele bobo da corte que não é levado à sério, mas sabe de tudo”), símbolo de um saber que não se rende.

“O Palhaço Degolado”, de Aristides Oliveira, é mais que uma biografia crítica: é um gesto de escuta e resgate, que devolve a Jomard Muniz de Brito o lugar que sua obra sempre reivindicou — o das vozes que resistem, criam e incomodam.

 

 

 

 

 

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Patrícia Marcondes de Barros é doutora em história (Unesp) e em Estudos Literários (UEL), profa. do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. Pesquisadora da literatura marginal e da contracultura brasileira.




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