A poética da delicadeza
A poética da delicadeza presente no livro “Carta-poema”, de Cynara Novaes
Gostaríamos de propor uma leitura fechada – ou “close reading”, como diziam os novos críticos em meados do século XX – do livro “Carta-poema”, de Cynara Novaes, publicado originalmente em 2015 pela Opção Editora.
Ao optar por esta maneira ultrapassada de encarar o fenômeno literário e criativo, vamos nos concentrar tão somente na obra literária, enquanto tal, levando em conta elementos internos como eu lírico, linguagem comum versus linguagem literária, denotação versus conotação, forma e conteúdo, o jogo sinestésico e/ou metafórico, etc.
Encarar o texto por esse viés implica, portanto, desconsiderar a intenção autoral e, também, ignorar a reação dos leitores a qualquer um dos 146 poemas que compõem a obra em questão. Afinal, não nos interessa aqui o ponto de vista da autora e/ou dos seus leitores. De resto, a opinião deles não passaria de uma grande falácia!
Cynara se inscreve no rol dos poetas que elegeram a simplicidade temática e/ou estilística – e não a sofisticação presunçosa – para trabalhar seus poemas. Com seu jeitinho – aparentemente despretensioso de poetar – ela procura extrair das coisas pequenas e corriqueiras o que têm de mágico e belo, esquecido ou desaprendido pelas pessoas que quase sempre preferem a superfície à profundeza. Enfim, detalhes que só uma artista sensível e observadora pode explicitar para o público.
Mantidas as devidas proporções, Cynara se aproximaria do poeta das miudezas, Manoel de Barros, e da poeta das vivências, Adélia Prado, só para ficar nesses dois exemplos. Aqui, no extremo sul da Bahia, ela é precursora e contemporânea de poetas já publicadas em livro, como Cássia Oz (“Via vida”), Arolda Maria Figuerêdo (“Uma pitada de poesia de mulher”) e Eliza Metzker (“Sobre(vivências)”), mas cuja produção chamou para si uma abordagem mais singela e menos eloquente, ainda que não menos original e relevante.
Pois bem, essa simplicidade (não confundam com facilidade) pode ser identificada praticamente em todos os poemas de “Carta-poema”, conforme verificamos e experimentamos. Simplicidade que se nos apresenta explicitamente, quer nos títulos dos textos ou mesmo nas escolhas lexicais; ou implicitamente, quer no emprego de figuras de pensamento, como a metáfora, quer no jogo de palavras que repercute nas linhas e entrelinhas, nos versos e estrofes, imprimindo ritmo e sentido à unidade orgânica textual. “Moro nas coisas pequenas”, informa a autora no poema “Endereço”.
O estilo Cynara de poetar pode ser identificado aqui e acolá, seja nos gestos e intenções – que são compartilhados; seja nos segredos bem guardados ou nos arremates cuja chave de ouro permanece à disposição nos textos da poeta/pedagoga.
Existirá coisa mais íntima e reveladora do que certas palavras – sobretudo em sua forma diminutiva – compartilhadas através da leitura ou assopradas no ouvido ou mesmo suscitadas pelo olhar? Poeminha, fragilidade, aceno, esconderijo, acalanto, cadência, casinha, cuidado, bonitinho, vislumbre, delicadeza…
Muito mais do que carregar significante e significado (sorry, Saussure), as palavras aparecem grávidas de sentidos, segredos e sentimentos; doidas para dizer, informar, emocionar, gritar; se impor ou sair pela tangente, a sós ou em bando; uníssimas ou em coro, corajosas ou covardes. Bem-intencionadas ou cheias de segundas intenções. Nuas ou bem vestidas, silenciosas ou barulhentas, gastas ou recém-inauguradas, são sempre perigosas (oui, Derrida)!
Essa simplicidade por vezes aparece travestida de ternura e singeleza; solidão e ausência; memória e reminiscência; poesia e metapoesia; amor e amaro; e, por vezes, prenhe de gentileza e delicadeza!
Aliás, essa delicadeza – realizada sintaticamente na forma de substantivo, adjetivo ou locução – constitui presença constante em “Carta-poema”, podendo ser apontada graficamente e, mais ainda, usufruída semanticamente, pois forma e fundo se con/fundem com a simplicidade onipresente no livro analisado.
Nós nos demos ao bel-prazer de enumerar todas as delicadezas explicitadas no livro. Elas se repetem em 14 oportunidades com algumas variações de gênero e número, inclusive como parte integrante do título “Esparadrapos e delicadezas”, na página 31. (Título, aliás, que traz em seu bojo um belo e terrível paradoxo.)
“Nada tão complicado para o amanhã:
Chinelo para ficar em casa,
Café no copo, panela velho no fogo,
Flor aparecendo na janela.
E para o coração: esparadrapos e delicadezas.”
Realmente, a delicadeza é um capítulo à parte, digamos assim, no fazer poético de Cynara Novaes. No fundo, mistura-se com a temática da obra que, como já destacamos, perpassa/abarca a simplicidade das coisas – pequenas em extensão e enormes em importância. Na forma, determina a escolha dos termos apropriados, versos e estrofes, aparelhos linguísticos, a fim de conciliar complexidade e ordem no texto literário.
Mapeamos as aventuras de Dona Delicadeza em “Carta-poema”:
No poema “Saudade” (pág. 12), ela aparece como residência: “… e morou por fim na delicadeza”.
No texto “Guardados” (pág. 13), define os segredos do eu lírico como “preciosos e delicados”.
No poema “Por desejo” (pág. 23), a autora “clama a delicadeza pela mão”.
No texto “Nado” (pág. 32), o eu lírico – transformado em rio – se vê “tão longe das delicadezas pelas quais sempre vivi”.
No poema “Assim, suave” (pág. 37), o eu lírico deseja as “delicadezas dando sementes”.
No texto “Casinha” (pág. 44) há um canto especial da casa em que é impossível achar (o que os outros cantos não guardaram) isto: “As palavras, seu açúcar, delicadeza. / As palavras, seu amargor, aspereza”.
No poema “Crochê” (pág. 52) o eu lírico deseja ardentemente: “O silêncio da palavra proferida / Para que se possa ouvir a delicadeza da escrita”.
No texto “Renda” (pág. 64) a poeta, em seu lar doce lar, observa: “Os guardados, os lençóis / E seus delicados bordados”.
No poema “Vestido” (pág. 96) o eu lírico se encanta “com um tecido de delicadeza ímpar”.
No texto “Companhia” (pág. 127) “a palavra é uma senhora de modos finos / e extrema delicadeza”.
Por fim, no poema “Cotidiano” (pág. 155), no calor da tarde, a poeta “tece amor com meadas de delicadezas”.
Como se depreende dos trechos reproduzidos acima, “delicadeza” – seja como nome ou atributo – é utilizada por Cynara Novaes com extrema habilidade poética, quase sempre explorando o lado conotativo e, portanto, criativo da palavra. Enfim, ela instaura a invenção meta-linguística.
O emprego das figuras de linguagem, como a metáfora e o paradoxo, aparece de maneira recorrente. Para os teóricos da nova crítica, a presença desses recursos expressivos assegura a literariedade do texto, não permitindo a confusão entre as linguagens conotativa e denotativa.
Em “Carta-poema”, portanto, as delicadezas comparecem em pé de igualdade com as coisas pequenas e as causas notáveis. E isso significa muito, especialmente porque estamos falando de uma autora que mora no princípio da delicadeza, “onde o traço do sentir se inicia”. Autora, aliás, que possui nome e sobrenome in-discretos: Eu Lírico! (risos)
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Almir Zarfeg é poeta e jornalista baiano. Preside a Academia Teixeirense de Letras (ATL). Iniciou-se na literatura em 1991 com “Água Preta”. Os dois poemas acima vão estar na 5ª edição do livro, a sair em 2021, nos 30 anos da obra. Ele é autor também de obras em prosa como “A goleada & outras contrapartidas” (JustiFiction! Edition, 2018). E-mail: azarfeg@yahoo.com.br

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