O reality de todos os tempos


O REALITY DE TODOS OS TEMPOS
Sobre o livro Casa dos poetas, de Leonardo Antunes

Corajoso, esse Leonardo Antunes. Embora navegue persistentemente pelas águas seguras (ainda que sempre desafiadoras) da tradução de clássicos gregos – traduziu, entre outras obras, a Ilíada de Homero e a peça Édipo Tirano, de Sófocles –, arrisca-se a desviar o curso de sua nau e, valendo-se de seu fértil convívio com a poética antiga, enfrenta o estreito entre as atuais Cila e Caribdes das polarizações e o “sem-saída” do que pode ser visto como o “lugar-nenhum” da criação em nossos dias.

Talvez esse apregoado lugar-nenhum venha a adquirir sua identidade em algum momento da história vindoura, exatamente por obras como esta recém-lançada Casa dos poetas, de Leonardo. Ele nos entrega uma peça cuja brevidade corresponde à das obras do teatro grego e, ao mesmo tempo, responde à impaciência de nosso tempo: uma comédia que parece abarcar com facilidade, concisamente, o complexo – e trágico – mundo de crise em que vivemos.

Numa era em que se mostram desgastados preceitos como os de originalidade e ruptura, um recurso usado desde a antiguidade – mas com frequência identificado como marca da modernidade e do contexto contemporâneo – que se adequa particularmente ao nosso horizonte de criação é o da criação associada à intertextualidade (presente na antiga prática da emulação), seja ela parafrástica ou paródica. Valendo-se de referências, citações, alusões e transformações textuais, os diversos modos de reescritura podem emprestar vento às velas e pôr a navegar os barcos da poética coetânea: Casa dos poetas se faz motivada pela comédia Rãs, de Aristófanes (c. 447 a.C. – c. 385 a.C.), convocando-se o mesmo deus Dioniso, presente na peça grega, a escolher o melhor entre poetas que competem num reality show produzido virtualmente, em tempos pandêmicos. Desloca-se, portanto, o contexto da obra grega para agora, mantendo-se o papel do deus em Rãs e seu espírito irrefreado, que ataca o autor logo no início: “[…] um sujeito / capaz de toda sorte de perversidades, / […] que não poderia construir sequer / um verso só que fosse sem colar de alguém”…

A versatilidade do poeta e emulador Leonardo – à brasileira, um “herói sem caráter”, ou um factótum em que se transforma o polýtropos no mundo desencantado – já se exibira na também surpreendente tragédia Lícidas, publicada em 2019. Sobre as incursões dramáticas do autor, Adriane Duarte faz uma perfeita síntese em seu prefácio a Casa de poetas: “Leonardo Antunes, que já havia recorrido à tragédia para expressar o fenômeno da polarização e o discurso de ódio que tomaram conta da sociedade brasileira (e planetária) no recente Lícidas, recorre agora à comédia para criticar os excessos da guerra cultural e das políticas identitárias”. Pois é: trata-se mesmo de um ato de coragem meter a mão no ensandecido e venenoso vespeiro que se tornou o contexto atual de “debate”, que, em vez do diálogo, tende a promover “cancelamentos” decididos tão sumariamente quanto o permite a vertiginosa rapidez das redes sociais.

Na comédia de Leonardo – composta de exatos 1.000 versos metrificados – competem vozes poéticas (de cinco homens e cinco mulheres) representantes de tendências diversas que convivem há tempo e hoje em dia; mas tais vozes comparecem suficientemente caricatas, conforme o gênero e o contexto pedem, de modo a dificultar identificações pessoais – afinal, faz parte do jogo o autor se dar alguma chance de sobrevivência diante de possíveis manifestações da perseguição inquisitorial vigente. Cito alguns versos-falas que dão conta de ilustrar os recados: “Ilustres patriotas, sou Petrúcio! / Humilde defensor da imperial / Família brasileira contra o mal / Do plano comunista sino-russo!”; “Vanessa / o nome que meus pais me deram / não representa nada do que sinto // sou / vento / luz e sol // empunho a dor do povo em cada gesto / e gesto a dor infértil de meu próprio ventre”; “Eu sou a Sara, pessoal! Como é que vai? / Espero que a galera toda esteja bem! / Que sensação maluca, gente, estar aqui! / Eu sempre quis participar do BBB! / (Assim, eu sei que aqui não é o BBB, / mas é reality Ti Vi! Tô tão feliz!”; “Meu nome é Constantino e sou um seguidor / leal e desleal ambíguo inovador- / mantenedor do make it new de Ezra Pound.”

Se assume o desafio de navegar em águas cheias de monstros, o autor também não hesita (como já revelou a citação da fala inicial de Dioniso) em valer-se do escudo da autorreferência depreciativa – um modo de defesa ou proteção conveniente ao clima de deboche paródico-dionisíaco. Diz o filho de Zeus, também chamado Baco, que se apresenta, entre outros nomes, como MC Baquinho: “Temendo que a demora houvesse por brochar-lhe / a inspiração de poetastro meia-bomba, / chamou-me aqui […]; Contudo, infelizmente, esse Leonardo Antunes, / arrombadíssimo feitor desta comédia, / insiste em ser classicizante, por temor / decerto que o confundam com algum mundano.”

O texto, porém, é pleno de mundanidades – como não poderia deixar de ser numa obra que emula a comédia grega, feita de ironia, sátira e sarcasmo – relativas à nossa circunstância e à condição hodierna de vida e de criação artística. Isso a começar dos versos, que – predominantemente dodecassílabos – trazem a sombra dos parâmetros poéticos às falas prosaicas, despojadas de poesia; esta, no entanto, se constrói pelo conjunto, sendo a prosa e as marcas de oralidade um dos recursos para seu resultado peculiar.

Tal peculiaridade se faz, também, com o poder de engendramento intertextual: como diz Beethoven Alvarez (autor do posfácio que integra o volume), além de calcada em Aristófanes, a obra traz “um misto de referências metapoéticas e atualizadas que proporcionam rico diálogo com a literatura, o teatro e a cultura pop.” Pelo que se tentou mostrar neste breve artigo, Casa dos poetas merece – ao lado de Lícidas – um lugar especial em nossa falta de espaço para coisas de fato relevantes; esperemos – como sugere Renata Cazarini no texto de orelha do livro –, que a peça “pronta para a telepresença” possa “ser encenada ‘ao vivo’, por assim dizer (ai, quem dera!) da pandemia já esquecida”.

 

 

 

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Marcelo Tápia, poeta, ensaísta e tradutor, é graduado em Letras (português e grego) e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, onde também realizou pós-doutorado em Letras Clássicas. É professor do Programa de Pós-Graduação em Letras Estrangeiras e Tradução (LETRA), da mesma Universidade. Publicou, entre outros, os livros Refusões – poesia 2017-1982 (Perspectiva, 2017) e Týkhe – Uma quarentena de poemas (Olavobrás / Dobradura, 2020). Coorganizador do livro Haroldo de Campos – Transcriação (ed. Perspectiva), traduziu, além de outras obras, o romance Os passos perdidos, de Alejo Carpentier (Martins Fontes). É, atualmente, diretor da Rede de Museus-Casas Literários de São Paulo, formada por Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, Casa Guilherme de Almeida e Casa Mário de Andrade, instituições da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.




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