A barbárie de Queimadas
O caso ficou conhecido como “a Barbárie de Queimadas”, e assim continua a ser chamado pela imprensa. Em princípio, é um caso de violência e feminicídio semelhante a muitos outros que acontecem no Brasil. O escritor e jornalista Bruno Ribeiro acompanha o episódio há mais de dez anos, e entrevistou mais de cem pessoas para escrever o livro Era Apenas Um Presente Para o Meu Irmão (Todavia, 2023).
No dia seguinte ao crime, o mistério começou a ser esclarecido. O mentor do assalto foi Eduardo dos Santos Pereira, o dono da casa onde acontecia a festa. Ele convidou várias moças da cidade, de famílias amigas, que conviviam no dia a dia com ele e com seu irmão, o aniversariante Luciano. O objetivo era fingir um assalto (recrutando alguns amigos) e permitir que todos pudessem estuprar as moças.
O livro de Bruno Ribeiro destaca esses pontos que diferenciam este crime da maior parte dos gang rapes que se vê por aí. O primeiro ponto é o fato de que criminosos e vítimas se conheciam, conviviam no ambiente de uma cidade pequena. Ou seja, mesmo com o uso de máscaras e balaclavas cobrindo os rostos, era provável que algum deles acabasse sendo reconhecido, mesmo com a casa sob blecaute; e foi o que aconteceu.
Outro ponto é que no grupo de dez estupradores havia pelo menos três menores de idade, e alguns indivíduos (descritos pelas testemunhas como “bobões”) que poderiam servir de bodes expiatórios. Alguns declararam que só tomaram parte no assalto porque a intenção (de acordo com o mandante, Eduardo) era de “fazer uma brincadeira”, “dar um susto nelas”. A explicação final do cabeça do crime é justamente a que deu o título ao livro de Bruno Ribeiro. Ou seja, o aniversariante iria receber de presente a chance de “comer na marra” algumas moças bonitas da cidade.
Apenas duas mulheres da festa não foram tocadas: as esposas de Eduardo e Luciano, que foram trancadas juntas num quarto e poupadas pelo grupo.
Tudo desandou quando Izabella reconheceu Eduardo e começou a gritar seu nome. Outros homens foram reconhecidos, pela voz, ou por adereços pessoais. No dia seguinte, as primeiras prisões ocorreram durante o velório das duas moças, à medida que os assaltantes entregavam uns aos outros.
Bruno Ribeiro é autor de romances como Febre de Enxofre (Penalux, 2016), Glitter (Moinhos, 2019) e Porco de Raça (Darkside, 2021). O livro sobre a Barbárie de Queimadas ganhou o Prêmio Todavia de Não Ficção e faz um poderoso contraponto à sua ficção áspera, de prosa crispada e tensa, sobre a violência que perpassa o espírito do nosso tempo.
Um aspecto interessante é que por volta da metade de Era Apenas Um Presente… já foi descrito o crime, já lemos os depoimentos dos envolvidos, já aconteceram as prisões e os julgamentos, as sentenças já foram proferidas. Temos a impressão de que o livro termina ali. O que resta para contar?
Daí em diante começa a investigação do que rodeou o crime; do que o favoreceu; do que conduziu àquele estado de coisas; do que veio depois. Eduardo, o líder, foi condenado a 106 anos de prisão. Em novembro de 2020, ele fugiu andando, pela porta, do presídio de segurança máxima PB1, em João Pessoa. O escândalo dessa fuga fez estremecer novamente todos os fios que convergem para o crime de 2012. Lealdades de família, troca de favores, influência política, proteção, pesados subornos, tudo é discutido no ambiente dos advogados, dos jornalistas, dos policiais, dos defensores dos direitos humanos.
O livro mostra essa rede tensa de relações sociais baseadas no dinheiro, na violência, na influência política, no machismo e na certeza da impunidade. Algumas pessoas, na época, chamaram os estupradores de Queimadas de “imbecis” por terem acreditado que um crime tão mal executado poderia passar impune. Na verdade, não houve tanta preocupação em esconder a identidade dos assaltantes. Os que estavam à frente tinham certeza da impunidade, e sabiam que, mesmo presos, dariam um jeito de escapar.
Bruno Ribeiro deixou o romancista de lado e ligou o aplicativo-jornalista para fazer o levantamento minucioso das histórias, versões e interpretações de dezenas de pessoas. Na última parte do livro, ele traz a narrativa para o presente e descreve, numa tensa narrativa em tempo real, a visita que fez à Rocinha, no Rio de Janeiro, e as cervejas que tomou no bar do pai de Eduardo – o bar onde muita gente, inclusive a polícia, acha que Eduardo está escondido até hoje. Nesse momento, depois de tantas páginas de compilação e recapitulação de momentos passados, o romancista emerge com a habilidade de mostrar o momento presente: um galeto servido na mesa, a troca “casual” de frases com os parentes do criminoso, a presença de homens que bebem numa mesa afastada, uma ida ao banheiro, uma música que toca…
É em ambientes assim que os crimes são gestados? Talvez, porque a possibilidade do crime permeia tudo, como uma umidade relativa do ar que está sempre presente e invisível, e a qualquer momento, em qualquer lugar, pode se concentrar em tempestade.
Como diz o autor:
“Quando se estuda crimes no Brasil, pode-se dizer que aquele que suja as mãos é pego, mas quem o mandou sujar as mãos, não. Há sempre uma parte que nunca é agarrada, algo movediço, alheio aos nossos esforços. No caso da Barbárie, o julgamento foi uma resolução clara do caso, resolvido até com certa destreza. Mas as raízes do crime, tudo que existiu para fazê-lo acontecer e, não só ele, mas tantos outros casos de feminicídio que foram praticados e ainda acontecem em Queimadas, parece ficar na escuridão, abafado. A resolução de grandes crimes é sempre uma metonímia: uma narrativa que nos entrega mais um pedaço que o todo.” (pág. 188)
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