A leitura de um discurso


JN – Um ator político em cena: a leitura de um discurso

 

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JN – um ator político em cena: do impeachment de Dilma Rousseff à eleição de Jair Bolsonaro é resultado da pesquisa de doutorado de Eliara Santana, jornalista e linguista, pesquisadora do Observatório das eleições e pesquisadora-colaboradora do IEL – Instituto de Estudos da Linguagem – Unicamp. A tese principal defendida pela autora é de que a recente história política, econômica e social do Brasil é marcada por uma ruptura da normalidade institucional deflagrada a partir do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e uma das forças atuantes nesse processo foi a mídia corporativa. Com base nisso, se propôs a investigar uma sistemática narrativa jornalística sobre corrupção e crise econômica, observada no acompanhamento diário das notícias.

Para compreender a importância da atuação da mídia corporativa no recente cenário político, estabeleceu como recorte de trabalho as notícias veiculadas no Jornal Nacional no período de 2013 a 2020, em razão de o JN ser o principal telejornal da TV brasileira, sendo única fonte de informação de uma parcela expressiva dos brasileiros. O ponto de partida é o ano de 2013, marcado por manifestações iniciadas pelo Movimento Passe Livre, que lutava contra o aumento das tarifas de transporte público. O caráter das manifestações, no entanto, começou a ganhar outra dimensão envolvendo vários setores da sociedade insatisfeitos com o andamento da política.

Para o professor Marcos Nobre, há duas teorias interpretativas sobre o que aconteceu a partir de junho de 2013: a primeira é de que “ali teria se iniciado a atual regressão autoritária. No momento em que as forças de esquerda teriam sido expulsas das ruas e que as forças da reação teriam tomado a liderança dos protestos, já estariam prefigurados os dois principais eventos que se seguiram: a deposição de Dilma Rousseff e a prisão de Lula. E, por fim, o momento culminante dessa mudança histórica, a eleição de Bolsonaro, em 2018”. A segunda considera “junho de 2013 um evento exógeno, sem ligação direta com o funcionamento do sistema político. Por isso, estabelece como marco de referência mais próximo o período de transição do primeiro para o segundo mandato de Dilma Rousseff. Sustenta que a crise se instala a partir do momento em que o perdedor da eleição presidencial de 2014, o PSDB, decide questionar na Justiça o resultado”. (Nobre, 2020, p. 72-73).

Seja qual for a teoria que explique o início da crise recente no país, o período analisado é fundamental para compreender o estado político atual. A análise investigativa de Eliara Santana segue a partir de 2013, momento em que começa a se instalar um quadro de polarização social, para debater o papel importante da mídia na construção de sentidos sobre a corrupção, tema que passa a ser ressignificado como uma prática pontual, exclusiva de determinados grupos políticos, “sem precedentes”, e não mais como algo atemporal, presente na política e na sociedade historicamente. A corrupção passou a ser vinculada a atores específicos e ficou conceituada como a corrupção do PT: “Portanto, com o uso de repertórios, o Jornal Nacional produz um fenômeno midiático – a corrupção sem precedentes, nunca antes vista no país. Como fenômeno atemporal, a corrupção não é tomada como um problema pontual, existente em muitos cenários, que tem ligações e bases históricas e precisa ser enfrentado – ela é construída como um fenômeno político, um modo de fazer política, vinculada a determinados grupos”. (p. 117).

Na opinião da jornalista Eliane Brum, “o PT não inventou a corrupção na política. Existe corrupção no Brasil da padaria da esquina ao Congresso. A simbiose criminosa entre as grandes empreiteiras e os governos já está presente na construção literal de Brasília nos anos 50. Ser um partido ‘ético’, porém, era um traço forte da identidade do PT. Era parte do seu rosto – e desmanchou-se”. (Brum, 2019, p. 103).

Como o JN lida com os fatos? A construção de uma narrativa

O JN, assim como a mídia corporativa em geral, não inventa fatos, não cria acontecimentos; exerce o papel de mediar a realidade. No entanto, toda “tradução” da realidade passa por critérios de seleção que podem ressaltar, minimizar ou silenciar aspectos, num processo de ressignificação capaz de compor determinada narrativa. Uma das argumentações da autora que me chamaram a atenção foi a aliança de alguns meios de comunicação com o judiciário, contribuindo especialmente para a criminalização generalizada da política.

Para mostrar o funcionamento de uma linha discursiva que gira em torno de assuntos como corrupção e crise, entre o farto material de análise de textos e imagens veiculadas pelo JN no período, ganharam destaque nas minhas impressões trechos que visam a apagar ou iluminar determinadas cenas e personagens.

Praticamente às vésperas das eleições presidenciais, em 16 de setembro de 2014, sai o relatório da ONU informando que, pela primeira vez na história, o Brasil estava fora do mapa da fome. O JN não fez o destaque dessa notícia na abertura e dedicou 38s na edição interna, antecedida por uma notícia sobre onda de violência, que recebeu 1min15s. (p. 104). Ainda em dezembro deste mesmo ano, o índice de desemprego divulgado pelo IBGE era de 4,8%, o menor índice registrado desde o ano de 2002, mas a repercussão constante nas edições era a crise econômica “sem precedentes”.

Para um país historicamente assolado pela fome, as notícias de cunho social e econômico normalmente deveriam merecer um tratamento especial, mas o ano era 2014, marcado pelo início da Operação Lava Jato, que investigava um esquema de corrupção envolvendo empresários, doleiros e agentes públicos de vários partidos políticos, entres eles PP, MDB e PT. Assim, o que ganhava destaque era o tema da corrupção: “a nunca vista antes na história do país”.

Em 16 de março de 2016, o então juiz Sérgio Moro, já famoso pela condução da maior ação anticorrupção do país, libera áudios contendo trechos de conversa entre a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula sobre a indicação deste para o cargo de Ministro-chefe da Casa Civil. A notícia foi apresentada pelos jornalistas William Bonner e Renata Vasconcellos com uma forte carga dramática. Com a repercussão da divulgação, o STF suspende a nomeação. A matéria não se preocupa em justificar a quebra de sigilo; a explicação de que Moro suspende o sigilo por si só parece suficiente.

Em junho de 2019, a notícia do vazamento das conversas comprometedoras entre o juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dalagnon, no âmbito da Operação Lava Jato, feita pelo site The Intercept Brasil, colocava em xeque a isenção da condução da maior ação anticorrupção do país. No entanto, a divulgação do vazamento dessas conversas realizadas no aplicativo Telegram recebeu o seguinte enquadramento: a afirmação de uma suposta ação ilegal para a obtenção dos dados.

O evento que ficou conhecido como Vaza Jato deixa de ser relevante; é direcionado para a figura do hacker e a autenticidade das mensagens. “No decorrer das semanas e dos novos vazamentos publicados pelo The Intercept Brasil, o enquadramento prioritário foi o de crime, tipificado pela invasão de um hacker. Houve, concomitantemente, a operação de silenciamento em relação a dois sujeitos relevantes no acontecimento: o então ministro e ex-juiz Sérgio Moro (num viés positivo, pois as matérias não levantaram qualquer referência ao fato de ele ser então ministro) e o jornalista Glenn Greenwald (que não era referido como ganhador do prêmio Pulitzer de jornalismo, um dos mais importantes do mundo)”. (p. 167).

Estabelecendo aqui um diálogo entre esses dois casos, dá para notar que, no primeiro, não há menção às implicações legais de um grampo telefônico e quebra de sigilo do diálogo de uma presidente; o enfoque foi dado ao conteúdo da gravação. Já no segundo caso, o ponto salientado foi a forma de obtenção dos dados e não o conteúdo, argumento que lançava desconfiança da veracidade da informação trazida primeiramente pelo site The Intercept Brasil. (Mais tarde o material foi compartilhado pelo site para uma apuração conjunta com parceiros como Folha de S. Paulo, El Pais, Bandnews FM, entre outros. **).

Considerados esses exemplos, retorno à explicação da estratégia discursiva, recuperando o mapeamento de sete momentos discursivos, termo usado pela autora para se referir a momentos sócio-históricos retratados pelas notícias cotidianas do JN, em que se observa um padrão narrativo:

  1. Jornadas de Junho 2013 – Foram tratadas inicialmente como um movimento de baderna ligado ao Movimento do Passe Livre. À medida que o MPL sai de cena, e novos manifestantes se somam ao movimento, a imprensa passa a atribuir às manifestações um outro sentido: sociedade contra o governo e contra o sistema;
  2. Eleições 2014 – Crise econômica e corrupção começam a ganhar a cena;
  3. Pós-eleições de Dilma Rousseff até a aprovação do pedido de impeachment pelo Senado (2015) – Crise e corrupção e foco na Operação Lava Jato;
  4. Votação do impeachment no Congresso e afastamento de Dilma Rousseff pelo Senado, Michel Temer assume como interino (2016) – Corrupção como algo relacionado ao passado;
  5. Afastamento definitivo de Dilma Rousseff e posse do governo Temer (2016) – Política e Economia perdem destaque dando espaço a outras pautas, como feminicídio e meio ambiente. Após o impeachment de Dilma, no início do governo Temer (MDB), a pauta da crise econômica desapareceu do noticiário e em seu lugar surgiu o tema da retomada de crescimento. O tom é de necessidade de mudança;
  6. Governo Michel Temer até eleições de 2018 – Facada e pós-facada, momentos em que entra em curso um processo de humanização e naturalização do então candidato Jair Bolsonaro;
  7. Primeiro ano Governo Bolsonaro (2019-2020) – Como a ênfase do veículo era na defesa de um projeto neoliberal, com posicionamento em favor das reformas, principalmente a Reforma da Previdência, a figura do presidente, mais alinhado à pauta retrógrada de costumes foi sendo apagada dos noticiários. Os superministros, Moro e Guedes, bem como o vice-presidente Mourão, ganharam mais destaque. Ao longo de 2019, a defesa da economia permanece, mas o apoio a Bolsonaro arrefece.

Alinhavando à argumentação desenvolvida, a autora finaliza com um capítulo dedicado à discussão do conceito de alfabetização midiática e informacional definido pela Unesco, como uma questão urgente para a construção de uma sociedade democrática. Por meio de um letramento midiático e informacional, é possível desenvolver um pensamento crítico e a habilidade de acessar, analisar, avaliar e criar conteúdo. “As diversas tecnologias envolvidas, bem como o instrumental educacional específico envolvido, trazem inúmeras possibilidades no campo, seja na formação específica de professores, seja no desenvolvimento de ferramentas de ensino para crianças e jovens”.  (p. 226).

Fundamentado em teorias filosóficas, sociais e da análise do discurso da informação, o trabalho de Eliara Santana percorre os sentidos construídos, mostra a influência da mídia na formação de repertórios sobre política e economia e desvela a pretensa isenção jornalística. Para o curioso dos estudos do discurso, oferece uma vasta fonte de pesquisa teórica e analítica. Assim como todo escritor, com Eliara não é diferente: suas marcas ideológicas ficam espalhadas no texto. Cabe ao leitor trilhar este trajeto com atenção e buscar as pistas de seu discurso.

Após esta leitura, uma coisa é certa: não é mais possível assistir nem ao JN nem a outros jornais sem o olhar crítico de um analista do discurso, que rastreia os sinais por onde a ideologia se revela. Como destaca Eni Orlandi, em Análise do Discurso – princípios e procedimentos, “a contribuição da análise do discurso nos coloca em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem”.

 

 

 

** Em 2020, foi lançado o livro Vaza Jato: os bastidores das reportagens que sacudiram o Brasil, de Letícia Duarte.

 

 

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Referências:

Brum, Eliane. Brasil construtor de ruínas – Um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019.

Nobre, Marcos. Ponto Final: A guerra de Bolsonaro contra a democracia. São Paulo: Todavia, 2020.

Orlandi, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 4ª ed. 2001.

Santana, Eliara. Jornal Nacional, um ator político em cena – Do impeachment de Dilma Rousseff à eleição de Jair Bolsonaro: as bases da construção da narrativa jornalística que legitimou processos políticos na recente história brasileira. Andradina: Meraki, 2022. E-book.

 

 

 

 

 

 

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Rita Morais é bacharel e licenciada em Língua e Literatura portuguesas pela PUC/SP e Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Mackenzie, com foco nos estudos sobre a Análise do Discurso. E-mail: rmfmorais@hotmail.com.




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