Charles Baudelaire
O POETA QUE INAUGUROU A MODERNIDADE
A poesia de Charles Baudelaire não se resume ao esteticismo dos simbolistas, à busca da perfeição métrica, musicalidade, novas metáforas e invenções sinestésicas, ao tom vago e impreciso do sonho, aspectos mais conhecidos de sua poesia; ele também não é apenas o poeta que cantou o niilismo, o tédio, o desejo de fuga e a inadaptação social, embora estes sejam alguns dos temas recorrentes em sua poesia. O autor das Flores do mal também não é apenas o “poeta maldito” que escrevia litanias a Satã, o elogio ao vinho, às viagens a lugares exóticos, estudava ocultismo e levava uma vida excêntrica, que chocava os valores morais da época. Sem dúvida, estes são os aspectos mais conhecidos de sua vida e obra, que lhe valeram diversos problemas com a justiça, que apreendeu em 1857 a primeira edição das Flores do mal, contendo na época cerca de cem poemas, e obrigou o poeta a pagar uma multa de 300 francos, sob a acusação de ultraje à “moral” e aos “bons costumes”. A palavra mal em francês, aliás, não significa apenas o oposto do bem, mas ainda “angústia”, ambiguidade que dá ao título do livro também um sentido existencial. A modernidade de Baudelaire talvez resida hoje em outros aspectos, tais como como: 1) a descrição de cenários urbanos (ele próprio era um flâneur, que amava circular pelas ruas de Paris, antecipando o conceito de acaso objetivo dos surrealistas); 2) a introdução do feísmo ou grotesco, em imagens como a da carniça de um cavalo exposta no meio da rua; 3) a introdução do mundo cotidiano na lírica, como no soneto dedicado a seu encontro casual com uma passante; 4) a desinibição em seus versos de temática erótico-amorosa ou sobre a experiência com drogas; 4) a criação do poema em prosa; 5) e ainda pelo diálogo que ele estabelece entre a poesia, a pintura e a arte musical, que será um dos principais tópicos da poesia de vanguarda do século XX.
Baudelaire foi sobretudo o poeta que, indo em sentido contrário à tradição romântica, exercerá a poesia como um trabalho intelectual. Em seu ensaio sobre o inventivo poeta francês, incluído no volume Variedades, o poeta e crítico literário Paul Valéry destaca, entre as qualidades do autor das Flores do Mal, a “inteligência crítica associada à virtude da poesia”, ou seja, a atitude racional, herdeira da Filosofia da composição, de Edgar Allan Poe, na busca da criação da beleza. Podemos falar em uma “beleza pensada”, que, como diz Valéry, combina a precisão e a sensualidade; Baudelaire seria o “demônio da lucidez, o gênio da análise e o inventor das combinações mais novas e mais sedutoras da lógica com a imaginação e o misticismo, o psicólogo da exceção, o engenheiro literário que aprofunda e utiliza todos os recursos da arte”. Se ele parece um romântico tardio de feitio byroniano, pela boemia, morbidez, exaltação dos sentidos e por um dissimulado satanismo, que T. S. Eliot considera uma entrada no cristianismo pela porta dos fundos, a partir da percepção da queda e da culpa, por outro lado ele reage contra o romantismo, diz Valéry, ao substituir a ação espontânea pela ação refletida.
“O amplo registro de suas palavras, a diversidade de seus ritmos, a superabundância de suas imagens esmagavam qualquer poesia rival”, escreve o autor das Variedades, embora observe também “a simplicidade de sua filosofia, a desproporção e a incoerência dos desenvolvimentos, o contraste frequente entre as maravilhas do detalhe e a fragilidade do pretexto e a incoerência do conjunto”, comentário esse do qual podemos discordar. Se o autor de Perfume exótico é o pai da poesia moderna, o precursor das aventuras poéticas que seriam desenvolvidas no século XX, nem por isso deixou de ser um cidadão francês do século XIX, que, assim como outros poetas de sua geração, flertou com um suposto irracionalismo no campo do pensamento e com atitudes excêntricas próprias dos dândis da época. Podemos considerar que a escrita de Baudelaire descende de um princípio formulado por Edgar Allan Poe, segundo quem a poesia é a “construção precisa do impreciso”. Em seu estudo sobre a poesia de Baudelaire, incluído no livro O simbolismo, Anna Balankian diz que o poeta francês “nos leva a uma nova definição de poesia: o poema se torna um enigma. Os múltiplos significados contidos nas palavras e objetos são os ingredientes do mistério e o tom do poema (…); a mensagem permanece tão ambígua quanto sucinta, como as visões que surgem no estado de sonho ou no meio de uma orgia de drogas, como a descrita por Baudelaire”. Quando Valéry afirma que Baudelaire “empasta seus versos com palavras indeterminadas, vagas e vertiginosas, usando o abismo, o infinito, o absoluto com tanta abundância e tanta facilidade que esses termos monstruosos perdem até a aparência de profundidade”, talvez o crítico exerça certa intolerância ou incompreensão; hoje, nos importa muito menos a pose adotada por Baudelaire, o mito que criou para si mesmo, do que a objetividade com que colocou em verso as suas excentricidades. Esta objetividade, para Valéry, é uma outra faceta de Baudelaire, oposta à romântica, que ele aproxima da arte clássica, que significa “fazer uma obra racional e construir de acordo com a ordem através de um conjunto de convenções”. Em Baudelaire, esse classicismo está presente, por exemplo, na rigorosa estrutura métrica, em que sobressaem o verso alexandrino, a distribuição regular da acentuação rítmica e das rimas, o uso inventivo das figuras de linguagem, como a aliteração e a assonância, distanciando-se do espontaneísmo de Byron ou Shelley e antecipando o rigor formal de um Mallarmé. Em Baudelaire, no entanto, uma figura de linguagem tem especial importância: a sinestesia, que estabelece uma relação alterada, de caráter metafórico, entre as percepções sensoriais, os órgãos e os objetos dos sentidos, como fica evidente, sobretudo, no soneto das Correspondências (“As cores, os perfumes e os sons se respondem”). Escrevendo sobre este soneto, Anna Balankian afirma que, na visão baudelariana, “o poeta, no sentido amplo da palavra, é um tradutor, um decifrador dos hieróglifos divinos. Aceita, também, a correspondência literal entre os mundos divino e natural. Isto torna sua noção de símbolo muito próxima do conceito de alegoria e do paralelismo tradicional entre o abstrato e o concreto”, ou seja, um eco tardio da filosofia platônica e em particular da relação entre o mundo sensível e o mundo inteligível. Tudo o que existe à nossa volta seriam apenas manifestações imperfeitas daquilo que existe eternamente num plano sobrenatural; caberia ao poeta, então, decifrar a linguagem enigmática de Deus, os seus sinais visíveis, que estão à nossa volta como uma “floresta de signos”. Nesse sentido, Baudelaire é um descendente direto dos poemas visionários de William Blake e antecipa a tese do “poeta-vidente” de Rimbaud. À essa interpretação metafísica do uso da sinestesia por Baudelaire, no entanto, Anna Balankian contrapõe outra interpretação, mais sensual do que mística; para ela, longe de seguir uma tradição platônica ou teosófica, Baudelaire “encontra suas conexões entre as experiências sensoriais aqui na Terra: entre os perfumes e as carnes das crianças, ligadas por um adjetivo que tem uma conotação tanto olfativa quanto tátil; entre os sons e as cores (não no céu, mas aqui na terra) ligando o oboé e as pradarias, mais uma vez através do uso sábio do adjetivo que é aplicável a mais de uma categoria de imagens sensuais. No último verso, Baudelaire revela que o segredo para atingir a sinestesia não reside na visão interior e seu contato com o divino, mas na conexão da mente com os sentidos por meio de um estímulo natural, como o incenso ou o âmbar. A sinestesia é estritamente terrestre, descritiva, do tipo de associação em cadeia que os estímulos sensuais podem produzir na mente do homem”.
Em outra passagem de seu ensaio, Anna Balankian afirma que Baudelaire “foi um poeta intelectual e sensual (…). A mente fornece a chave para o poema, e os sentidos a preenchem com suas harmonias” Em outra passagem, a autora escreve: “Baudelaire resume o processo poético do seguinte modo: o estímulo afeta os sentidos; os sentidos afetam a mente; o resultado é a linguagem produzida por uma vigilância suprarracional da mente (…). Este processo de transformação da realidade dá ao poeta o sentido de sua própria divindade, em vez de um aspiração em direção à divindade”. O poeta seria um pequeno deus, como escreveria mais tarde o poeta chileno Vicente Huidobro, e o poema seria um pequeno universo, “com a sua própria fauna e flora”, uma nova realidade construída por meio das palavras, como notamos na leitura de sonetos como. Perfume exótico, por exemplo (“De olhos fechados, quando, alta noite, no outono, / Respiro o cheiro bom dos teus seios fogosos, / Vejo entreabrir-se além cenários deleitosos / Cintilando ao ardor de um sol morno de sono”, na tradução de Guilherme de Almeida). Este soneto, escrito para a sua amante Jeanne Duval, combina as impressões sensoriais do olfato – “o cheiro bom de teus seios fogosos”, do paladar – “árvores ideais e frutos saborosos”, da visão – “Homens de corpos nus, finos e vigorosos, / Mulheres cujo olhar tem franqueza e abandono” e da audição – “Se mistura em minha alma à voz dos marinheiros”, numa paisagem onírica criada pela fantasia do poeta, a partir da livre associação de ideias ou como decorrência de um sonho ou experiência alucinógena. A atmosfera de sonho do poema, porém, é construída com precisão e alta definição de contornos, pelo uso de substantivos e imagens bem delineadas, que não prescindem do poder evocatório da musicalidade dos versos. Os temas da viagem, do exílio, da beleza, da sensualidade, do tédio e do desejo de evasão do mundo aparecem com frequência na poesia do autor das Flores do mal. O desejo de escape, pela morte do corpo físico ou do transporte a uma outra realidade, de caráter alucinatório ou sobrenatural, será uma característica comum dos poetas simbolistas, que não se sentiam à vontade no século XIX, na era das grandes cidades, das fábricas, dos novos meios de comunicação e de transporte, e que sonhavam com uma Idade Média idílica ou com dimensões alternativas, sobrenaturais. A ideologia dos poetas da época, não serve de argumento contra eles, apenas oferece a chave de leitura para a melhor compreensão de seus versos, que sobreviveram até nossa época por sua radical e extrema inventividade formal.
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Claudio Daniel é poeta, romancista, crítico literário e professor de literatura. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP). Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo e colunista da revista CULT. Atualmente, Claudio Daniel é editor da revista impressa GROU Cultura e Arte e ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética. Publicou diversos livros de poesia, ensaio e ficção, entre eles Cadernos bestiais: breviário da tragédia brasileira, Portão 7, Marabô Obatalá, Sete olhos & outros poemas e Dialeto açafrão (sob a lua de Gaza), todos de poesia, o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo e os romances Mojubá e A casa das encantadas.