Emilio Fontana: o culpado de tudo
Guilty of Everything / Culpado de tudo é o título do principal livro de Herbert Huncke, delinquente que ganhou celebridade por seu papel na formação da Geração Beat. Ladrão e traficante, amigo de Jack Kerouac, foi quem apresentou morfina a William Burroughs, além de parceiro dele em outras transgressões; e ainda responsável pela detenção de Allen Ginsberg que resultou em sua internação em 1948, por guardar objetos roubados. Seu texto é excelente, com bastante prosa poética de qualidade. Guilty of Everything merecia ser publicado no Brasil. Com a ascensão do prestígio da Beat, passou o resto da vida – morreu aos 81 anos – como uma espécie de entrevistado profissional.
Nada disso tem relação direta com Emilio Fontana. É uma das pessoas mais sossegadas e consistentes que conheço. Anarquista tranquilo, digamos. Agora com noventa e dois anos, passou a vida atuando no teatro, como diretor, produtor e, principalmente, como professor, com seu curso em parceria com Maria do Carmo e agora com Crys – que lança um filme meta-experimental protagonizado de modo fiel por adolescentes seus alunos.
Os Fontana estiveram instalados por muito tempo em uma espécie de oásis da metrópole, uma vila que dava para a Rua da Abolição, na Bela Vista, nas imediações do trepidante Teatro Oficina e de uma sinagoga – Maninha Cavalcante ia lá tomar aulas de dicção com Maria do Carmo, em algum 1973. Acolhedores.
Em 1965, Fontana encenou uma novidade, Zoo Story, de Edward Albee, com Raul Cortez (subsequentemente, Edney Giovenazzi) e Libero Ripoli Filho: a contundente história do marginal que se faz assassinar por um burguês. Como a peça é curta, decidiu, para abrir, apresentar uma coletânea de poemas da Geração Beat, de Allen Ginsberg e outros, ditos por nosso amigo Wolney de Assis. Confiou a seleção e tradução ao poeta Mario Chamie.
Fomos ver. Odiamos o que Chamie havia feito. Por exemplo, em um dos poemas, “Noturno de Sather Gate”, “carrego salames subversivos em minha pasta amarrotada” virou “carrego um sanduiche subversivo em minha rota marmita”. Isso, entre outras impropriedades. Roberto Piva escreveu um manifesto, também assinado por mim, Antonio Fernando de Franceschi, Décio Bar e Roberto Bicelli. Zoamos. Tiramos cópias, distribuímos na porta do teatro e em outros lugares. Levei para o Ignacio de Loyola Brandão na Última Hora; ele, generosamente, deu meia página.
Outros, por menos que isso, virariam meus haters. Fontana, não. Ao contrário. Convidou-nos, a mim e Décio Bar, a preparar um espetáculo de poemas beat para seu novo Teatro da Rua, à Rua Augusta. E convocou três dedicados atores, dentre seus alunos – Rubens José, Fernando Benincasa, Carlos Roberto (por onde andam?). Foi quando selecionei e traduzi Ginsberg, Corso, Ted Joans, Ferlinghetti, Lamantia. Ficamos alguns meses, às segundas-feiras. Durante o resto da semana, era Dois perdidos de Plinio Marcos.
Vão fazer programação precursora assim no inferno… Naquela São Paulo provinciana. Houve quem apreciasse. Tivemos sessões com público. Uma estratégia era vender através de agremiações estudantis. Minha amiga Iara Iavelberg dirigia o Centro Acadêmico da Psicologia da USP, vendemos o espetáculo através dela, lotou a sessão. Seu então namorado José Dirceu dirigia o DA de Direito na PUC, também lotaram. Assim como os alunos de Direito da USP, sem nenhuma conexão evidente. Em outros lugares, recepção análoga a invadir uma geladeira. Viajamos. Fomos até Ribeirão Preto e Franca, acompanhados por José Augusto de Azevedo Marques, colega de Décio, também falecido, que cuidava da iluminação. Seis em um carro lotado? Loucos. Uma das apresentações – Franca? – foi no salão de um clube, outra em um auditório. Ainda em 1967, Fontana também convidou a mim e Décio Bar para uma mesa, para dizermos como era tomar LSD.
E foi assim que me tornei famoso – ou comecei a me tornar famoso… Houve mais, é claro. Mas quando Ivan Pinheiro Machado da L&PM topou minha sugestão de fazermos Ginsberg, depois de eu haver preparado Artaud, eu já tinha as traduções. Além de “Uivo”, “América” e os poemas sob efeito de alucinógenos, havia avançado e começado a traduzir “Kaddish”, Foi questão de achar Ginsberg – generoso – e o editor tratar do que tinha que ser tratado.
Fontana foi o culpado. Disso e de muito mais.
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Claudio Willer é poeta, ensaísta e tradutor. Tem formação acadêmica como sociólogo (Escola de Sociologia e Política) e psicólogo (Instituto de Psicologia – USP) e doutorado em Letras Comparadas, pela Universidade de São Paulo. Ocupou diversos cargos e funções em administração cultural, foi assessor na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, responsável por cursos, oficinas literárias, ciclos de palestras e debates, leituras de poesia, de 1994 a 2001; e participou de dezenas de congressos, seminários, ciclos de palestras, apresentações públicas de autores, etc, no Brasil e no exterior. Foi presidente da União Brasileira de Escritores por dois mandatos, entre 1988 e 1992. Foi novamente eleito em 2000 e re-eleito em 2002. Foi também secretário geral da UBE em outros dois mandatos (1982-86), e presidente do Conselho da entidade (1994-2000). Algumas obras: Anotações para um Apocalipse, Massao Ohno Editor, 1964, poesia e manifesto; Dias Circulares, Massao Ohno Editor, 1976, poesia e manifesto; Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, 1ª edição Editora Vertente, 1970, 2ª edição Max Limonad, 1986, tradução e prefácio; Jardins da Provocação, Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores, 1981, poesia e ensaio; Uivo, Kaddish e outros poemas de Allen Ginsberg, L&PM Editores, 1984 e sucessivas reedições, seleção, tradução, prefácio e notas; nova edição, revista e ampliada, em 1999; edição de bolso, reduzida, em 2.000; Crônicas da Comuna, coletânea sobre a Comuna de Paris, textos de Victor Hugo, Flaubert, Jules Vallés, Verlaine, Zola e outros, Editora Ensaio, 1992, tradução; Volta, narrativa em prosa, Iluminuras, 1996, segunda edição, 2002; Lautréamont – Obra Completa – Os Cantos de Maldoror, Poesias e Cartas, edição prefaciada e comentada, Iluminuras, 1997; segunda edição em 2003. E-mail: cjwiller@uol.com.br
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