O silêncio antes da explosão
Duas mulheres, um livro e o silêncio antes da explosão

Gosto das pequenas leituras. Textos breves de profunda vazão reflexiva. Falo principalmente dessas leituras que encontramos nas redes sociais, em postagens de gente antenada. Todavia nem sempre nas redes sociais, pois algumas vezes são breves anotações ou grifos em textos nossos ou de autores diversos. Como se estivéssemos assinalando um tipo de anatomia da leitura.
No Facebook do poeta e editor André Ricardo Aguiar li um pequeno texto do Cesar Aira quem bem representa essa anatomia da leitura e, quem sabe, da escrita: “O difícil é escrever, não escrever bem. Nas oficinas literárias se pode aprender a escrever bem, mas não a escrever. Para escrever bem há receitas, conselhos úteis, uma aprendizagem. Escrever, em troca, é uma decisão de vida que se realiza com todos os atos da vida”. Gosto de ler o que faz pensar.
A despeito das divergências que esse pequeno texto possa provocar, vamos aqui conversar sobre a escrita “enquanto decisão de vida”. Neste ano de 2025, um dos livros publicados pela editora Casa Verde, de Porto Alegre foi uma edição em dose dupla. Dois títulos em capas opostas. Um tipo de unidade circunscrita às autoras em sintonia com uma pequena editora que não se furta em estabelecer suas escolhas.
“Sobrevivi ao dia seguinte”, de Neli Germano, poeta gaúcha nascida em Torres, no litoral do Rio Grande do Sul e “La onde vagam os lobos”, da também poeta gaúcha Benette Bacelar, portoalegrense da gema. O livro (ou seriam dois livros siameses?) afirma essa boa ideia de compartilhar edições e afinidades. Mostra que, acima de tudo, o que importa é escrever. Duas mulheres. Duas poetas e um livro é o temos aqui. A linha divisória, todavia, é um bordado temático dolorido e muito vivo.
Certa vez, perguntado em entrevista acerca do que pensava da poesia contemporânea, quase surtei. Afinal, a diversidade e o volume é tão imenso que o risco de uma meia verdade é real. Meio que no susto, respondi que estávamos vivendo aquele silêncio que antecede a explosão. O entrevistador entusiasmou-se e quis saber mais. Pedi calma, pois não iria expor minha expectativa sobre o calor do momento e muito menos sobre o que poderá ou não acontecer. Nenhuma verdade é inegociável em poesia. Se o poema é o despacho, a poesia é o Orixá.
Em “O inconsciente estético”, Jacques Rancière nos fala da “palavra que as coisas mudas carregam”. Tudo é rastro, vestígio ou fóssil.” Ao ler os poemas que Benette e Neli a unidade que encontrei está exatamente no que há de “rastro, vestígio ou fóssil”. São poemas que arrancam a pele para que a leitura proporcione o açoite do vento. Dói, mas desperta.
Como escreveu Domício Proença Filho, “o texto literário envolve dimensões universais, individuais, sociais e históricas, mas de forma peculiar”. A memória em estilhaços “abre as portas para a catarse” e nos permite a leitura poética de um organismo vivo, pulsante, que às vezes é dor constante, mas também dorme para um sono de silenciamentos que são transformados em pesadelo.
No poema “estoques”, Neli Germano subtrai suas inquietudes silenciadas para dizer que a poesia é diversa, mas em nenhuma das suas acepções é um fóssil. É a palavra carne viva da memória. A pulsação dos estranhamentos onde o tempo guarda a memória e subtrai o esquecimento. Diz a poeta: “no princípio foi a dor/ sentimento de desamparo// dor que mais dói/ a do silêncio/ constrangedor silêncio”.
Por aqui encontramos as insurgências de um feminismo que troca de pele, mas não de lado: “não escolhi as emoções/ elas me tomaram aos oito anos/ silenciosas, frias, invasoras/ minha infância, um território roubado”. Neli arranca seus versos com a voracidade de quem resiste às neutralidades, aos tumultos que arrancam a pele das tempestades que guardamos muitas vezes sem foras para distrair a criança que desembarca do mutismo como um clamor indomável sem o qual a vida se esvai num ir-se eterno, numa impermanência de constâncias. Uma vez abertas as comportas os bichos libertos se tornam insaciáveis, amplitudes de uma fome que nunca se basta.
“Sobrevivi ao dia seguinte” é um espanto, um tremor em palavras caladas nas quietudes oceânicas do significado. Algo que ao mesmo tempo se procura e se perde em diferentes direções e com todos os sotaques de uma fuga permanente por diferentes territórios. Pessoanamente, “fingindo que é dor a dor que deveras, sente”.
“Lá onde vagam os lobos, da poeta @benettebacellar é outro mergulho na infância e noutras armadilhas que a vida impõe enquanto condição diante do espelho. Especialmente para as mulheres e que fazem da escrita de si, o cosmo particular do lirismo inventado. Uma floração de ausências que surgem como a implosão de uma brevidade. Conforme Derrida, “Escrever é retirar-se. Não para a sua tenda para escrever, mas da própria escritura”. E assim os poemas nascem não como um grito de socorro, ou denúncia, mas como celebração de um profundo enfrentamento.
O percurso de uma leitura é sempre o desafio de vencer as próprias crenças. Ver o outro aos ver-se no outro, na outra na condição permanente de aprendiz. Esta sempre será uma leitura nos exige muito por não aceitar enquadramentos. Poemas como “dos nadas que me habitam”, marcam a sua partilha nesta edição tão bem cuidada pela, desde 2011, “minha Casa Verde: “a melancolia/ em não pensar em nada/ nem em quem perdia a inocência// uma fome/ que não tem nome/ um porto nada seguro”.
Assim como Neli, Benette nos remete para uma poética de desnudamento da escrita feminina e feminista num olhar profundamente humano e doloroso. Ambas escrevem sem máscaras. Rosto nu. Corpo nu descendo a escada. Carregam o verso para uma vertente autoficcional como forma de não deixar pedra sobre pedra e não reduzir a cordilheira diante do que há de sede permanente onde o ar rarefeito da paisagem, não existe mais.
O livro “Mulheres e amores em ficções de autoria feminina”, de Rosângela Rodrigues (EdUFCG, 2016) nos ajuda a pensar a poesia de Neli Germano e Benette Bacelar. Para Rosângela, “o indivíduo pode assumir duas posições diante da subjetividade: submeter-se à alienação e à opressão do seu meio, ou se reapropriar dos componentes da subjetividade através de mecanismos de criação e de expressão. Toda subjetividade de um indivíduo absorve sua identidade, mas o contrário não é verdadeiro”.
Creio que a Editora Casa Verde cumpriu mais uma vez sua bem definida prioridade no que coloca como traçado da sua linha editorial. Uma trincheira das lutas pelo justo, pelo igualitário. No que nos humaniza e transborda, como um rio transformando as margens num movimento que permanentemente se recompõe e se reconfigura num mundo onde a perversidade estabelece normas e acessos ao que paralisa diante do medo.
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Lau Siqueira nasceu em Jaguarão (RS) e mora em João Pessoa. Pela Casa Verde, publicou Poesia sem pele (2011), Livro arbítrio (2015), a memória é uma espécie de cravo ferrando a estranheza das coisas (2017), O inventário do pêssego (2020) — seleção de poemas de seus quatro primeiros livros: O comício das veias (1993), O guardador de sorrisos (1998), Sem meias palavras (2002) e Texto sentido (2007) — e Cabeça de Medusa (2022). E-mail: lausiqueira@gmail.com




































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