O jogo e o jongo da literatura negra
O jogo e o jongo da literatura negra em construção
…………………….Ilustração de Augustus Earle
A propósito de um dos traços do estilo de Machado de Assis, isto é, a escrita da dissimulação, Luiz Costa Lima, há quase trinta anos, propôs uma nova perspectiva de interpretação a respeito do nosso maior escritor[1]. Segundo o crítico a escrita da dissimulação de Machado pode ser explicada como a transfiguração de um particular modo negro-brasileiro de ser-no-mundo, a saber, o jogo da capoeira enquanto forma de filosofia prática: a ginga que se resolve em pensamento puro. Ao analisar a aparente frivolidade, as negaças e a ironia das crônicas escritas por Machado de Assis (1872-1879) para a Gazeta de Notícias, Costa Lima se refere ao autor de Dom Casmurro como “mestre de capoeira”. Na reconstituição de fatos ocorridos ao longo de uma semana, Machado de Assis se comportava menos como documentalista do que como escritor. A memória de uma semana recebia os golpes transfiguradores de sua ginga, “a capoeira da palavra”, segundo o teórico. As crônicas do Machado capoeirista, no que toca ao problema da fidelidade ao real, seguem de perto a percepção nietzschiana segundo a qual a história sobrecarrega a memória, fazendo lerda a inteligência.
Mas em que termos poderia se dar essa estética, seja alusiva ao jogo da capoeira, seja alusiva ao jongo e mesmo ao terreiro a que se relacionam poéticas e filosofias específicas da diáspora? E o que é, por exemplo, o jongo? Antes de prosseguir nesse tópico, abordarei as ideias de Henrique Freitas[2] sobre o conceito de literatura-terreiro. O Machado mestre do jogo de capoeira, como metáfora de uma coreografia que dissimula suas intenções, a fala poética do sotaque jongueiro, elisão e rasura de significados, tudo se relaciona ao pensamento vivo do corpo negro e suas estratégias de sobrevivência através de uma estética e de uma eticidade radicalmente pansemióticas e conviviais. Para Henrique Freitas a noção de dissimulação é um processo estruturante das formas de vida e de pensamento do negro no Brasil. De acordo com o professor e crítico baiano, a dissimulação “como resposta ao panoptismo colonial já estava também na forma como a cosmogonia africana encontrou para sobreviver ao racismo epistêmico no Brasil, seja na capoeira, seja na feijoada ou, ainda, na abordagem encruzilhada dos orixás com os santos católicos”. (FREITAS, 2016, p. 44). Dialética da simulação e da dissimulação como forma de convivência ou de resistência ao controle ou, como prefere Freitas, resistência ao panoptismo. Nesse jogo de risco requerido pela sobrevivência frente à violência colonial, as formas de vida e os estados mentais negros esposam o compromisso de fazer a mediação entre a sua cultura estilhaçada e a cultura europeia e suas expropriações materiais e espirituais. A dissimulação exerce seu jogo tanto no espaço público, como no privado; seu discurso negaceia afirmações e contraditas que se fazem acompanhar da marcação de uma piscadela de olhos aos iguais, senha de uma metalinguagem a assinalar que suas palavras não devem ser levadas a sério, quando, na verdade, se trata do contrário.
Volto ao jogo de dissimulação do texto-jongueiro. O jongo é um ritmo que tem sua origem na região africana do Congo-Angola. O ritmo, que também deriva em dança, chegou ao Brasil trazido pelos negros escravizados. A festa dos jongueiros não é restritamente religiosa. O ponto ou a cantiga é uma adivinha em versos que o adversário precisa desatar ou desamarrar. Os jongueiros procuram vencer um ao outro através dos pontos enunciados aos integrantes da roda. Os pontos são todos enigmáticos e metafóricos, e impõem grandes dificuldades à sua decifração. A linguagem cifrada se estrutura em torno de formulações linguísticas detonadores da mutação semântica das palavras. Os jongueiros trocam os sentidos criando um espaço de deriva semântica. Esse procedimento de linguagem se enraíza nas contingências históricas em que se formou a cultura dos negros escravizados. Foi uma das muitas formas encontradas para conversar e conspirar de modo a burlar a vigilância da capatazia. Por meio dessas senhas musicais mensagens importantes se refugiavam por detrás do sentido literal de enunciados insuspeitos.
O jongueiro é um esteta, uma ficção dançante, um pensador que domina a arte da capoeira. Do ponto de vista do controle branco, esse performer alcoviteiro se refugia na displicência da malandragem. Metáfora da arte que sobrevive ao controle, que se aproveita de um cochilo ou outro do sistema e dissimula aquilo que é. Dissimulação supõe a habilidade de não fazer ver as coisas como são. Sugerir e dissimular são termos dessa estratégia de sacrifício a que se dedica cotidianamente com o propósito mais secreto de confrontar-se com a ordenação social opressiva. Determinado a fazer falar lateralmente o silêncio da supressão e da autossupressão, presume em perspectiva que o estilo da perda converte-se em estilo da revanche. O poeta transnegreiro, o sambista, o autor da literatura-terreiro, o capoeira Machado de Assis, todos empenhados numa estratégia básica e, partir da qual, enveredam por distintas propostas: simula-se aquilo que não é, dissimula-se aquilo que é.
A literatura negra em movimento e enquanto entrecruzamento de linguagens, jongueira e capoeirista, fenômeno contíguo à literatura-terreiro, à medida que conquista reconhecimento, abre espaço para o redimensionamento do cânone da literatura proclamada como universal. Subjacente à obra tanto em prosa como em versos de vários escritores negros pode-se notar uma interpretação crítica da tradição literária do ocidente que naturaliza sua branquitude. Nesta perspectiva podemos dizer que a escrita negra ainda contém em si as valências de um corpo estranho, ou seja, seus objetos de linguagem parecem se estabelecer de modo indevido dentro do sistema literário tal como é conhecido.
[1] LIMA, Luiz Costa. Caderno Ideias Livros in: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 07/12/1996. nº 532. p. 7.
[2] FREITAS, Henrique. O arco e a Arkhé. Salvador : Ogum’s Toques Negros, 2016.
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Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 4 de agosto de 1961. Poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela Ufrgs. É autor de, entre outros, Homem ao rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de valha (1992), Confissões aplicadas (2004), No assoalho duro (2007), Cair de costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens assim (2012), Empresto do visitante (2013), À Ipásia que o espera (2016) Entre uma praia e outra (2018), A contragosto do solo (2020) e Crítica parcial (2022). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21.
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