Quando o disc-jockey é Bob Dylan
Entre os anos de 2006 e 2009, Bob Dylan manteve no ar um programa de rádio semanal, o Theme Time Radio Hour, onde ele fez um impressionante passeio pela música norte-americana. Dylan contou com a parceria do produtor Eddie Gorodetsky; os dois juntaram suas respeitáveis discotecas e, com uma boa equipe de pesquisadores, criaram mais de 100 programas com uma hora (ou mais) de duração.
Dylan serviu como disc-jockey, apresentando as canções, compartilhando lembranças pessoais, lendo trechos de obras literárias, lendo cartas dos ouvintes, fazendo gracejos. Dylan é um DJ competente, com sua voz calejada e expressiva, frases incisivas, comentários generosos.
“Bob Esponja” (Sponge Bob) é como alguns críticos dos EUA o chamam até hoje, pelo seu conhecimento enciclopédico de música popular dos EUA. Os relatos sobre a juventude de Dylan, na época de sua chegada a New York com 19 anos, dão conta de que ele se hospedava na casa dos amigos e passava o pente fino em suas discotecas. Ouvia e “tirava” tudo; não escapava nada.
Não eram apenas as discotecas pessoais. Antes mesmo, na infância e adolescência, Dylan era um ávido ouvinte de programas de rádio em geral. Ele conta em seu livro Chronicles, Vol. 1 (2004, trad. BT):
Os programas de rádio tinham tido um papel importante na minha mentalidade, lá no Meio Oeste, num tempo em que eu parecia estar vivendo uma juventude eterna. Inner Sanctum, The Lone Ranger, This is Your FBI, Fiber McGee and Molly, The Fat Man, The Shadow, Suspense. (…) Cresci ouvindo essas coisas, tremia de excitação ouvindo os programas. Eles me davam pistas de como o mundo lá fora funcionava, e estimulavam meus devaneios, faziam minha imaginação trabalhar em horas-extras. Programas de rádio eram uma arte estranha. (Cap. 2)
E no meio desses programas de aventuras, vinha naturalmente a música riquíssima do rádio norte-americano na década de 1950. Para quem foi criado em Hibbing (Minnesota), o rádio era a única maneira de entrar em contato não apenas com a música tradicional (country music, hillbilly, blues, etc.), mas com os novos ritmos que estavam surgindo, como o rhythm-and-blues e o rock-and-roll.
Robert Shelton descreve, na biografia No Direction Home (1986):
Bob fazia suas viagens ao Mississippi tarde da noite, quando a atmosfera estava mais limpa. Muitas vezes punha o rádio embaixo do cobertor, para não acordar ninguém com o som que estava escutando direto de Shreveport ou Little Rock. Gatemouth Page, um eclético disc-jockey sulista, alternava country music com rhythm-and-blues. Na época em que Bill Haley estava fundindo os dois estilos, Dylan escutava ambos. (Cap. 1, trad. BT)
Os dez primeiros programas da série, de 2006, têm como tema: “Weather”, “Mothers”, “Drinking”, “Baseball”, “Coffee”, “Jail”, “Fathers”, “Weddings”, “Divorce”, “Summer”.
Esse recorte temático dá aos programas uma grande vivacidade, porque a cada número pulamos do blues para o fox-trot, das big-bands para a balada, do country-and-western para o rock. Num mesmo programa, como “Coffee”, ouvimos Frank Sinatra cantar seu elogio ao café brasileiro (“The Coffee Song”), a voz rascante do bluesman Lightnin’ Hopkins, o cantor pop Bobby Darin (o de “Splish Splash”) e a banda inglesa Blur.
Um ouvinte manda uma carta bem humorada dizendo que curte o programa, mas quer saber por que tocam tantas músicas velhas, em vez das novas. Dylan responde: “É apenas porque existem muito mais músicas velhas do que novas”.
O link inicial do programa, com acesso ao áudio de todos eles, está aqui:
https://www.themetimeradio.com/
Bob Esponja Dylan começou fazendo canções “de protesto”, enveredou pelo rock psicodélico, mergulhou nas folksongs da América profunda após o álbum John Wesley Harding; fez música de cunho cristão, e nos anos 1990 lançou duas compilações voz-e-violão que dão uma pista desse seu enorme conhecimento da música invisível (Good As I Been To You, 1992, e World Gone Wrong, 1993).
Seu programa de rádio serve, por um lado, como um vislumbre de sua variada formação musical, mas também o mostra como produto de uma época de extrema liberdade na música norte-americana.
Michael Gray (Song & Dance Man III, 2000) faz uma comparação entre a música popular dos EUA e da Inglaterra nesse período. Na Inglaterra a rádio era estatal (a BBC, uma rádio burocrática onde se procurava apenas repetir os sucessos recentes) e havia apenas quatro grandes gravadoras (Decca, EMI, Pye e Philips).
Nos EUA, em 1961, havia cerca de 6 mil selos fonográficos independentes, e as emissoras de rádio eram fortemente regionalizadas, com os DJs tocando a música que gostavam e a música preferida dos ouvintes de sua área. Mais ou menos como ocorria no Brasil na mesma época. Gray diz: “Levou apenas duas décadas para que o rádio dos EUA se tornasse completamente ossificado, tornando-se um meio dominado pela tirania das fórmulas, movido pela ganância pura e simples.” (Cap. 3, trad. BT).
Sobre o Dylan cantor/compositor, a discussão superficial da maioria da imprensa gira apenas em torno de “cantor de protesto que aderiu à guitarra elétrica”. Isso ignora o conhecimento musical vasto que Dylan nunca escondeu, mas, como um jogador experiente, foi pousando suas cartas na mesa ao longo de uma carreira que já vai com mais de seis décadas.
Eu não tinha nada contra as canções pop, mas a definição de pop estava mudando. Elas não pareciam mais ser tão boas quanto tinham sido antes. Eu gostava muito de músicas como “Without a Song”, “Old Man River”, “Stardust” e centenas de outras. Minha favorita entre todas as mais recentes era “Moon River”. Eu era capaz de cantá-la até dormindo. O meu amigo Huckleberry também estava por ali, à minha espera, esperando quem sabe numa curva da Rua 14. (…) Eu botava para ouvir uma canção fenomenal como “Ebb Tide” com Frank Sinatra, e ela nunca deixava de me maravilhar. A letra era tão misteriosa e estupenda. Quando Frank cantava aquilo, eu podia enxergar tudo em sua voz – morte, Deus e o universo, tudo. Mas eu tinha outras coisas para fazer, não podia ficar somente escutando aquilo.
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