O mercado editorial baiano


LDM e as Festas literárias, EDUFBA e ABRALIC, 2023: o mercado editorial baiano

 

A política do livro e da leitura na Bahia é outra pauta a unir direita e esquerda, que certamente cochicham nos corredores das casas legislativas: “porque haveríamos de investir em produção e difusão de literatura no Estado ou no município, se a grande população negra e pobre da Bahia não se interessa por leitura e sim por pagodão e praia?”. Nisso não diferem em nada dos políticos bolsonaristas que defendiam a taxação dos livros com o argumento de que “pobres não leem”.

Em quase uma década que participei diretamente da cena literária local como editor, pude assistir e colaborar com a produção de uma cena na qual a autoria negra e periférica angariou espaço, aos trancos e barrancos, abriu trincheira e vem fazendo história, com a ampliação de publicações de poetas inéditas, com a criação de coleções e editoras negras e periféricas, o que culminou em um enriquecimento imenso da cena literária baiana. Uma série de editoras surgiram e veem investindo em traduções, ampliação de catálogo e fazendo um trabalho de qualidade, imenso e decisivo, na última década, transformando a cena literária local e nacional. Será necessário, e certamente já é hora, de um texto ou uma pesquisa específica que dê conta desse abalo importante na cena baiana.

Essa empreitada fica para outra hora, pois o objetivo aqui é diferente: por em cena o monopólio do mercado do livro na Bahia. É sabido que o gargalo das pequenas editoras é a circulação das obras; ou seja, publica-se livros importantes, mas não há potencial econômico para sua devida distribuição. As consequências disso são desastrosas em todos os âmbitos: políticos, epistêmicos, editoriais e artísticos. A falta de incentivo estatal à circulação dos livros é demais conhecida, mas sua face é ainda mal revelada e mal discutida, sobretudo em sua dimensão econômica.

Na Bahia, essa ausência de políticas públicas ganha um agravante cruel: a interdição. Isso ocorre de modo discreto e de certa forma indireto, porém muito efetivo. Tentarei descrever um dos aspectos dessa interdição. Nas maiores festas e feiras literárias que ocorrem na Bahia, as editoras que produzem a cena, publicam os autores, realizam os eventos de lançamento, investem na circulação e produção dos livros, são excluídas quase sempre dos espaços centrais de venda dos livros. Esses são sempre delegados a LDM como distribuidora. Dessa forma, para vender nesses espaços, você precisa consignar o seu livro a essa livraria concedendo 50% do valor de capa do livro.

Todos que conhecem minimamente como se estruturam as editoras pequenas, sabem que esse percentual é impossível de ser praticados por elas, já que trabalham com baixa tiragem e o preço de capa para produção do livro é muito alto; sendo assim, a margem de ganho nas vendas é pequena, tornando impossível a distribuição desses livros nas grandes livrarias. Em se tratando de empresas privadas, nada há que as editoras pequenas possam fazer, senão reclamar, impor sua recusa ou conseguir, raramente, negociar algum deságio específico em uma grande loja. A regra é mesmo a produção alternativa de circulação, minorada e escassa, mas autônoma, o que de forma constrangedora acaba indiretamente obrigando as autorias negra e periférica dessas editoras a empresariar a si mesmo, obrigando-se a empunhar a circulação de suas obras nos espaços em que transitam.

Aqui estamos falando de eventos que tem frequentemente o apoio e financiamento direto ou indireto do Estado e do município, e nesse caso é no mínimo estranho que a LDM ou outra livraria qualquer tenha direito de exclusividade sobre as vendas, impedindo que as editoras baianas que produzem a cena local exponham seus livros e visibilizem seus autores nos principais espaços dos eventos. Toda a participação das editoras baianas nesses eventos é tensa, atravessada por negociações desiguais e em certa medida constrangedoras. Não havendo, muitas vezes, praticamente nenhum incentivo à participação das editoras como, stand, transporte, estadia, pois nada disso é mensurado e incorporado nos projetos de festas e feiras. Esse é um comportamento correlato ao tratamento que muitas vezes é dado aos autores que compõem o catálogo dessas editoras. Na verdade, a exclusão das editoras é extensiva a de suas autorias, é claro. Ou para ser mais condizente com as estratégias que atravessam a presença negra no mercado do livro no Brasil hoje: o que ocorre é não efetivamente uma exclusão pura e direta, mas uma integração parcial que redunda em uma aparição controlada. Esse funcionamento permeia parte importante da recente presença negra nas grandes casas editoriais do país, mas isso também é uma conversa que extrapola esse texto.

As participações nessas feiras muitas vezes ocorrem por um efetivo compromisso político das editoras negras, não-negras e periféricas em visibilizar as autorias de seus catálogos, que sem esse esforço teriam a circulação de suas obras ainda mais prejudicadas, já que esses espaços são, muitas vezes, os únicos nos quais autorias e obras são apresentadas a um público que ainda não as conhece. Acreditamos que o espaço lateral que é dado às editoras baianas nos eventos que acontecem no estado precisa ser discutido com honestidade e clareza, partindo do pressuposto que política do livro e da leitura é política de educação.

Porém, um dado novo veio a esse cenário: na última FLICA, a EDUFBA intermediou a venda no evento e, como a editora da UFBA integra o coletivo de editoras baianas, as negociações se deram em termos muito menos predatórios.  As editoras pagavam uma taxa justa e a EDUFBA operacionalizava a venda. Em um primeiro momento há um alívio, pois a EDUFBA cobrou valores consideravelmente abaixo do abusivo percentual praticando pela LDM durante tantos anos. Porém, isso não resolve o problema, pois a EDUFBA não conhece o catálogo de todas as editoras, não pode apresenta-lo ao comprador, não vai recompor o estoque de modo a acompanhar as mudanças das mesas e intensificar as vendas, inclusive não dispõe de pessoal para isso. Como consequência, não pode dar visibilidade as obras dessas editoras em detrimento das suas, pelo fato de a EDUFBA ser uma editora com um catálogo imenso e ter que dar conta de suas próprias vendas.

Essa lógica já não foi repetida na FLIPF, voltando a LDM ao papel de livraria oficial do evento, ocupando o espaço central de vendas, relegando as editoras locais a um espaço distante das mesas principais. Considerando que a presença das editoras na FLIPF não contou com nenhuma espécie de apoio, sendo as mesmas responsáveis pelo transporte dos livros, hospedagem durante todos os dias do evento, alimentações e materiais de uso, o retorno só poderia ser em prejuízo. Distante da mesa principal e da circulação das pessoas, somam-se despesas para editoras locais. Então, a escolha é difícil, pois sobram apenas duas alternativas para as editoras baianas: ou expõem seus livros nos espaços centrais dos eventos perdendo 50% do preço de capa ou vai montar sua banca de livros num espaço lateral que não atrapalhe a venda da LDM?. Em ambas editoras pequenas e seus autores e autoras saem prejudicados.

Como se não bastasse esse cenário cruel nas feiras literárias, essa semana fomos surpreendidos com um comunicado de que a EDUFBA irá coordenar também as vendas de livro no maior evento de literatura do Brasil, o ABRALIC 2023, que contará com as presenças de Anielle Franco, Angela Davis e Conceição Evaristo, além de uma extensa programação. A informação pegou a todos de surpresa, já que o evento sendo em Salvador, ao menos as editoras da cidade, e são muitas, não precisariam de intermediação. Mas como a experiência com a EDUFBA havia sido menos injusta na FLICA, as editoras aguardaram instruções.

Mas a questão se apresentou de outra forma dessa vez: a EDUFBA, associou-se a uma empresa paulista (assim diz a mensagem recebida por algumas editoras) para comandar as vendas no evento, e agora solicita uma consignação de 50%, (assim como a LDM, e qualquer outra grande livraria) e deterá o controle total das vendas; ou seja, os livros são entregues à EDUFBA e ela efetiva os negócios. As editoras e livreiros não poderão participar do evento diretamente. Não entendo como a EDUFBA, uma instituição pública, pode operar com um funcionamento deste. Sou realmente leigo nesse assunto e imagino que haja alguma explicação para esse funcionamento absolutamente neoliberal numa instituição que tem primado pelo seu posicionamento político de defesa da educação pública e de qualidade. Não entendo ainda como a EDUFBA, tendo participado de vários debates nos coletivos de editoras baianas, e por isso estando relativamente ciente da dificuldade que tem sido manter funcionando muitas delas, faça uma proposta dessas, duplicando um modelo que certamente ela condenou até anteontem.

Nos termos postos, as mesmas editoras baianas e livreiros que estão na UFBA, fortalecendo e circulando obras e autores nos diversos eventos de menor porte que ocorrem na instituição, são agora impedidos de participar do evento, quando este é grande e promete uma boa circulação. Creio que é um posicionamento nada condizente com a postura que a UFBA tem adotado ultimamente, como também não creio ser um funcionamento concordado com a direção da ABRALIC, tenho certeza que não. Porém, isso está acontecendo durante o evento e na UFBA, e creio que as instituições devem procurar saber, intervir, operar junto à EDUFBA, propondo lógicas menos predatórias e menos neoliberais no diálogo com a comunidade de escritores, intelectuais e editoras da cena baiana e nacional que queiram participar do evento. E assim, deixem como recado às próximas festas e feiras literárias realizadas na Bahia, que é possível e necessário operar em outra lógica que não essa do monopólio neoliberal.

Por fim, é necessário dizer que um texto dessa extensão não pode nem pretende dar conta da complexidade desse debate. Não é possível aqui escrutinar a presença das editoras negras e periféricas nas festas literárias, como elas chegam lá, onde ficam nesses eventos, se há equiparação dos espaços de exibição das obras entre grandes livrarias e editoras baianas. Não temos ainda o espaço necessário para problematizar a autonomia das curadorias diante da presença e pressão dessas “lojas de livros” nos grandes eventos. Enfim, não há aqui tempo para discutir como se dá essa presença, por exemplo, a partir de “espaços paralelos” incorporados à programação oficial dos eventos, ou ainda discutir os lugares de venda distante dos palcos principais de debate. Não basta, portanto, afirmar que há uma “casa das editoras baianas” na Flipelô; é necessário entender como ela se constitui, os gastos que implicam para as editoras, a discrepância econômica entre elas. Enfim, há um número grande de variáveis que, como sinalizado na parte inicial deste texto, carece de estudos e pesquisas. Oxalá apareçam em breve e boa quantidade.

 

 

 

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Jorge Augusto – poeta e professor, soteropolitano do bairro da Liberdade. É doutor em literatura e crítica da cultura – UFBA. É docente do Instituto Federal Baiano, compõe a direção do Neabi/Itb. Coordena os grupos de pesquisa Perifa/ IF Baiano e Rasuras/UFBA. Publicou “O mapa de casa” pela Circulo de poema, 2023, e como organizador, o livro “Contemporaneidades Periféricas”. E-mail: jorgeaugustodamaia@gmail.com




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