Branquitude gaúcha em ação


Branquitude gaúcha tropeça em sua própria branquitude

[A escritora gaúcha Eliane Marques se posiciona sobre fala do presidente da instituição]

 

O episódio da fala racista do presidente da Academia Riograndense de Letras, sr. Airton Ortiz, é um espelho cristalino do racismo nada velado em que vivemos, que faz os brancos mais letrados tropeçarem nas palavras e dizer o que pretensamente não queriam dizer, mas pensam, e, ao se retratarem, revelar que o que realmente quiseram dizer não foi “exatamente o contrário” do que disseram, mas aquilo mesmo. Retórico, não? Pois é! O racismo velado pelas palavras é sempre retórico e vazio: “Ah, fui mal-interpretado”, “Não foi isso o que eu quis dizer”, e blablablá…

Tantos anos no curso de Letras aguentando aquele palavrório todo das escolas francesas de análise do discurso, aquela chatice de critérios de textualização, intencionalidade, situacionalidade, intertextualidade, e vem um acadêmico com toda a sua fleuma e (in)competência e discursiva nos mostrar como as coisas são de fato.

Os brancos e brancas (ah, não se sintam fragilizados) viveram até agora em uma sociedade que os protege e os desresponsabiliza de toda a crueldade e sofrimento advindos do racismo sistêmico e das hierarquias raciais que eles mesmos produziram.

Esses letrados brancos em postos de comando parecem que ainda não leram Cida Bento, e se a leram não refletiram com seriedade sobre os mecanismos psicossociais que formaram e deformaram a si mesmos para que pudessem manter e legitimar hierarquias e privilégios nutridos e acobertados por um pacto narcísico que Cida Bento caracterizou habilmente com dezenas de exemplos.

Eliane Marques acabara de ser premiada pela própria academia por seu romance de estreia, “Louças de Família”, que também havia vencido o Prêmio São Paulo de Literatura. Esquisito que tenha saltado do inconsciente do presidente aquela fala enviesada sobre o papel da branquitude europeia para o fortalecimento da academia, em detrimento da academia de outros estados nutridos por escravizados. Pareceu incomodado com a ascensão de uma negra naquele panteão da branquitude.

A fala corajosa e soberba da escritora Eliane Marques marca uma virada de chave, mas ainda revela que, na hora H, os negros e negras têm que se erguer, levantar a voz solitária e falar na frente de todos os brancos e brancas presentes. Muitos a apoiaram na ocasião (e isso é louvável), ficaram ao seu lado no palco, mas me parece que o tempo histórico exige algo mais: a reflexão pública, autocrítica e posicionamento dos brancos e brancas em alto e bom som.

O livro “Branquitude: Diálogos sobre Racismo e Antirracismo”, organizado por Lia Vainer Schucman e Ibirapitanga para a editora Fósforo, é desde já o livro recomendado para a leitura de todos os brancos e brancas neste final de ano. Arrisco a dizer que, também, para os negros e negras, pois, nós, negros, precisamos entender e nos desfazer da argamassa que moldou nossos corpos e inconsciente (vide livro da gigante Isildinha Baptista Nogueira, “A Cor do Inconsciente – Significações do Corpo Negro”, Perspectiva.

Uma das perguntas essenciais do livro de diálogos organizado por Schucman e Ibirapitanga é:

“De que forma esses dispositivos de produção de desigualdades raciais asseguraram aos brancos um lugar de conforto racial em que eles não precisam se posicionar e agir contra o racismo?”

O episódio revela muito disso, e outras coisas mais. Se assim não fosse, a ira justa de Eliane Marques talvez não tivesse se manifestado, ou ela não teria se sentido tão mal no dia posterior (essa luta e posicionamento nos deixa em frangalhos psicologicamente, duvidamos de nossa própria identidade…) como revelou em entrevista ao Sul21: https://sul21.com.br/noticias/entrevistas/2024/12/eliane-marques-as-pessoas-brancas-precisam-se-reunir-e-se-levantar-contra-esse-racismo/

Cada um de nós deve se perguntar em qual lugar do auditório está ou estaria (ou gostaria de estar) sentado (de pé, no palco, na coxia, preparando os quitutes posteriores, gelando a champagne) durante o episódio (vejo a altiva escritora Lais Chaffe no palco, de azul, com celular a filmar):

 

 

Eliane em seu Instragram: @elianemarques.escritora

Ontem, 12 de dezembro, ao mesmo tempo em que fiquei feliz por Louças de família (Autêntica Contemporânea) ter recebido o troféu Alcides Maya, na categoria narrativa longa, da Academia Rio-Grandense de Letras, fui tomada por um terror ao ouvir seu Presidente, Airton Ortiz, afirmar, em seu discurso de encerramento, que a imigração alemã e italiana foi responsável pelo pioneirismo do estado na fundação de sua academia em contraposição ao “restante” (de resto mesmo) do País, de maioria “escrava”, que então, por certo, não teria contado com as luzes europeias para tal feito. Não precisamos de grandes ou de nenhum conhecimento da história para flagrar aí algo tão ou mais tradicional que a academia gaúcha – o racismo a partir do qual os feitos ou desfeitos sociais são atribuídos à raça como categoria que aproxima ou distancia da europa, advindo daí, maior ou menor valoração.
O fato poderia ter sido menos trágico se, diante da violência racista, acadêmicos e acadêmicas tivessem interrompido seu Presidente, que representa a instituição; se acadêmicos e acadêmicas, de posse de seu iluminismo, tivessem pedido um aparte para outro tipo de ponderação. Mas não, com o peso de seus fardões e de sua importância, acadêmicos e acadêmicas permaneceram brancamente imantados em suas cadeiras, calados, recebendo elogios e tapinhas nas costas. Sim, para eles/elas, nada havia acontecido que os houvesse mobilizado, apenas uma “negra louca e barraqueira”, vestida de vermelho, incomodava os festejos ao ouvir “racismo em tudo”.
De fato, pensei em me manter calada, também sentada, com meu troféu; tive medo de estragar a festa dos outros – a festa dos brancos. Mas não sou, nem quero ser branca. Então, algo falou em mim.
Agradeço às diversas pessoas brancas que pronunciaram frases de apoio e que subiram ao palco comigo numa manifestação antirracista diante do que havia ocorrido. Mas é preciso que mais e mais se levantem de suas cadeiras de conforto.
Ainda espero (esperamos) uma retratação pública e por escrito da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

Veja e ouça o depoimento de Eliane Marques e a pretensa retratação do presidente Airton Ortiz: https://www.facebook.com/reel/1796597990877228

 

Outros depoimentos:

Jefferson Tenório: https://www.instagram.com/p/DDhUUufOEeB/

O racismo no Rio Grande do Sul não decepciona nunca
Durante a premiação promovida pela Academia Rio-grandense de Letras, o presidente da instituição, @airton_ortiz, proferiu um discurso racista ao dizer que a força da Academia era devida à imigração alemã e italiana e que em outros lugares onde a imigração foi escrava (leia-se negros) não teria sido do mesmo jeito. No entanto, ao ser convocado a se explicar, Airton repetiu a fala argumentando que foi mal interpretado.
Coube a escritora Eliane Marques, vencedora da categoria de narrativa longa reunir forças, convocar os escritores a subirem no palco, manter a calma e a paciência para reagir diante de um discurso tão racista e estúpido.
Dias atrás Eliane Marques venceu o prêmio São Paulo de Literatura, com mesmo livro “louças de família”. É hoje uma das principais escritoras contemporâneas, mas talvez os homens brancos que compõem a academia tenham achado de bom tom dizer para escritora negra que “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”, como diz o hino racista do RS
Semanas atrás, A Feira do Livro de Porto Alegre, numa atitude “bem intencionada” resolveu fazer duas programações: uma da feira livro e outra da feira do livro negra. Ou seja, uma programação separada para “temática negra”, uma programação guetizada para dizer “vocês podem participar da nossa feira, desde que fiquem na temáticas de vocês e não se misturem com a gente”
De fato o Rio Grande do Sul não decepciona quando declararam seu racismo. A Academia Rio-grandense de Letras e a @feiradolivropoa só reproduziram aquilo que o Estado pensa sobre os negros. E como bem disse o poeta @dacostara: “Brancos, vocês não sabem de nada”
Toda minha solidariedade a @elianemarques.escritora

 

Ronald Augusto: https://www.instagram.com/p/DDfzETsuzaZ/

brancos, vocês não sabem o que é isso. vocês não imaginam o esforço que uma pessoa negra tem de fazer pra unir revolta e razoabilidade numa resposta ao racista de plantão que, por sua vez, conta com o silêncio cúmplice de uma audiência branca beneficiária do racismo. vocês não sabem o que é essa solidão, essa parede de preconceitos de que fala o poema em prosa de cruz e sousa, enfrentada mais uma vez agora por @elianemarques.escritora. mulher negra. vocês não têm ideia de como isso é triste e cruel. admoestar a branquesia é muito desgastante, seu supremacismo é sempre entendido como culposo, jamais doloso. por esta razão nossa réplica soa, o mais das vezes, fora da medida, não era pra tanto etc. brancos, vocês não sabem nada. vocês só empatam a vida da gente.
Airton Ortiz, o senhor é um malparido.

post scriptum:
a academia rio-grandense de letras revelou sua total mediocridade moral, intelectual e política.

 

 

Ricardo Aleixo: https://www.instagram.com/p/DDkU2itPmjIN1e-kY4GPToVWjWAajNNo1q18vs0/

DECLARAÇÃO PÚBLICA

Na condição de ocupante da cadeira de nº 31 da @amletras, cargo ao qual me candidatei para responder ao notável empenho da AML em contribuir para a construção de uma história da literatura e da cultura brasileiras marcada pela pluralidade de pontos de vista – juntando a minha voz à de Conceição Evaristo e Ailton Krenak, eleitos antes de mim –, envio o meu abraço fraterno à escritora Eliane Marques, @elianemarques.escritora, pela dupla vitória que obteve, na última quinta-feira, durante a cerimônia de entrega do Prêmio da Academia Rio-grandense de Letras.

Refiro-me à conquista, pela minha admirada amiga, do troféu Alcides Maya, atribuído ao seu romance “Louças de família”, e à coragem que demonstrou ao adentrar o palco para manifestar sua indignação diante da fala de teor racista do presidente da instituição, Airton Ortiz (para quem o “pioneirismo cultural do Rio Grande do Sul” deveu-se à imigração alemã e à italiana, diferentemente “das regiões colonizadas por escravos”, como escrevinhou em sua pífia retratação) e do silêncio conivente da maioria das pessoas presentes à cerimônia.

Para finalizar, quero dizer à querida Eliane Marques que sua dupla vitória sobre a supremacia branca e bronca enche de esperança o coração e a mente de quem, como eu, vê na defesa das instituições (e não apenas as governamentais) uma das poucas alternativas de que dispomos para fazer frente ao obscurantismo que ameaça, ainda uma vez, a democracia, “essa planta”, como escreveu um intelectual digno desse nome, Sérgio Buarque de Holanda, “difícil de medrar nos trópicos”. Que as academias de letras, tão importantes para o fortalecimento do debate sério e consequente sobre a literatura e a cultura no país de Machado de Assis e Carolina Maria de Jesus, passem a incluir entre suas atribuições, como valor inegociável, o máximo, nunca bastante, TOTAL respeito à ALTERIDADE.

Ricardo Aleixo
NY
14dez24

 

 

 

PS.: agradeço aos toques, links e incentivo da escritora gaúcha Lais Chaffe.

 

 




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