Escritos sobre racismo e luta política


 

Em uma manhã de domingo, li na “Ilustríssima” da Folha de S. Paulo uma entrevista com o militante do movimento negro, professor e jornalista Edson Lopes Cardoso. A entrevista, que também foi reproduzida no Portal Geledés, claramente fora motivada pelo lançamento de seu livro Nada os Trará de Volta: Escritos sobre Racismo e Luta Política, editado pela prestigiosa Companhia das Letras.

De suas respostas na entrevista vislumbrei um homem lúcido e culto, com um olhar perspicaz e crítico sobre o racismo no Brasil, sobre o papel da polícia na dinâmica do controle da população negra, o estigma social vivido pelos pretos e pretas no Brasil, sobre a importância das bandeiras do movimento negro, as armadilhas do identitarismo, a necessidade de candidaturas de mulheres e homens negros, e sobre o conceito de responsabilidade coletiva (cunhado por Hannah Arendt) que fundamentou a assertiva de Edson Cardoso ao final da entrevista ao colocar a reparação aos negros como “o eixo central do projeto da democracia no Brasil”.

Fiquei tocado por suas respostas certeiras e pela humanidade que elas exalavam. Fui atrás de seu livro. E ainda mais: consegui seu contato e o convidei para um diálogo na Confraria da Palavra – programa de entrevistas que conduzo no canal da Kotter TV, onde dialogamos sobre sua trajetória e vários de seus livros.

Edson Lopes Cardoso tem 73 anos, é mestre em comunicação pela UnB e doutor em educação pela USP. Fez gradução em Letras. Uma vida extensa de leituras, reflexões e de combate na linha de frente das questões sociais que deveriam interessar a todos nós, não só aos negros.

Em Nada os Trará de Volta, ele nos oferece 151 textos curtos, de extração jornalística, em cima de fatos, notícias de jornais, discursos de políticos, pautas emergentes no calor da hora de nossa história recente.

Os textos estão estruturados em cinco partes: 1. Movimento Negro; 2. Denúncia do genocídio negro; 3. Incidência política; 4. O jornalismo em revista; e 5. Imaginário.

O autor viveu e foi agente histórico das últimas cinco ou seis décadas. Fico sabendo que em plena ditadura militar, no final da década de 1960, Edson Cardoso já estava envolvido com os movimentos políticos em Salvador, sua cidade natal. Em 1980, morando em Brasília, se aproxima do Movimento Negro, tornando-se no final dessa década assessor de Florestan Fernandes e Paulo Paim. Acompanhou in loco os debates sobre o Estatuto da Igualdade Racial de 1998 até a sua aprovação em 2010. Testemunha ocular e auditiva.

De certa forma, esse período todo de lutas e frustrações foram pintados com cores vigorosas e grande capacidade de síntese no quadro oferecido pela seleta dos 151 textos. São testemunhos de um ativista negro que decide não se calar diante da análise e da leitura dos fatos que muitos preferem ignorar ou negar: as experiências dos negros no Brasil e como elas são desprezadas e muitas vezes aviltadas pelos principais veículos de comunicação a partir do enquadramento enviesado das matérias, de seus títulos, da escolha e omissão de termos, e de seus editoriais [a voz do(s) dono(s) do jornal].

Logo na introdução do livro, Edson Cardoso dá a chave para o título e o conteúdo do seu livro:

Hannah Arendt, quando indaga sobre que dano o poder político pode infligir à verdade, ajuda-nos a compreender a importância do testemunho. A verdadeira textura do domínio público, ela afirma, é constituída por fatos e eventos que resultam da ação conjunta de homens e mulheres, e é uma textura muito frágil diante do assédio do poder. E acrescenta: “[Esses fatos], uma vez perdidos, nenhum esforço racional os trará jamais de volta” (Entre o passado e o futuro, Perspectiva, 2007, p. 288).

É nesse embate entre o passado, um presente desolador e a emergência de um futuro ainda em construção que o livro é tecido e as lutas e bandeiras são trazidas ao escrutínio do leitor que, como eu, lembra-se aqui e acolá de muitos dos eventos e fatos, mas por ingenuidade ou falta de acuidade política e textual deixara passar o que estava nas entrelinhas das falas, dos acontecimentos e dos discursos.

Nesse desvelamento está o grande trunfo do livro. Edson Cardoso é um exímio analista de discurso, um craque que escarafuncha o texto, o dito e o não dito, sempre ancorado em uma percepção apurada do contexto.

Pincelo alguns exemplos aleatórios do livro para que o leitor tenha alguma ideia do que estamos falando.

Ao analisar a candidatura de Celso Pitta à prefeitura de São Paulo em 1996 e a ideia propalada de que ele não passava de um fantoche nas mãos de Paulo Maluf, Edson Cardoso propõe outra forma de analisar que realce a “crescente visibilidade da questão racial no campo da política”:

Celso Pitta não é candidato do Movimento Negro. No entanto, é nas trilhas abertas pelo Movimento Negro que o malufismo busca, ainda que superficialmente, se renovar no jogo eleitoral.

E essa visibilidade e agenciamento, ainda incipiente, se deu graças ao trabalho ideológico e reivindicativo do Movimento Negro que, com suas ações, foi minando o “poderoso artefato” de distorção da realidade social gerado pelas elites: o mito da democracia racial.

Cardoso acompanhou também o esgotamento do diálogo entre o PT e a militância negra em meados dos anos 1980. Na sequência, os embates entre um aliado dos negros, Florestan Fernandes, e a Executiva Nacional do PT. Ao se recusar a obedecer o partido, que embarcava em uma conservadora reforma constitucional em 1993, e apresentar uma emenda, Florestan declarou: “Prefiro participar da fraternidade dos companheiros negros e combater por uma democracia plena, na qual a liberdade com a igualdade seja válida como objetivo universal”.

Já em 2001, um ano antes da vitória de Lula para presidente do Brasil, Cardoso alerta para a necessidade do Movimento Negro se fortalecer orgânica e ideologicamente como organização política com o risco de, se não o conseguir, ter suas “políticas de valorização do negro” descaracterizadas e manipuladas para a manutenção da ordem e do status quo.

Somos o segundo maior país negro do mundo depois da Nigéria e, anota Edson Cardoso, continuamos a nos perguntar: “Mas onde estão os negros?”. As nomenclaturas ‘pardo’ e ‘preto’ são, segundo ele, “a expressão de nossa dominação e subalternidade”.  Com a luta de afirmação feita pelo Movimento Negro, a palavra “negro” passou a significar “um sujeito político que articula suas referências de massa para a superação de um quadro de profundas desigualdades”.

Há a constatação, já descrita por Abdias do Nascimento em seu livro clássico, O Genocídio do Negro Brasileiro, de que o “homicídio de negros é fato banalizado no Brasil” e que nem as autoridades governamentais nem o Movimento Negro reagem à altura. Nosso futuro continua esvaindo-se nas valas e matagais das periferias dos grandes centros urbanos.

Nos textos enfeixados no guarda-chuva “Jornalismo em revista”, Cardoso realiza uma leitura rigorosa de textos que tratam da questão negra na imprensa nacional. É uma aula de leitura crítica, de jornalismo e de explicitação de como a ideologia racista imiscui-se no tecido dos textos e das imagens.

Um exemplo é a primeira página do Jornal do Brasil de 7 de abril de 2002, que colocou lado a lado duas fotos com o título do texto-legenda, “Imagens surreais”. O texto identifica Benedita da Silva, a primeira negra a vencer a eleição para o governo do estado, e o palácio Guanabara onde ela se instalará. As imagens revelam uma governadora negra, de um lado, e uma paisagem carregada de sombras, do outro.

Edson Cardoso sintetiza: “Somos testemunhas, na paisagem e na representação do poder político, de mudanças que contrariam a ordem natural das coisas. As imagens não fazem parte da realidade ordinária. Imagens, portanto, surreais.” Para uma negra, que faz parte da maioria demográfica brasileira, governar um estado não é natural, é algo sombrio, que distorce a realidade.

Esses argumentos acima provavelmente são vistos com desconfiança por grande parte dos pretensos analistas políticos e sociais. O que apregoam faz parte do ideário que Cardoso aponta ser facilmente identificável na “leitura atenta de jornais e revistas”. Para eles, “os negros estão perigosamente empenhados na racialização da sociedade brasileira”.

Isso ficou evidente nas tensões e embates gerados para a efetivação de ações afirmativas na universidade, o sistema de cotas. Os argumentos contrários ou apaziguadores vinham de todos os lados, inclusive de pretensos aliados.

Não é à toa que Edson Lopes Cardoso é coordenador do Ìrohìn – Centro de Documentação, Comunicação e Memória Afro-brasileira. Em ioruba, ìrohìn significa notícia. Começou como um jornal e agora está on-line e se projeta como um olorun iranti da experiência afro-brasileira em seu matiz diaspórico.

A imagem escolhida para a capa de seu livro é emblemática e explode as possibilidades semióticas implícitas em seus textos. A obra de Abdias do Nascimento escolhida merece um estudo à parte. Mas este texto tem que acabar. Fiquemos por aqui com esta pequena centelha da galáxia de significados que o livro de Edson Lopes Cardoso enseja. Espero que o leitor considere (no sentido etimológico da palavra) a leitura.

Bastideana nº 3: Ponto Riscado de Exu Cruzado com Xangô, 1972
Abdias Nascimento
sem informação
101,00 cm x 76,00 cm
Acervo IPEAFRO

 

Onde comprar o livro: Companhia das Letras.

 

Nosso diálogo na Confraria:


 

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Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta e editor do site Musa Rara (www.musarara.com.br). Fundou e editou o histórico site de literatura, Cronópios. Estudou Música, Psicologia e Literaturas. Seus textos críticos aparecem no Jornal Rascunho e no site Musa Rara. Lançou em 2020, Pandemônio (poemas) pela Kotter Editorial e, em 2021, Fibonacci blues – uma novela fractal, pela mesma editora. Em 2022, lançou Negrura (poemas), também pela Kotter Editorial. Apresenta quase todos os sábados o programa CONFRARIA DA PALAVRA na Kotter TV. E-mail: sonartes@gmail.com




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