Espiral Lírica

Chamar algo de poesia é reconhecer o ponto em que o sentido se inventa, sem que se perca de vista a possibilidade de compreensão, mesmo que exista, no texto poético, um gesto de negação, de recusa ao explícito, ao que é fácil. Assim, fazer poesia é (e as Musas na Teogonia de Hesíodo tinham razão) “dar a ouvir revelações”.[1]
Tal como um aedo,[2] Marcelo Tápia dá ao leitor revelações sobre a impermanência e a circularidade da vida, sobre a continuidade cotidiana do mito, sobre a própria voz poética e como ela se transmuta com o passar do tempo na vida do poeta. É essa a intensidade que Ascensões e Descensos, novo livro do autor (Editora Madamu, 2025, 160 p.) consegue impregnar em cada um dos poemas escritos. Obra de um poeta que domina o ofício, mas ainda se permite o assombro, o volume é uma meditação sobre os movimentos da existência: subir e cair, criar e dissolver-se, viver e, por fim, compreender o limite.
Logo no poema de abertura, “Acorde”, essa tensão entre plenitude e finitude se anuncia com clareza quase musical:
O dia estava tão vívido
que não os desolaria
saber que era o derradeiro:
sol soberbo, céu cerúleo.
Da sola dos pés aos olhos
voltados ao infinito,
sem mirar em seu futuro,
os corpos vibravam notas
livradas de seus conflitos.
O poema sugere uma epifania. O instante mais vivo é também o último — e o que resta é o canto, essa vibração liberta que antecede o silêncio. Assim começa o percurso de Ascensões e Descensos, livro que se organiza como uma espécie de espiral lírica: parte da impessoalidade e avança até o íntimo, num movimento que espelha a busca de uma voz que se reconhece e se desfaz, sem jamais se fixar.
Tápia divide a obra em quatro grandes blocos: Introito impessoal, Terceira pessoa, Segunda pessoa e Primeira pessoa. Essa sequência, longe de ser arbitrária, reflete uma descida gradual em direção ao sujeito poético, um itinerário que vai do universal ao pessoal, do mito ao corpo, do canto coletivo à solidão confessional.
Nas seções iniciais, a natureza e os elementos (fogo, ar, terra, água) se impõem como espelhos da condição humana. Depois, na Terceira pessoa, o poeta revisita o imaginário clássico com figuras como Elpenor, Anticleia e Tirésias, personagens presentes na literatura grega que aqui transitam por espaços urbanos e existenciais.
A Palinodisseia em canto único é o ponto culminante dessa travessia: uma reescritura contemporânea da Odisseia, em que os heróis se tornam pessoas comuns, portadoras de humanidade e fragilidade. É como se o épico se instalasse no cotidiano, e a grande aventura de Odisseu se desse agora nos becos, nas casas ruídas, nos gestos mínimos.
Tápia alterna poemas breves e longos, narrativos e meditativos, redondilhas e decassílabos, numa variação rítmica que impede qualquer monotonia. O vocabulário, ora técnico, ora popular, vai do grego ao tupi, do termo botânico à expressão coloquial. Essa convivência de registros é uma das marcas mais belas do livro: mostra que a língua poética pode ser ao mesmo tempo erudita e próxima, precisa e humana.
A erudição de Marcelo se manifesta de modo sutil, sem parecer um tratado ou uma autopromoção: está presente nas referências ao mundo grego, no destaque dado ao título da seção “olhos de coruja” – que precede o poema Athene Noctua (p. 29) – na capa em que surgem os glaucos olhos da coruja, cindida em metades em que o claro e o escuro reforçam a tensão das contradições que encontraremos ao longo do livro.
Em meio a essa tessitura, há espaço também para o humor e a ironia, discretos mas certeiros, e para um olhar que nunca abandona a reflexão filosófica. O poeta parece sempre consciente de que a palavra é matéria viva, e que o gesto de escrever é também um modo de existir no tempo.
Na parte final, escrita em primeira pessoa, a voz do poeta se torna mais confessional. A velhice, o fazer poético e o balanço de uma vida se entrelaçam num tom de serenidade e lucidez. Em “Era de ideias libertas”, o autor faz uma reflexão sobre “o pensar que deslimita” na velhice (p. 146), diferente da estultice da juventude.
Não há lamento nem melancolia — apenas aceitação e humor. A descida, afinal, também é parte do movimento da vida. E o que permanece é o olhar, o verbo que observa, o som que vibra entre o silêncio e a luz.
Um poeta em pleno domínio
O livro traz um posfácio do poeta e tradutor Leonardo Antunes, que sintetiza com precisão o alcance dessa obra:
“A um poeta sério, talvez um dos maiores medos seja o de diluir sua própria obra: repetir-se e tornar-se uma caricatura de si mesmo. Poucos são os que conseguem a façanha de manter a excelência e continuar buscando o novo: ou ousam de forma irresponsável ou atêm-se ao terreno já explorado. Com seus últimos livros, e especialmente neste, Tápia se confirma como um dos maiores poetas de nossos tempos, e um dos poucos capazes de seguir nos surpreendendo.”
É difícil discordar. Ascensões e Descensos reafirma Marcelo Tápia como um dos nomes mais vigorosos da poesia brasileira contemporânea, o poeta que, ao atravessar o mito e o tempo, encontra no cotidiano a matéria do sublime.
Na era da efemeridade das relações, da pressa e do ruído, sua poesia nos convida ao contrário: seu texto é escuta e reflexão sobre o eterno. É ali, nesse espaço entre o alto e o abismo, que a palavra ainda respira.
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[1] Trecho extraído de Teogonia, versos 26-28, em que as Musas (deusas gregas, filhas da Memória e de Zeus) se apresentam ao poeta Hesíodo. Tradução de JAA Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 103.
[2] Poeta-cantor da Grécia Antiga que compunha e recitava (ou cantava) poemas épicos, muitas vezes com acompanhamento de instrumento musical como a lira ou cítara.
Maria Ester Cacchi entrevistou o poeta no YouTube. Confira:
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Maria Ester Cacchi, mestre e doutoranda em Estudos Literários pela UNESP-FCLAr (Araraquara), é organizadora do clube de leitura “Vamos ler Tucídides” e integrante do Grupo de Pesquisa Estudos sobre o Teatro Antigo da USP. Licenciada em História e Geografia, atua como professora desde 1997. Mantém um canal no YouTube dedicado à divulgação dos Estudos Clássicos e das pesquisas acadêmicas na área. Possui ampla experiência nos campos da Educação, História e Literatura Grega.
        
        



































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