Quatro poemas
……..[fragmento de capa do duo fluminense Lagarto Rei]
.
.
DIALETO AÇAFRÃO
.
estupor,
algo que cresce
por dentro
do punho
até as estrelas;
tinge o céu
noturno
de vermelho,
cor-
tumultuária
ou facho
de luz
com seu dialeto
açafrão,
com sua astúcia
de minério
e de flor.
música estranha
que invade
os ossos
e a pele,
se espraia
da nuca
aos tornozelos
de fogo-fátuo
ou íbis
totêmico,
amor amarelo
ou explosão
do sol.
.
.
JANELAS DE NINGUÉM
.
extinto estuque
e manchas de bolor;
vidro moído,
restos de arestas,
esqueletos
de estantes.
Nenhuma lua
amarela
brilhando
sobre caixas
de papelão,
esferas de isopor
e resmas
de papeis
dispersos,
infinidade
de tocos de cigarro,
revistas velhas,
fios soltos,
emaranhados,
e uma dolorosa
solidão.
.
.
MENOR, MAIOR
.
coração
podre
do rei
menor
do país
maior
coração
podre
do herói
farsante
oligarca
obscuro
coração
podre
de quem
proclamou
o pacto
das elites
com seu
grito
operístico
obsceno
retórico
que o povo
não ouviu
coração-
imundície!
o país maior
não será livre
com gestos
encenados
de mímicos
com gritos
ou urros
de príncipes
milicos
condes
barões
ou ogres
do agro-
negócio:
joguem
fora
esse
coração
de merda!
operário
e camponês
farão
do país maior
pátria
soberana!
.
DAMA DA MORTE
.
A mulher que matou os peixes
nada sabia das ilhas japonesas,
de suas cachoeiras, rios e cascatas;
nunca reparou na beleza ondulante
dos pequenos dragões vermelhos
brancos, amarelos, prateados
nem viu as “imagens do mundo flutuante”
pintadas em gravuras de madeira coloridas
nem as pipas em formato de peixe
hasteadas por meninos em dias festivos;
a mulher que matou os peixes
nada sabia sobre as antigas histórias
que as avós japonesas contavam aos netos:
que as carpas nadavam contra a correnteza
saltavam cascatas e até mesmo montanhas
para depositarem os seus ovos
e por isso dizia-se que eram dragões.
Não, a néscia nada sabia dessas histórias
e mesmo que soubesse, não faria diferença:
ela só queria roubar as pequenas moedas
jogadas por turistas no lago do Palácio.
.
.
Claudio Daniel é poeta, tradutor e ensaísta. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP), onde se formou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese A recepção da poesia japonesa em Portugal. Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG. Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em 2007, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo entre os anos de 2010 e 2014 e colunista da revista CULT. Publicou mais de vinte livros de poesia e ficção, incluindo Sete olhos e outros poemas (Córrego, 2022), Cantigas do luaréu (Arribaçã, 2022), ambos de poesia, e o romance A casa das encantadas (Kotter, 2023). Atualmente, Claudio Daniel é editor da revista eletrônica de poesia e debates Zunái, do blog Cantar a Pele de Lontra (http://cantarapeledelontra.blogspot.com) e ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética, curso realizado à distância, via internet.

Comente o texto