Com quantos nuncas se faz o quase?


A poesia brasileira produzida na última década – período conturbado de nossa história, abalado por um golpe de estado e um regime semifascista que ameaçaram destruir a democracia – é uma poesia pluralista, tão heterogênea e diversificada que não se enquadra nos escaninhos habituais da crítica literária e da academia.  Hoje não temos novas teorias poéticas ou movimentos de vanguarda, ao contrário do que houve das décadas de 1950-1960, e é possível reconhecer mesmo um certo conformismo estético, ideológico e comportamental em muitos autores de agora, mais interessados em concursos, prêmios e na temporária fama midiática do que em pesquisar novas possibilidades para a escrita poética. Para tais autores, uma citação em algum jornal diário, uma entrevista, uma publicação por uma grande editora ou o prestígio na universidade são os objetivos a serem alcançados. É um triste paradoxo que isso aconteça exatamente numa época em que há tantas ferramentas tecnológicas à disposição para o trabalho poético! Além das mídias sociais, Facebook, Instagram, YouTube, Tik Tok, da publicação banal de selfies e vídeos, há uma infinidade de recursos eletrônicos que poderiam ser utilizados em formas poéticas totalmente novas, mas esse talvez será um desafio para outro futuro, ainda distante, quando poesia e tecnologia enfim se reconhecerem como irmãs siamesmas. Vamos falar sobre o hoje! E claro: também é possível a invenção no campo da palavra escrita, nosso território comum. Na contramão da passividade bovina,  do “coro dos contentes” e milk-shakes angelicais, que nada acrescentam à evolução das formas na poesia brasileira, há autores que estudam, investigam, se interessam pelos poetas mais densos, herméticos e inventivos da Modernidade – de Cummings a Lezama Lima, de Paul Celan a Herberto Helder, de João Cabral a Haroldo de Campos – e se lançam a escrever aceitando todos os riscos, inspirados por um ideal ético e estético confuciano, traduzido por Ezra Pound como make it new: faça-o novo. Ou, como traduz Augusto de Campos: Renovar / dia a dia / sol a sol / renovar. O diálogo criativo com a tradição literária não significa imitar o inimitável, mastigar o já mastigado, e sim iluminar os trajetos ainda não totalmente explorados na arte poética: o que significa buscar desde a poesia asteca e suméria, iorubá ou coreana, mongol ou yanomâmi até as invenções ainda não plenamente assimiladas de um Sousândrade, um Pedro Kilkerry, um Arno Holz, um Gerard Manley Hopkins, para citar poucos nomes.  É com felicidade que reúno nesta breve antologia alguns dos novos poetas brasileiros que pertencem à excêntrica família dos insatisfeitos com a banalidade; jovens ou autores maduros que estudam, pesquisam, estão com as antenas bem ligadas, recebendo os “estranhos sinais de Saturno” para a busca de outras fronteiras, outros roteiros, outros pontos de vista sobre o que é escrever poesia hoje. E apresento aqui, aos leitores de Musa Rara, estes poetas raros.

 

 

Isadora Salazar

 

TARDÍGRADOS NA LUA

(Excerto)

 

Muitos esperam a chegada do meteoro.

Eu não.

Eu não espero o grande evento.

Nem a praga zumbi que apodrece a alma.

Eu apenas espero fazer os cálculos certos.

Desviar de Marte e talvez rezar para que o ricochete gravitacional em um asteroide errante não me atire contra o the last mangará de bananas vermelhas cultivado sobre a Terra; ou contra a órbita da própria Lua.

Muitos, ou talvez muito pouco de todos, esperam a chegada de um último meteoro e esses não estão nem aí para o extermínio em massa dos dinossauros ou para a chuva de cinzas que ferve sobre São Paulo; ao contrário, cultivam os mais selecionados ovos das baratas tropicais capazes de desenvolver ferrões e envenenar seus pequenos cães que ganem sem fôlego dentro de seus despersonalizados apartamentos de passagem.

Ou de paisagem.

E muitos esperam a chegada de um último meteoro.

Mas eu não.

Eu sou a grande destruição.

Eu sou a porra do Melancholia que já cobre de estática tudo por onde resvala.

Eu sou o Nibiru que nasce no horizonte invisível de todas as manhãs bem ao lado do sol que nos manda levantar e comer uma média de pão com um queijo mais do que amarelo e tartrazina.

E eu sou o cometa. O último cometa que detonou o Golfo do México, e também sou o vulcão, o último vulcão que derramou lava sob a placa tectônica do Pantalassa e roubou todo o oxigênio de dentro das fossas abissais repletas de plástico do OceanoAtlânticoPacíficOPacíficAeGentilAmadaMãeTerra — que És quem Eu Sou.

PlásticoPlâncton.

 

Mas eu também sou o agrotóxico.

(a dor espargida por um deus indústria)

E eu também sou bateia.

Mas ninguém sabe que eu posso ser Batheia.

Ninguém nunca sabe de absolutamente nada.

E então todos simplesmente esperam.

E esperam mundiados entre suas telas e teias repletas de bons avatares a chegada de um único e grande meteoro que cause o grande evento, o tufão sobre o Haiti, o Ebola sobre um CongoHardMode, ou o maremoto sobre as costas leste/oeste e mais a extinção em massa de todas as abelhas polinizadoras da Amazônia. Mas eu não. Porque eu posso ser o arco flecha  martelo de um Deus Marvel Caveira Senhores Exus DCCompany Pantera Negras Curupira Thor que talvez nem saque nada de grandes poderes ou de grandes responsabilidades — mas que é a potência de um punho vestido de luvas negras sobre os apartheides desse e de todos os outros tempos.

Tempo.

Tempo.

Tempo.

O metrônomo sem pesos.

O Tempo.

“Doze jovens coloridos dois policiais cumprindo o seu maldito dever”.

O Tempo.

O Moon Walker.

 

Isadora Salazar, nascida em Belém do Pará, é escritora.  Publicou os romances Água de mortas, Editora Patuá, 2017, e Phantalassa ou Aconchego-me sobre metralhadoras, Mezanino Editorial, 2021. Publicou O mito de Horácia Bigbang – Série Lições de Continentes – Lumme e Polichinelo e Mezanino Editoras, 2021. Participou da Antologia Na grande noite arquitetada, Mezanino Editorial, 2022, entre outras obras. É formada em Direito, Música e Gestão de Eventos Culturais. É mãe de dois filh@s, quatro gatas, e uma vira-lata chamada Beibei; Isadora nasceu com outro sobrenome e, emancipada desde os 16 anos, costuma dizer que nasceu dos pés de jasmim da Ilha do Mosqueiro. Seu nome artístico é uma homenagem à sua avó materna, que a criou. É formada em Música, Direito e Gestão Cultural.

Links: https://linktr.ee/isadorasalazar.

Sites: isadorasalazar.com.br  e bicudaocriativo.com.br

 

***

 

José Ricardo

 

POEMA-FRAGMENTO N.1

 

There will be time, there will be time

polegada por polegada cresce verde

entre o concreto

sua seiva nasce aos quebra-queixos

como um rio alaga à conchas sua fauna

no centro se estendem estames

onde o pólen torva ao vento

da face cinza vem

amaryllis sorriso sempre Vermelho

 

José Ricardo é poeta, estudante, reside em Maceió e colabora em revistas  eletrônicas.

 

***

 


Iolanda Costa

 

ORAL

a Martha Galrão

 

o amor nasce do céu-

-da-boca aguada

 

úmida-furna-úmida

da serpe papilada

loca valada de saliva

 

sublíngua a Língua

sublíngua

o amor amarasmado

da partida

 

o beijo-cuspo e glossal

do amor banhado

 

a marinheira náufraga

de lambida

 

 

IolandaCosta (Itabuna-BA). Editou, artesanalmentefolhetos de poesia Às Canhas as Palavras Realizam Mil Façanhas (1990), A Óleo e Brasa (1991) e Antese (1993). É autora de Cinema: Sedução, Lazer e Entretenimento no Cotidiano Itabunense (2000), Poemas Sem Nenhum Cuidado (2004), Amarelo Por Dentro (2009), Filosofia Líquida (2012) e Colar de Absinto (2017). 

 

 ***

 

Guilherme Delgado

 

À PROCURA

 

Procuro no cerne

de tudo um sentido

como quem tateia

um corpo no escuro

em busca das mãos

convulsas da língua

que não se revela

alheia mas nossa

visto que se anima

como algo que já

nos pertenceu algo

como um alfabeto

herdado de antiga

civilização.

 

 

Guilherme Delgado é poeta e tradutor. Bacharel em Tradução e mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba, é doutorando em Letras pela Universidade Federal do Paraná. Participou das plaquetes Tanto mar sem céu (Lumme Editor, 2017), A noite dentro da ostra (Lumme Editor, 2019), além da antologia 80 balas, 80 poemas (Zunái, 2020), organizadas por Claudio Daniel. É autor de : (Patuá, 2017) e atualmente se dedica à tradução de Personæ (1926), de Ezra Pound.

 

***



Sávio de Araújo

 

FISSURA

 

Crescem os ventos

na virada do inverno

 

Pernas caminham

entre árvores secas

 

Sofre o alimento

repartido pelas bocas

 

Crescido como nós

em servidão ao sol

 

Sofre o solo

com as estações

 

E nossas bocas

com as pragas

 

Sávio de Araújo é poeta e psicólogo, nascido em 1992 na cidade de Macaé/RJ. Publicou o livro “A Carne da Era” pela editora Lumme Editor.

 

***


Sílvia Pereira

 

A VIDA JÁ FOI NUVEM

 

o sol dava as caras

na senzala flutuante

era ela, sempre ela

com sua cor avelã

mãe sem filhos

parto após parto

suor, sofrimento

vida preta

que se apaga

chora antes

que o outono

vá embora

depois que o inverno

castiga

num verão

que não chega

pois a vida já foi nuvem

e ela Clara, já velha,

se matou.

 

 

Sílvia Aparecida Pereira é professora de Português há 27 anos (LETRAS – UNIFAC); pedagoga (PEDAGOGIA – UNESP -UNIVESP), escritora, poeta, revisora, ghost-writer, palestrante. Atualmente cursando pós em Neuropsicologia (Faculdade Zayan – MG);

 

***

 

Jorge Amâncio

 

BARÃO DAS BALADAS

no bordel

do mosteiro

a coreana-

– clorofila

seduz

a noviça

possuída

pelo crocodilo-

-cogumelo

 

gélidas-

-prostitutas

) notáveis

fadas

magnéticas (

bonecas

da falésia

surfam

na pororoca

 

a mortalha

sangrenta

da possuída

ostenta

o abade-

-alazão

nocauteado

nas cordas

do violão

 

Jorge Amâncio é licenciado em Física, com especialização em Matemática para Professores e em problemas de geometria, todos pela Universidade de Brasília, tendo publicado NEGROJORGEN e BATOM D’AMOR E MORTE, NÓS OUTRXS e HAIKUS em Preto e Branco. Poemas publicados em inúmeras antologias, revistas e jornais.

 

***

 

Luís Perdiz

 

VENTANIA

pelas florações do milagre
pelos órgãos do universo
pela paixão pré-histórica
pelas espécies das luzes

a árvore dança
irriga a carne dos deuses
e o sangue do sol

avigora o vulto da onça
umedece a força feminil dos frutos
em sua adolescência boreal

entre pétalas viajantes
carrega a cura da própria voz

.

.

Luís Perdiz nasceu em Campinas/SP. Poeta e editor, coordena a revista eletrônica Poesia Primata, especializada em literatura brasileira contemporânea. Ao lado de Vanderley Mendonça, organiza e apresenta o evento de poesia e experimentação sonora Sinais de Saturno em São Paulo. Desejo de terra, seu livro mais recente, foi contemplado com a bolsa de Criação e Publicação Literária ProACSP. Com prefácios de Jorge Mautner e Claudio Willer, a obra retoma suas principais influências: o modernismo brasileiro, a tropicália, o surrealismo e a geração beat


***

 

 

Sidnei Olívio

 

PRINCÍPIO OCULTO DA MÃO

imaginar cenas e acenos (lágrimas
para os olhos que umedecem
palavras, cintilam o fantástico):

uma quimera no cio boiando
na fonte, uma sombra
no ócio com cílios postiços,

uma flor-de-cera no jardim
da babilônia, um robô de terno
com begônia na lapela, cela

secreta do insólito segredo
a decifrar cores naturais do estranho

imensurado, coisas que não são

e se movem feito bólidos
estelares fora do próprio eixo,
eis a engrenagem do sonho –

um segundo de magia
que transforma em estrela
corola de um girassol.

 

Sidnei Olívio, natural de São José do Rio Preto, SP, é biólogo de formação  e poeta por convicção. É autor dos livros  “Zoopoesia”, 1999 (em coautoria); “Poesia Animal”, 2000 (em coautoria); “Mutações”, 2002 (em coautoria); “Concretos & Abstratos”, 2003; “O limite da razão”,  2011; “Uni-verso: a natureza da poesia e a poesia da natureza”, 2012; “A transgressão da palavra”, 2013; “As sete faces da cidade”, 2014; “O que desmanchamos em pedaços”, 2017; “A visão poética do abismo”, 2018; “Poesia Invertebral”, 2019 (e-book bilingue em coautoria); “Poesia é um lugar que não se revela”,  2021; “Tratado das Significações originais”, 2022; “signos de passagem”, 2023.

 

***

 

Paola Schroeder

 

SILENTE – ALL OF ME

 

I

Nunca saberemos quando

nos colocarão em cárceres:

nossas próprias palavras.

 

Como sempre o silêncio.

Faminta como também

o silêncio do outro.

 

Pela tua pele o oceano doce

que naveguei com os dedos,

as pernas e a língua.

 

Hoje penso em meus ossos,

e o movimento infindo

que não te alcança.

 

II

“Minha fome é matéria que você não alcança.”

Maria Bethânia

 

Meu mito de Sísifo

desfeito na delicadeza

das covas do teu sorriso.

 

Cortázar disse uma vez:

Não podemos escolher a chuva.

 

Bastou um sorriso

e meu avesso derrubou

todas as constelações.

 

Desdobrei

fibra por fibra

meu coração.

 

Como pó

me senti só

entre as palavras.

 

Na ânsia

eu não soube

tecer desejos,

 

fazer os pontos certos

que um dia serviriam

de rede ao teu afeto.

 

III

Mas de sobreaviso lhe digo:

 

Levo um pássaro na boca,

pois acredito na viagem.

 

Em tempo reafirmo

que me doo

para que meu ser

te sirva de refúgio

 

E quando me procurares,

e somente neste momento.

 

A língua dará vida ao pássaro

que junto das tuas pétalas

encontrará a primavera.

 

Paola Schroeder nasceu em Toledo (PR). É designer de interiores, poeta, artista e graduanda de Filosofia na UNIOESTE, universidade estadual do oeste do Paraná. Publicou o livro À Beira da Palavra, participou da plaquete Tanto mar sem céu (Lumme Editor, 2017), e tem seus poemas publicados em revistas literárias e jornal de literatura como Germina, Zunái, Rascunho, entre outros.

.

***

Nara Fontes

.

AROMAS

 

na asa da noite o frescor da manhã

desata o medo assanha a vista

 

zumbido de nuvens acolhem

pássaros prenhes

arrepiam a pele do vento

 

no horizonte o verde

entorpecido de passado

distrai a retina

 

vagalumes resistem ao ocaso

negligenciam a escassez da lua

 

um gole de café

acorda a despedida

 

 

Nara Fontes é gaúcha, engenheira civil e mora em Brasília. Integra a equipe gestora do Coletivo Celeiro Literário Brasiliense. Poemas seus podem ser encontradas na página Nara Fontes – Poesia, no Facebook. Prepara a publicação de seu primeiro livro solo de poemas.

 

***


Jade Luísa

 

MONÓLOGO AO FIM DO MUNDO

 

jamais imaginei que você fosse tão lento

nenhum samba é tanta madrugada

 

 

quando você aparece

sopitando como se nada fosse acabar

são as cidades que morrem

não aquelas que nascem do ilegível, mas aquelas

que engolem gente

 

todo mundo sabe que as cidades nasceram para morrer

 

a história estremece o chão como

elefante centenário empalado

pelo próprio marfim

 

III.

 

não há fim do mundo que me faça perder o seu tango

não há fim do mundo que me faça perder a fome de feijão com angu

não há fim do mundo que não habite o oco dos ossos

e morrer parece mais uma metáfora para esquecer

as crianças naufragadas, baleias jubarte

 

não há fim do mundo que reconquiste o litoral sergipano

nem tiroteio que extermine vermes

 

jamais imaginei que você fosse tão lento

nenhum tiro mata tão devagar

 

nenhuma língua demora tanto a deriva

nenhum samba demora tanto o choro

 

 

sinto o rosto do vento e é bom sentir o rosto das coisas

sinto a chuva fina – quase não-chuva

e a cidade gela

e sentir frio é estar um pouco viva

mesmo que tenhamos morrido a cada morte não chorada

mesmo que eu seja um lobo laranja

morta queimada, sinto frio

há um átimo entre frio, calor e morte

 

há tantas cores no vento do fim do mundo que já não parece

vento, nem abismo, nem morte

parece algo a mais que abismo ou morte

balbucio o que seria rosto-de-abismo

invento nova língua

aquela que não pude inventar enquanto amava

 

– quem ama inventa línguas todos os dias

e esquece a cada madrugada

 

 

 

o fim do mundo me parece como humildemente

encarar a gota que cai do pico

e se vê cada vez mais próxima de ser

quase morte

 

 

Jade Luísa nasceu em Natal (RN) e radicou-se na capital do país. Estuda Letras na Universidade de Brasília, tem uns pares de poemas publicados em revistas virtuais e participou da antologia “As luas: o amor e suas variações”, pela editora Lumme (2020). É autora do livro “O olho esquerdo da lua” (Penalux, 2021), atriz e dramaturga do Coletivo de Teatro Enleio – DF.

 

***


José Couto

 

MÁQUINA DO MUNDO

 

nada se compara a esse entardecer

a lágrima do sol avermelha o rio

sem culpas esculpe desejos no silêncio

 

mas quem verdadeiramente se importa?

e no entanto essa beleza impregna de avessos

a delicadeza que finda na luz que se despede

 

tão pouco ofereceu esse dia que parte

talvez um minúsculo fragmento de folha

sendo levada sem rumo

pousou seu desvelo aos meus pés

e depois partiu em frêmito alucinante

 

mas quem verdadeiramente se importa?

 

entretanto agora nesse porto

esvaziado de opacidades

desprende cheiros familiares

algo não tangível

porém me escapa seu sentido

se há algum

transborda preso na garganta

do tamanho de um navio atravessado

 

mas verdadeiramente

alguém se importa?

 

a escuridão chega

e nos abraça implacável

vislumbro longe

às fragilidades que o mundo sussurra

despido do tempo que o dia me furtou

reparo nas indeléveis cicatrizes

que os cravos dilaceraram no centro das mãos

 

e nesse exato instante

revela-se a epifania das infinitudes

perfumes óleos avelãs

a mirra o incenso e o indecifrável

 

subitamente desaguam

desconcertantes

 

acendo o último cigarro

caminho sobre às águas turvas

anoitecidas sem compaixão

 

na margem orixás

babalorixás me saúdam

homens e mulheres registram nos celulares

ambulantes oferecem bugigangas

 

todos aguardam

 

antes de tocar as pontas dos dedos

na pele úmida do afluxo

uma esfera esdrúxula

circunspecta drummondiana

de cor incerta

emite permanentemente

um mantra stotram

cruza o céu de ponta a ponta

em porto alegre

 

mas me diga leitor

quem verdadeiramente se importa?

 

José Couto (Porto Alegre/RS). Professor e poeta brasileiro.  É o autor de “A impermanência da escrita” Editora Alcance (2010), “O Soneto de Pandora” Editora Penalux(2017) “O Unicórnio do Sul e outras lendas poéticas” Editora Autografia(2018). “SETE CÂNTICOS NEGROS e Outros Tantos Orikis Negros e Índios”.Camino Editorial(2022)

 

***

 


Isa Corgosinho

 

O SER E A LINGUAGEM

 

Vagávamos nômades

à merce dos instintos

sentidos afiados

guiados pelas coisas

 

Nos tornamos sedentários

e o fogo moldou

mãos de barro

fixar a experiência

nas rochas de granito

— o ícone

nos tambores

na fumaça

— o índice

de nossos passos

 

Pela falta

aprendemos a dizer

as coisas

depois de desenhá-las

 

A necessidade de revivê-las

nos impulsionou o ato

simbolizá-las —

para não as perdermos

eternizá-las —

na ausência

de nossos olhos

 

Pela insistência da escuridão

dizemos a luz

e as cores projetadas por ela

 

Pelo obsessivo desejo

perdemos a pele

dizemos o desejo

 

da incapacidade de amar –

morte dos sentidos

dizemos o amor

 

na automatização da linguagem  –

dizemos a poesia

 

luta ontológica

entre o ser –

ressignificamos –

o nada

 

Isa Corgosinho é de Brasília/DF, professora universitária, aposentada, poeta, ensaísta. Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Livro Memórias da pele (Venas Abiertas – III – Mulherio das Letras, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022), entre outras.

 

***

 

Flávia Ferrari

 

SÉCULOS

 

Querer não basta

É preciso rastejar pelo território sem trincheiras

Sob as balas que cruzam e tiram a pele

 

Sonhar de nada vale

É preciso subir ao palco e assassinar o rei

Desligar o som e encerrar o show

 

Viver não é suficiente

É preciso morrer cem vezes

E outras tantas

Para que o tempo seja generoso

 

E restaure o humano revolucionário

Que possa enfim descansar

Sem sentinelas

Sobre a terra que lhe foi devolvida

 

Flávia Ferrrari é poeta e professora da rede pública de São Paulo. A autora lançou, em novembro/2021,  o seu primeiro livro de poemas, intitulado “Meio-Fio: Poemas de Passagem” e recentemente “É Tudo Ficção”, ambos editados pela Toma Aí Um Poema, o maior podcast de leitura de poemas lusófonos.

 

 ***



Ana Rodrigues

 

MEMARES

 

Navegando

no tempo

memórias

da vida

fragmentos

de alegria

cicatrizes

de dor

A certeza

passou

ondas

de imagens

de cheiros

e sons.

O horizonte

despontando

renova

a perspectiva

de singrar

o mar

final

avassalador

 

Ana Rodrigues é professora por vocação, autista/ diagnóstico tardio, TDHA/ passiva, mãe amorosa, vó de gatinhos. #60. Busco nos poemas a voz que sempre se escondeu no mutismo irrestrito.

 

***

Edelson Nagues

 

O pastor
.

O pastor e o bumbo na praça.

O pastor e a bíblia reaça.

O pastor e a baba da raiva.

O pastor e a mente na caixa.

O pastor e a falsa palavra.

O pastor e a sanha da farsa.

O pastor e a senha da foda.

O pastor e o sinal da besta.

O pastor e a saga antiética.

O pastor e a sua suástica.

 

 

 

Edelson Nagues é mato-grossense radicado em Brasília-DF. Tem textos publicados em diversas antologias e revistas literárias, como Mallarmargens, Musa Rara, Germina, Zunái, Ruído Manifesto, Samizdat, Traços e Escrita Droide, entre outras. Publicou os livros Humanos (contos), Águas de clausura (poesia, X Prêmio Asabeça), pela Editora Scortecci, e Palavras para estrangular silêncios (poesia), pela Editora Patuá. Organizou a antologia de contos Respeitável público: histórias de circo e outras tragédias (Ed. Penalux).

 

***


Ewaldo Schleder

 

TEMPO

 

Sempre nas efemerâncias

se faz presente,

a brecar o passado,

a quebrar o futuro.

Pelos vãos e pelas frestas

A medir paixões

sela os amores.

As tetas, as festas.

Lastreado de ouro ou de lata.

Na parede, apenas o som,

de hora em hora.

Ele – e o vento.

 

 

Ewaldo Schleder Filho nasceu em Curitiba, estudou Direito, Jornalismo e Publicidade. Quase a totalidade de seus escritos encontra-se em jornais e revistas – nacionais e algumas internacionais. Integrou a coletânea Dez poetas do sul e co-editou o livro Mercosul no divã. Foi premiado pela Fundação Cultural de Curitiba, curadoria de Décio Pignatari, com o clipoema Ezra Pound. Publicou o livro de poemas Leite de pedra pela editora Kotter.

 

 

 

 

.

.

Antologia organizada por

Claudio Daniel é poeta, tradutor e ensaísta. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP), onde se formou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese A recepção da poesia japonesa em Portugal. Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG. Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em 2007, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo entre os anos de 2010 e 2014 e colunista da revista CULT. Publicou mais de vinte livros de poesia e ficção, incluindo Sete olhos e outros poemas (Córrego, 2022), Cantigas do luaréu (Arribaçã, 2022), ambos de poesia, e o romance A casa das encantadas (Kotter, 2023). Atualmente, Claudio Daniel é editor da revista eletrônica de poesia e debates Zunái, do blog Cantar a Pele de Lontra (http://cantarapeledelontra.blogspot.com) e ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética, curso realizado à distância, via internet.




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