Com quantos nuncas se faz o quase?
A poesia brasileira produzida na última década – período conturbado de nossa história, abalado por um golpe de estado e um regime semifascista que ameaçaram destruir a democracia – é uma poesia pluralista, tão heterogênea e diversificada que não se enquadra nos escaninhos habituais da crítica literária e da academia. Hoje não temos novas teorias poéticas ou movimentos de vanguarda, ao contrário do que houve das décadas de 1950-1960, e é possível reconhecer mesmo um certo conformismo estético, ideológico e comportamental em muitos autores de agora, mais interessados em concursos, prêmios e na temporária fama midiática do que em pesquisar novas possibilidades para a escrita poética. Para tais autores, uma citação em algum jornal diário, uma entrevista, uma publicação por uma grande editora ou o prestígio na universidade são os objetivos a serem alcançados. É um triste paradoxo que isso aconteça exatamente numa época em que há tantas ferramentas tecnológicas à disposição para o trabalho poético! Além das mídias sociais, Facebook, Instagram, YouTube, Tik Tok, da publicação banal de selfies e vídeos, há uma infinidade de recursos eletrônicos que poderiam ser utilizados em formas poéticas totalmente novas, mas esse talvez será um desafio para outro futuro, ainda distante, quando poesia e tecnologia enfim se reconhecerem como irmãs siamesmas. Vamos falar sobre o hoje! E claro: também é possível a invenção no campo da palavra escrita, nosso território comum. Na contramão da passividade bovina, do “coro dos contentes” e milk-shakes angelicais, que nada acrescentam à evolução das formas na poesia brasileira, há autores que estudam, investigam, se interessam pelos poetas mais densos, herméticos e inventivos da Modernidade – de Cummings a Lezama Lima, de Paul Celan a Herberto Helder, de João Cabral a Haroldo de Campos – e se lançam a escrever aceitando todos os riscos, inspirados por um ideal ético e estético confuciano, traduzido por Ezra Pound como make it new: faça-o novo. Ou, como traduz Augusto de Campos: Renovar / dia a dia / sol a sol / renovar. O diálogo criativo com a tradição literária não significa imitar o inimitável, mastigar o já mastigado, e sim iluminar os trajetos ainda não totalmente explorados na arte poética: o que significa buscar desde a poesia asteca e suméria, iorubá ou coreana, mongol ou yanomâmi até as invenções ainda não plenamente assimiladas de um Sousândrade, um Pedro Kilkerry, um Arno Holz, um Gerard Manley Hopkins, para citar poucos nomes. É com felicidade que reúno nesta breve antologia alguns dos novos poetas brasileiros que pertencem à excêntrica família dos insatisfeitos com a banalidade; jovens ou autores maduros que estudam, pesquisam, estão com as antenas bem ligadas, recebendo os “estranhos sinais de Saturno” para a busca de outras fronteiras, outros roteiros, outros pontos de vista sobre o que é escrever poesia hoje. E apresento aqui, aos leitores de Musa Rara, estes poetas raros.
Isadora Salazar
TARDÍGRADOS NA LUA
(Excerto)
Muitos esperam a chegada do meteoro.
Eu não.
Eu não espero o grande evento.
Nem a praga zumbi que apodrece a alma.
Eu apenas espero fazer os cálculos certos.
Desviar de Marte e talvez rezar para que o ricochete gravitacional em um asteroide errante não me atire contra o the last mangará de bananas vermelhas cultivado sobre a Terra; ou contra a órbita da própria Lua.
Muitos, ou talvez muito pouco de todos, esperam a chegada de um último meteoro e esses não estão nem aí para o extermínio em massa dos dinossauros ou para a chuva de cinzas que ferve sobre São Paulo; ao contrário, cultivam os mais selecionados ovos das baratas tropicais capazes de desenvolver ferrões e envenenar seus pequenos cães que ganem sem fôlego dentro de seus despersonalizados apartamentos de passagem.
Ou de paisagem.
E muitos esperam a chegada de um último meteoro.
Mas eu não.
Eu sou a grande destruição.
Eu sou a porra do Melancholia que já cobre de estática tudo por onde resvala.
Eu sou o Nibiru que nasce no horizonte invisível de todas as manhãs bem ao lado do sol que nos manda levantar e comer uma média de pão com um queijo mais do que amarelo e tartrazina.
E eu sou o cometa. O último cometa que detonou o Golfo do México, e também sou o vulcão, o último vulcão que derramou lava sob a placa tectônica do Pantalassa e roubou todo o oxigênio de dentro das fossas abissais repletas de plástico do OceanoAtlânticoPacíficOPacíficAeGentilAmadaMãeTerra — que És quem Eu Sou.
PlásticoPlâncton.
Mas eu também sou o agrotóxico.
(a dor espargida por um deus indústria)
E eu também sou bateia.
Mas ninguém sabe que eu posso ser Batheia.
Ninguém nunca sabe de absolutamente nada.
E então todos simplesmente esperam.
E esperam mundiados entre suas telas e teias repletas de bons avatares a chegada de um único e grande meteoro que cause o grande evento, o tufão sobre o Haiti, o Ebola sobre um CongoHardMode, ou o maremoto sobre as costas leste/oeste e mais a extinção em massa de todas as abelhas polinizadoras da Amazônia. Mas eu não. Porque eu posso ser o arco flecha martelo de um Deus Marvel Caveira Senhores Exus DCCompany Pantera Negras Curupira Thor que talvez nem saque nada de grandes poderes ou de grandes responsabilidades — mas que é a potência de um punho vestido de luvas negras sobre os apartheides desse e de todos os outros tempos.
Tempo.
Tempo.
Tempo.
O metrônomo sem pesos.
O Tempo.
“Doze jovens coloridos dois policiais cumprindo o seu maldito dever”.
O Tempo.
O Moon Walker.
Isadora Salazar, nascida em Belém do Pará, é escritora. Publicou os romances Água de mortas, Editora Patuá, 2017, e Phantalassa ou Aconchego-me sobre metralhadoras, Mezanino Editorial, 2021. Publicou O mito de Horácia Bigbang – Série Lições de Continentes – Lumme e Polichinelo e Mezanino Editoras, 2021. Participou da Antologia Na grande noite arquitetada, Mezanino Editorial, 2022, entre outras obras. É formada em Direito, Música e Gestão de Eventos Culturais. É mãe de dois filh@s, quatro gatas, e uma vira-lata chamada Beibei; Isadora nasceu com outro sobrenome e, emancipada desde os 16 anos, costuma dizer que nasceu dos pés de jasmim da Ilha do Mosqueiro. Seu nome artístico é uma homenagem à sua avó materna, que a criou. É formada em Música, Direito e Gestão Cultural.
Links: https://linktr.ee/isadorasalazar.
Sites: isadorasalazar.com.br e bicudaocriativo.com.br
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José Ricardo
POEMA-FRAGMENTO N.1
There will be time, there will be time
polegada por polegada cresce verde
entre o concreto
sua seiva nasce aos quebra-queixos
como um rio alaga à conchas sua fauna
no centro se estendem estames
onde o pólen torva ao vento
da face cinza vem
amaryllis sorriso sempre Vermelho
José Ricardo é poeta, estudante, reside em Maceió e colabora em revistas eletrônicas.
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Iolanda Costa
ORAL
a Martha Galrão
o amor nasce do céu-
-da-boca aguada
úmida-furna-úmida
da serpe papilada
loca valada de saliva
sublíngua a Língua
sublíngua
o amor amarasmado
da partida
o beijo-cuspo e glossal
do amor banhado
a marinheira náufraga
de lambida
IolandaCosta (Itabuna-BA). Editou, artesanalmente, folhetos de poesia Às Canhas as Palavras Realizam Mil Façanhas (1990), A Óleo e Brasa (1991) e Antese (1993). É autora de Cinema: Sedução, Lazer e Entretenimento no Cotidiano Itabunense (2000), Poemas Sem Nenhum Cuidado (2004), Amarelo Por Dentro (2009), Filosofia Líquida (2012) e Colar de Absinto (2017).
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Guilherme Delgado
À PROCURA
Procuro no cerne
de tudo um sentido
como quem tateia
um corpo no escuro
em busca das mãos
convulsas da língua
que não se revela
alheia mas nossa
visto que se anima
como algo que já
nos pertenceu algo
como um alfabeto
herdado de antiga
civilização.
Guilherme Delgado é poeta e tradutor. Bacharel em Tradução e mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba, é doutorando em Letras pela Universidade Federal do Paraná. Participou das plaquetes Tanto mar sem céu (Lumme Editor, 2017), A noite dentro da ostra (Lumme Editor, 2019), além da antologia 80 balas, 80 poemas (Zunái, 2020), organizadas por Claudio Daniel. É autor de : (Patuá, 2017) e atualmente se dedica à tradução de Personæ (1926), de Ezra Pound.
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Sávio de Araújo
FISSURA
Crescem os ventos
na virada do inverno
Pernas caminham
entre árvores secas
Sofre o alimento
repartido pelas bocas
Crescido como nós
em servidão ao sol
Sofre o solo
com as estações
E nossas bocas
com as pragas
Sávio de Araújo é poeta e psicólogo, nascido em 1992 na cidade de Macaé/RJ. Publicou o livro “A Carne da Era” pela editora Lumme Editor.
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Sílvia Pereira
A VIDA JÁ FOI NUVEM
o sol dava as caras
na senzala flutuante
era ela, sempre ela
com sua cor avelã
mãe sem filhos
parto após parto
suor, sofrimento
vida preta
que se apaga
chora antes
que o outono
vá embora
depois que o inverno
castiga
num verão
que não chega
pois a vida já foi nuvem
e ela Clara, já velha,
se matou.
Sílvia Aparecida Pereira é professora de Português há 27 anos (LETRAS – UNIFAC); pedagoga (PEDAGOGIA – UNESP -UNIVESP), escritora, poeta, revisora, ghost-writer, palestrante. Atualmente cursando pós em Neuropsicologia (Faculdade Zayan – MG);
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Jorge Amâncio
BARÃO DAS BALADAS
no bordel
do mosteiro
a coreana-
– clorofila
seduz
a noviça
possuída
pelo crocodilo-
-cogumelo
gélidas-
-prostitutas
) notáveis
fadas
magnéticas (
bonecas
da falésia
surfam
na pororoca
a mortalha
sangrenta
da possuída
ostenta
o abade-
-alazão
nocauteado
nas cordas
do violão
Jorge Amâncio é licenciado em Física, com especialização em Matemática para Professores e em problemas de geometria, todos pela Universidade de Brasília, tendo publicado NEGROJORGEN e BATOM D’AMOR E MORTE, NÓS OUTRXS e HAIKUS em Preto e Branco. Poemas publicados em inúmeras antologias, revistas e jornais.
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Luís Perdiz
VENTANIA
pelas florações do milagre
pelos órgãos do universo
pela paixão pré-histórica
pelas espécies das luzes
a árvore dança
irriga a carne dos deuses
e o sangue do sol
avigora o vulto da onça
umedece a força feminil dos frutos
em sua adolescência boreal
entre pétalas viajantes
carrega a cura da própria voz
.
.
Luís Perdiz nasceu em Campinas/SP. Poeta e editor, coordena a revista eletrônica Poesia Primata, especializada em literatura brasileira contemporânea. Ao lado de Vanderley Mendonça, organiza e apresenta o evento de poesia e experimentação sonora Sinais de Saturno em São Paulo. Desejo de terra, seu livro mais recente, foi contemplado com a bolsa de Criação e Publicação Literária ProACSP. Com prefácios de Jorge Mautner e Claudio Willer, a obra retoma suas principais influências: o modernismo brasileiro, a tropicália, o surrealismo e a geração beat
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Sidnei Olívio
PRINCÍPIO OCULTO DA MÃO
imaginar cenas e acenos (lágrimas
para os olhos que umedecem
palavras, cintilam o fantástico):
uma quimera no cio boiando
na fonte, uma sombra
no ócio com cílios postiços,
uma flor-de-cera no jardim
da babilônia, um robô de terno
com begônia na lapela, cela
secreta do insólito segredo
a decifrar cores naturais do estranho
imensurado, coisas que não são
e se movem feito bólidos
estelares fora do próprio eixo,
eis a engrenagem do sonho –
um segundo de magia
que transforma em estrela
corola de um girassol.
Sidnei Olívio, natural de São José do Rio Preto, SP, é biólogo de formação e poeta por convicção. É autor dos livros “Zoopoesia”, 1999 (em coautoria); “Poesia Animal”, 2000 (em coautoria); “Mutações”, 2002 (em coautoria); “Concretos & Abstratos”, 2003; “O limite da razão”, 2011; “Uni-verso: a natureza da poesia e a poesia da natureza”, 2012; “A transgressão da palavra”, 2013; “As sete faces da cidade”, 2014; “O que desmanchamos em pedaços”, 2017; “A visão poética do abismo”, 2018; “Poesia Invertebral”, 2019 (e-book bilingue em coautoria); “Poesia é um lugar que não se revela”, 2021; “Tratado das Significações originais”, 2022; “signos de passagem”, 2023.
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Paola Schroeder
SILENTE – ALL OF ME
I
Nunca saberemos quando
nos colocarão em cárceres:
nossas próprias palavras.
Como sempre o silêncio.
Faminta como também
o silêncio do outro.
Pela tua pele o oceano doce
que naveguei com os dedos,
as pernas e a língua.
Hoje penso em meus ossos,
e o movimento infindo
que não te alcança.
II
“Minha fome é matéria que você não alcança.”
Maria Bethânia
Meu mito de Sísifo
desfeito na delicadeza
das covas do teu sorriso.
Cortázar disse uma vez:
Não podemos escolher a chuva.
Bastou um sorriso
e meu avesso derrubou
todas as constelações.
Desdobrei
fibra por fibra
meu coração.
Como pó
me senti só
entre as palavras.
Na ânsia
eu não soube
tecer desejos,
fazer os pontos certos
que um dia serviriam
de rede ao teu afeto.
III
Mas de sobreaviso lhe digo:
Levo um pássaro na boca,
pois acredito na viagem.
Em tempo reafirmo
que me doo
para que meu ser
te sirva de refúgio
E quando me procurares,
e somente neste momento.
A língua dará vida ao pássaro
que junto das tuas pétalas
encontrará a primavera.
Paola Schroeder nasceu em Toledo (PR). É designer de interiores, poeta, artista e graduanda de Filosofia na UNIOESTE, universidade estadual do oeste do Paraná. Publicou o livro À Beira da Palavra, participou da plaquete Tanto mar sem céu (Lumme Editor, 2017), e tem seus poemas publicados em revistas literárias e jornal de literatura como Germina, Zunái, Rascunho, entre outros.
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Nara Fontes
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AROMAS
na asa da noite o frescor da manhã
desata o medo assanha a vista
zumbido de nuvens acolhem
pássaros prenhes
arrepiam a pele do vento
no horizonte o verde
entorpecido de passado
distrai a retina
vagalumes resistem ao ocaso
negligenciam a escassez da lua
um gole de café
acorda a despedida
Nara Fontes é gaúcha, engenheira civil e mora em Brasília. Integra a equipe gestora do Coletivo Celeiro Literário Brasiliense. Poemas seus podem ser encontradas na página Nara Fontes – Poesia, no Facebook. Prepara a publicação de seu primeiro livro solo de poemas.
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Jade Luísa
MONÓLOGO AO FIM DO MUNDO
jamais imaginei que você fosse tão lento
nenhum samba é tanta madrugada
quando você aparece
sopitando como se nada fosse acabar
são as cidades que morrem
não aquelas que nascem do ilegível, mas aquelas
que engolem gente
todo mundo sabe que as cidades nasceram para morrer
a história estremece o chão como
elefante centenário empalado
pelo próprio marfim
III.
não há fim do mundo que me faça perder o seu tango
não há fim do mundo que me faça perder a fome de feijão com angu
não há fim do mundo que não habite o oco dos ossos
e morrer parece mais uma metáfora para esquecer
as crianças naufragadas, baleias jubarte
não há fim do mundo que reconquiste o litoral sergipano
nem tiroteio que extermine vermes
jamais imaginei que você fosse tão lento
nenhum tiro mata tão devagar
nenhuma língua demora tanto a deriva
nenhum samba demora tanto o choro
sinto o rosto do vento e é bom sentir o rosto das coisas
sinto a chuva fina – quase não-chuva
e a cidade gela
e sentir frio é estar um pouco viva
mesmo que tenhamos morrido a cada morte não chorada
mesmo que eu seja um lobo laranja
morta queimada, sinto frio
há um átimo entre frio, calor e morte
há tantas cores no vento do fim do mundo que já não parece
vento, nem abismo, nem morte
parece algo a mais que abismo ou morte
balbucio o que seria rosto-de-abismo
invento nova língua
aquela que não pude inventar enquanto amava
– quem ama inventa línguas todos os dias
e esquece a cada madrugada
o fim do mundo me parece como humildemente
encarar a gota que cai do pico
e se vê cada vez mais próxima de ser
quase morte
Jade Luísa nasceu em Natal (RN) e radicou-se na capital do país. Estuda Letras na Universidade de Brasília, tem uns pares de poemas publicados em revistas virtuais e participou da antologia “As luas: o amor e suas variações”, pela editora Lumme (2020). É autora do livro “O olho esquerdo da lua” (Penalux, 2021), atriz e dramaturga do Coletivo de Teatro Enleio – DF.
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José Couto
MÁQUINA DO MUNDO
nada se compara a esse entardecer
a lágrima do sol avermelha o rio
sem culpas esculpe desejos no silêncio
mas quem verdadeiramente se importa?
e no entanto essa beleza impregna de avessos
a delicadeza que finda na luz que se despede
tão pouco ofereceu esse dia que parte
talvez um minúsculo fragmento de folha
sendo levada sem rumo
pousou seu desvelo aos meus pés
e depois partiu em frêmito alucinante
mas quem verdadeiramente se importa?
entretanto agora nesse porto
esvaziado de opacidades
desprende cheiros familiares
algo não tangível
porém me escapa seu sentido
se há algum
transborda preso na garganta
do tamanho de um navio atravessado
mas verdadeiramente
alguém se importa?
a escuridão chega
e nos abraça implacável
vislumbro longe
às fragilidades que o mundo sussurra
despido do tempo que o dia me furtou
reparo nas indeléveis cicatrizes
que os cravos dilaceraram no centro das mãos
e nesse exato instante
revela-se a epifania das infinitudes
perfumes óleos avelãs
a mirra o incenso e o indecifrável
subitamente desaguam
desconcertantes
acendo o último cigarro
caminho sobre às águas turvas
anoitecidas sem compaixão
na margem orixás
babalorixás me saúdam
homens e mulheres registram nos celulares
ambulantes oferecem bugigangas
todos aguardam
antes de tocar as pontas dos dedos
na pele úmida do afluxo
uma esfera esdrúxula
circunspecta drummondiana
de cor incerta
emite permanentemente
um mantra stotram
cruza o céu de ponta a ponta
em porto alegre
mas me diga leitor
quem verdadeiramente se importa?
José Couto (Porto Alegre/RS). Professor e poeta brasileiro. É o autor de “A impermanência da escrita” Editora Alcance (2010), “O Soneto de Pandora” Editora Penalux(2017) “O Unicórnio do Sul e outras lendas poéticas” Editora Autografia(2018). “SETE CÂNTICOS NEGROS e Outros Tantos Orikis Negros e Índios”.Camino Editorial(2022)
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Isa Corgosinho
O SER E A LINGUAGEM
Vagávamos nômades
à merce dos instintos
sentidos afiados
guiados pelas coisas
Nos tornamos sedentários
e o fogo moldou
mãos de barro
fixar a experiência
nas rochas de granito
— o ícone
nos tambores
na fumaça
— o índice
de nossos passos
Pela falta
aprendemos a dizer
as coisas
depois de desenhá-las
A necessidade de revivê-las
nos impulsionou o ato
simbolizá-las —
para não as perdermos
eternizá-las —
na ausência
de nossos olhos
Pela insistência da escuridão
dizemos a luz
e as cores projetadas por ela
Pelo obsessivo desejo
perdemos a pele
dizemos o desejo
da incapacidade de amar –
morte dos sentidos
dizemos o amor
na automatização da linguagem –
dizemos a poesia
luta ontológica
entre o ser –
ressignificamos –
o nada
Isa Corgosinho é de Brasília/DF, professora universitária, aposentada, poeta, ensaísta. Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Livro Memórias da pele (Venas Abiertas – III – Mulherio das Letras, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022), entre outras.
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Flávia Ferrari
SÉCULOS
Querer não basta
É preciso rastejar pelo território sem trincheiras
Sob as balas que cruzam e tiram a pele
Sonhar de nada vale
É preciso subir ao palco e assassinar o rei
Desligar o som e encerrar o show
Viver não é suficiente
É preciso morrer cem vezes
E outras tantas
Para que o tempo seja generoso
E restaure o humano revolucionário
Que possa enfim descansar
Sem sentinelas
Sobre a terra que lhe foi devolvida
Flávia Ferrrari é poeta e professora da rede pública de São Paulo. A autora lançou, em novembro/2021, o seu primeiro livro de poemas, intitulado “Meio-Fio: Poemas de Passagem” e recentemente “É Tudo Ficção”, ambos editados pela Toma Aí Um Poema, o maior podcast de leitura de poemas lusófonos.
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Ana Rodrigues
MEMARES
Navegando
no tempo
memórias
da vida
fragmentos
de alegria
cicatrizes
de dor
A certeza
passou
ondas
de imagens
de cheiros
e sons.
O horizonte
despontando
renova
a perspectiva
de singrar
o mar
final
avassalador
Ana Rodrigues é professora por vocação, autista/ diagnóstico tardio, TDHA/ passiva, mãe amorosa, vó de gatinhos. #60. Busco nos poemas a voz que sempre se escondeu no mutismo irrestrito.
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Edelson Nagues
O pastor
.
O pastor e o bumbo na praça.
O pastor e a bíblia reaça.
O pastor e a baba da raiva.
O pastor e a mente na caixa.
O pastor e a falsa palavra.
O pastor e a sanha da farsa.
O pastor e a senha da foda.
O pastor e o sinal da besta.
O pastor e a saga antiética.
O pastor e a sua suástica.
Edelson Nagues é mato-grossense radicado em Brasília-DF. Tem textos publicados em diversas antologias e revistas literárias, como Mallarmargens, Musa Rara, Germina, Zunái, Ruído Manifesto, Samizdat, Traços e Escrita Droide, entre outras. Publicou os livros Humanos (contos), Águas de clausura (poesia, X Prêmio Asabeça), pela Editora Scortecci, e Palavras para estrangular silêncios (poesia), pela Editora Patuá. Organizou a antologia de contos Respeitável público: histórias de circo e outras tragédias (Ed. Penalux).
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Ewaldo Schleder
TEMPO
Sempre nas efemerâncias
se faz presente,
a brecar o passado,
a quebrar o futuro.
Pelos vãos e pelas frestas
A medir paixões
sela os amores.
As tetas, as festas.
Lastreado de ouro ou de lata.
Na parede, apenas o som,
de hora em hora.
Ele – e o vento.
Ewaldo Schleder Filho nasceu em Curitiba, estudou Direito, Jornalismo e Publicidade. Quase a totalidade de seus escritos encontra-se em jornais e revistas – nacionais e algumas internacionais. Integrou a coletânea Dez poetas do sul e co-editou o livro Mercosul no divã. Foi premiado pela Fundação Cultural de Curitiba, curadoria de Décio Pignatari, com o clipoema Ezra Pound. Publicou o livro de poemas Leite de pedra pela editora Kotter.
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Antologia organizada por
Claudio Daniel é poeta, tradutor e ensaísta. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP), onde se formou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese A recepção da poesia japonesa em Portugal. Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG. Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em 2007, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo entre os anos de 2010 e 2014 e colunista da revista CULT. Publicou mais de vinte livros de poesia e ficção, incluindo Sete olhos e outros poemas (Córrego, 2022), Cantigas do luaréu (Arribaçã, 2022), ambos de poesia, e o romance A casa das encantadas (Kotter, 2023). Atualmente, Claudio Daniel é editor da revista eletrônica de poesia e debates Zunái, do blog Cantar a Pele de Lontra (http://cantarapeledelontra.blogspot.com) e ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética, curso realizado à distância, via internet.
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