Perdido na Casa de Diversões
A obra Lost in the Funhouse, de John Barth, um dos pioneiros da metaficção norte-americana, tem o conto que dá título ao livro como um de seus mais inovadores. Susan Sontag, Joyce Carol Oates, David Foster Wallace, e muitos outros autores já se referiram a ele em obras ficcionais ou não, e o conto é um dos grandes paradigmas da metaficção pós-moderna.
A fama de Lost in the Funhouse como definidor da metaficção chega a tal ponto que, mesmo ao manifestar outros pontos de vista no que diz respeito ao tema, muitos autores tomam o conto como ponto de partida, sendo que ao menos no caso de David Foster Wallace, Barth é o pai edipiano que o autor tenta assassinar em sua própria coletânea de contos Girl With Curious Hair — ainda que, ao contrário do Édipo original, Wallace falhe em seu confronto direto com Barth, e este permaneça como o exemplo mais completo da metaficção que, talvez, qualquer outro autor norte-americano.
Relembrada a importância do conto, e uma vez que discordo, tanto no nível da forma quanto do sentido, de algumas decisões tradutórias tomadas por Edmilson Alkmin em Perdido no Túnel do Terror, sua versão do conto de Barth lançada em 1970, decidi trabalhar em uma nova tradução que, espero, possa aproximar um pouco mais um dos principais trabalhos de Barth dos leitores brasileiros que se interessem em compreender melhor um dos mais exemplares trabalhos da metaficção estadunidense.
Como última nota, ainda quanto ao interesse do público brasileiro pelo autor, é relevante saber que uma das admitidas influências nos textos de Barth é a obra de Machado de Assis — sendo o Dom Casmurro a principal influência na escrita de seu primeiro romance, e o autor brasileiro o responsável por levar Barth à leitura de Sterne, que também viria a influenciá-lo profundamente, especialmente no início de sua carreira.
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Perdido na Casa de Diversões
John Barth
Tradução de Bruno Nogueira
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Para quem a casa de diversões é divertida? Talvez para amantes. Para Ambrose é um lugar de medo e confusão. Ele veio para o litoral com sua família para o feriado, na ocasião do Dia da Independência, o feriado secular mais importante dos Estados Unidos da América. Uma linha única reta sublinhando é a marca manuscrita para o tipo itálico, que por sua vez é o equivalente impresso da ênfase oral de palavras e frases, bem como é o tipo de títulos de obras completas, para não mencionar. O itálico também é empregado, especialmente em histórias fictícias, para vozes “externas”, intrusivas, ou artificiais, tais como anúncios de rádio, textos de telegramas e artigos de jornal, et cetera. Ele deve ser utilizado com parcimônia. Se passagens originalmente em fonte romana são italicizadas por alguém que as está repetindo, é costumeiro chamar atenção para o fato. Grifo meu.
Ambrose estava “naquela idade estranha”. Sua voz saía aguda como a de uma criança se ele se deixava levar; para ter certeza, portanto, ele se movimentava e falava com calma deliberada e gravidade de adulto. Falar sobriamente de assuntos desimportantes ou irrelevantes e ouvir conscientemente o som de sua própria voz são hábitos úteis para se manter o controle nesse difícil intervalo. En route para Ocean City ele se sentou no banco de trás do carro da família com seu irmão Peter, quinze anos, e Magda G_____, quatorze anos, uma bela garota e jovem dama requintada, que morava não muito longe deles na rua B_____, na cidade de D_____, em Maryland. Iniciais, lacunas, ou ambos, eram frequentes substitutos de nomes próprios na ficção do século dezenove para ampliar a ilusão de realidade. É como se o autor pensasse ser necessário apagar os nomes por razões de tato ou responsabilidade legal. É interessante que, como em outros aspectos do realismo, é uma ilusão que está sendo ampliada, por meios puramente artificiais. É provável, viola o princípio da verossimilhança, que um garoto de treze anos possa fazer uma observação tão sofisticada? Uma garota de quatorze anos é o coevo psicológico de um garoto de quinze ou dezesseis; um garoto de treze anos, portanto, ainda que seja precoce em outros aspectos, pode ser seu júnior emocional por três anos.
Três vezes por ano – nos Dias do Trabalho, da Independência, e de Finados – a família visita Ocean City para passar a tarde e a noite. Quando o pai de Ambrose e Peter tinha a idade deles, a excursão era feita por trem, como mencionado no romance Paralelo 42 de John Dos Passos. Muitas famílias da mesma vizinhança costumavam viajar juntas, com parentes dependentes e frequentemente servos negros; enxames de escolas inteiras zumbiam pelos vagões; todos compartilhavam com todos os outros seus frangos fritos de Maryland, presuntos da Virgínia, ovos recheados, saladas de batata, biscoitos batidos, chás gelados. Hoje em dia (isso é, em 19__, o ano de nossa estória) a jornada é feita por automóvel – mais confortável e rápida ainda que sem a diversão extra ainda que sem a camaraderie de uma excursão geral. É tudo parte da deterioração da vida americana, o pai deles declara; o Tio Karl supõe que quando os garotos levarem suas famílias para Ocean City para o feriado eles voarão em Autogiros. A mãe deles, sentada no meio do banco da frente como Magda estava no segundo, mas com seus braços na parte de trás dos bancos, atrás dos ombros dos homens, não queria que os bons e velhos dias voltassem, os trens repletos de vapor e os vestidos longos e cheios; por outro lado, ela, também, não fazia questão de Autogiros se precisasse se tornar uma avó para voar neles.
A descrição da aparência física e maneirismos é um de diversos métodos de caracterização comuns utilizados por escritores de ficção. Também é importante “manter os sentidos ativos”; quando um detalhe de um dos cinco sentidos, digamos visual, é “cruzado” com um detalhe de outro, digamos auditivo, a imaginação do leitor é orientada para a cena, talvez inconscientemente. Esse procedimento pode ser comparado com a maneira pela qual agrimensores e navegadores determinam suas posições por duas ou mais indicações da bússola, um processo conhecido como triangulação. O fio de cabelo castanho no antebraço da mãe de Ambrose reluzia na luz do sol assim como. Apesar de ser destra, ela retirou seu braço esquerdo da parte de trás do assento para apertar o acendedor de cigarro do painel para o Tio Karl. Quando a ponta arredondada de vidro no pegador brilhava vermelha, o acendedor estava pronto para uso. O cheiro da fumaça do cigarro do Tio Karl fazia lembrar de. A fragrância do oceano chegava forte no lugar do piquenique, onde eles sempre paravam para almoçar, duas milhas aquém do litoral de Ocean City. Precisar parar por uma hora inteira quase ao alcance do som das ondas era difícil para Peter e Ambrose quando eles eram mais novos; mesmo nessa idade não era fácil impedir que sua ansiedade, estimulada pela espuma oceânica, se transformasse em pavio curto. O autor irlandês James Joyce, em seu incomum romance de nome Ulysses, agora disponível nesse país, usa os adjetivos verde-muco e escroto-constritor para descrever o mar. Visual, auditório, tátil, olfatório, gustativo. O pai de Peter e Ambrose, enquanto dirigia o LaSalle sedan 1936 preto com uma mão, era capaz de retirar o primeiro cigarro de um pacote branco de Lucky Strikes e, mais notavelmente, acendê-lo com um fósforo retirado a indicador de sua caixa e polegarmente arrastado contra o papel-sílex sem perder contato com ele. A capa da caixa de fósforos meramente divulgava Selos e Ações para se investir na Guerra. Uma boa metáfora, símile, ou outra figura de linguagem, além de sua óbvia relevância “de primeira-ordem” para aquilo que descreve, será percebida após uma reflexão como portadora de uma segunda ordem de significado: ela pode ser retirada do milieu da ação, por exemplo, ou ser particularmente apropriada à sensibilidade do narrador, até mesmo indicando ao leitor coisas das quais o narrador não está ciente; ou pode jogar luzes mais distantes e sutis sobre aquilo que descreve, algumas vezes caracterizando ironicamente o aspecto mais evidente da comparação.
Dizer que a mãe de Peter e Ambrose é bonita não significa coisa alguma; o leitor pode compreender a proposição, mas sua imaginação não está cativada. Além disso, Magda também era bonita, mas de um modo completamente diferente. Ainda que ela vivesse na rua B_____ ela tinha ótimas maneiras e era acima da média na escola. Sua mão direita repousava casualmente no estofamento de peluche do assento, muito próxima da perna esquerda de Ambrose, onde a mão dele próprio descansava. O espaço entre suas pernas, entre a perna direita dela e a esquerda dele, estava fora do campo de visão de qualquer um sentado do outro lado de Magda, bem como de qualquer um olhando para o espelho retrovisor. O rosto do Tio Karl lembrava o de Peter — como provável, vice-versa. Ambos tinham cabelos e olhos escuros, estatura baixa e robusta, vozes profundas. A mão esquerda de Magda provavelmente estava em uma posição similar em seu lado esquerdo. O pai dos garotos é difícil de descrever; nenhuma característica particular em sua aparência ou modo de agir se destacava. Ele usava óculos e era o diretor de uma escola primária no Condado de T_____. O Tio Karl era um empreiteiro de alvenaria.
Embora Peter com certeza soubesse tão bem quanto Ambrose que este último, graças a sua posição no carro, seria o primeiro a ver as torres de eletricidade da estação em V_____, que marcam a metade da viagem, ele se inclinou para frente e ligeiramente para o centro do carro e fingiu estar procurando por elas através dos pinhais densos e das baías do Tuckahoe ao longo da estrada. Por tanto tempo quanto os garotos conseguiam se lembrar, “procurar as Torres” havia sido uma característica da primeira metade de suas excursões para Ocean City, “procurar pela torre d’água” da segunda. Ainda que o jogo fosse infantil, a mãe deles preservava a tradição de recompensar o primeiro a ver as Torres com doces ou pedaços de fruta. Agora, ela insistiu que Magda jogasse o jogo; o prêmio, ela disse, era “uma coisa difícil de se conseguir hoje em dia.” Ambrose decidiu que não participaria; ele se sentou bem fundo em seu lugar. Magda, assim como Peter, se inclinou para frente. Dois conjuntos de presilhas eram discerníveis pelos ombros de seu vestido de verão; a do interior direito, uma presilha de soutien, estava presa ou encurtada por um pequeno alfinete de segurança. A axila direita de seu vestido, presumivelmente a esquerda também, estava úmida de transpiração. A estratégia simples para ser o primeiro a divisar as Torres, que Ambrose havia entendido aos quatro anos, era se sentar no lado direto do carro. Quem quer que se sentasse ali, contudo, também precisava suportar o pior do sol, e então Ambrose, sem mencionar o assunto, escolhia algumas vezes um e algumas vezes outro. Não era impossível que Peter nunca houvesse descoberto o truque, ou pensado que seu irmão não o tinha feito porque Ambrose ocasionalmente preferia a sombra a um Crunch ou uma tangerina.
A situação de sol-sombra não se aplicava ao assento dianteiro, graças ao para-brisa; o motorista tomava mais sol se é que havia diferença, já que a pessoa no lado do passageiro não apenas tinha as partes baixas sombreadas pela porta e o painel, como também poderia puxar a viseira até embaixo.
“Aquilo são elas?”, perguntou Magda. A mãe de Ambrose provocou os garotos por deixarem Magda vencer, insinuando que “alguém [tinha] uma namorada.” O pai de Peter e Ambrose esticou um longo e magro braço através da mãe deles para apagar o cigarro no cinzeiro do painel, abaixo do acendedor. Dessa vez o prêmio para ver as Torres primeiro era uma banana. A mãe deles a concedeu depois de repreender o pai por desperdiçar um cigarro meio fumado quando tudo era tão escasso. Magda, para pegar o prêmio, moveu sua mão de tão perto de Ambrose que ele a poderia ter tocado como se fosse um acidente. Ela se ofereceu para compartilhar o prêmio, coisas assim eram tão difíceis de se encontrar; mas todos insistiram que era dela e de mais ninguém. A mãe de Ambrose cantou um dístico em hexassílabos de uma música popular, femininamente rimada:
“O bom é do soldado;
Todo o resto, ignorado.”
Tio Karl bateu as cinzas de seu cigarro pela janela triangular; algumas partículas foram sugadas de volta ao carro pelo cone de aspiração, pela janela traseira do lado do passageiro. Magda demonstrava sua habilidade de segurar uma banana com uma das mãos e descascá-la com os dentes. Ela ainda se sentava mais à frente; Ambrose empurrou seus óculos de volta para a ponte de seu nariz com sua mão esquerda, que então deixou cair negligentemente na almofada imediatamente atrás dela. Ele até mesmo permitiu que um único pelo, dourado, na segunda junta de seu polegar, roçasse contra o tecido de sua saia. Se ela se sentasse mais atrás naquele instante, sua mão teria sido presa debaixo dela.
Assentos de peluche pinicam incomodamente através de calças de gabardine no sol de Julho. A função do início de uma história é apresentar os personagens principais, estabelecer suas relações iniciais, preparar a cena para a ação principal, expor o background da situação se necessário, semear razões e presságios onde apropriado, e iniciar a primeira complicação ou seja lá o que for da “ação crescente”. Na verdade, se alguém imagina uma história chamada “A Casa de Diversões” ou “Perdido na Casa de Diversões”, os detalhes da viagem para Ocean City não parecem especialmente relevantes. O início deveria recontar os eventos entre a primeira visão que Ambrose teve da casa de diversões durante a tarde e o momento em que ele entrou nela com Magda e Peter à noite. O meio narraria todos os eventos relevantes desde o momento em que ele entra até o momento em que ele perde o caminho; meios tem a dupla e contraditória função de atrasar o clímax enquanto ao mesmo tempo preparam o leitor para e o levam até ele. Então o fim contaria o que Ambrose faz enquanto está perdido, como finalmente encontra o caminho de saída, e o que todos tiraram da experiência. Até agora não houve realmente diálogo, muito poucos detalhes sensoriais, e nada no que diz respeito a um tema. E já se passou muito tempo sem que nada aconteça; faz com que alguém se pergunte. Nós ainda nem chegamos em Ocean City: nós nunca sairemos da casa de diversões.
Quanto mais próxima é a identificação de um autor com o narrador, literal ou metaforicamente, menos recomendável é, como regra, usar o ponto de vista narrativo da primeira pessoa. Uma vez há três anos os jovens supramencionados brincaram de Mestres e Escravos no jardim dos fundos; quando foi a vez de Ambrose de ser Mestre e deles de ser Escravos, Peter teve que ir entregar os jornais vespertinos; Ambrose estava com medo de punir Magda sozinho, mas ela o levou até a Câmara de Tortura caiada entre o barracão de madeira e a latrina da senzala; ali ela se ajoelhou transpirando entre os ancinhos de bambu e os empoeirados vasos de alvenaria, abraçou os joelhos de Ambrose implorando, e enquanto abelhas zumbiam na gelosia como se fosse uma tarde qualquer de verão, comprou sua clemência por um preço surpreendente colocado por ela mesma. Sem dúvida ela absolutamente não se lembrava daquele evento; Ambrose por sua vez parecia incapaz de esquecer o mínimo detalhe de sua vida. Ele até mesmo se lembrava de como, de pé ao lado de si mesmo com uma impersonalidade maravilhada no calor fumegante, ele havia observado por algum tempo um maço de cigarros vazio no qual o Tio Karl mantinha cinzéis para cortar pedras: abaixo das palavras El Producto, uma dama loureada, vestindo uma folgada toga, observava o mar em um banco de mármore; ao lado dela, esquecida ou ainda não abordada, estava uma lira de cinco cordas. Seu queixo repousava nas costas de sua mão direita; a esquerda pendia negligentemente desde o braço do banco. A metade de baixo da cena e da dama estava descascada; as palavras EXAMINADO POR _____ estavam impressas na madeira. Hoje em dia, maços de cigarro são feitos de papelão. Ambrose se perguntou o que Magda teria feito, Ambrose se perguntou o que Magda faria quando ela se sentasse para trás em sua mão como ele decidiu que deveria. Ficar nervosa. Fazer uma piadinha provocadora da situação. Não dar nem sinal. Por muito tempo ela se inclinou para frente, brincando de cow-pôquer1 com Peter contra Tio Karl e a Mãe e procurando pelo primeiro sinal de Ocean City. Quase no mesmo instante, o local do picnic e o castelo d’água se elevaram à vista; um posto de gasolina Amoco do outro lado da estrada custou à Mãe e ao Tio Karl cinquenta vacas e o jogo; Magda voltou para trás, batendo a palma de sua mão no braço esquerdo da Mãe; Ambrose retirou sua mão “por um tris.”
A essa altura nosso herói, a essa altura nosso protagonista ficará na casa de diversões para sempre. Narrativas normalmente consistem em uma alternação entre dramatização e sumarização. Um sintoma de tensão nervosa, paradoxalmente, é o bocejar repetido e violento; nem Peter nem Magda nem o Tio Karl nem a Mãe reagiram dessa maneira. Ainda que eles não fossem mais criancinhas, Peter e Ambrose receberam um dólar cada para gastar em passatempos na passarela da orla além de qualquer quantia de seu próprio dinheiro que houvessem trazido. Magda também, embora ela tenha protestado que tinha bastante dinheiro para gastar. A mãe dos garotos fez uma ceninha da distribuição das notas; ela fingiu que seus filhos e Magda eram criancinhas e os aconselhou a não gastar o dinheiro muito rápido ou em um lugar só. Magda prometeu com uma risada alegre e, tendo as duas mãos livres, pegou a nota com a esquerda. Peter também riu e prometeu em falsete ser um bom garoto. Sua imitação de uma criança não era inteligente. O pai dos garotos era alto e magro, principiando a calvície, com uma compleição branca. Asserções desse tipo não são eficientes; o leitor pode compreender a proposição, mas. Nós deveríamos estar muito mais longe do que estamos; algo deu errado; não muito desses rodeios preliminares parece relevante. Ainda, todos começam no mesmo lugar; por que muitos seguem sem dificuldade mas uns poucos se perdem no caminho?
“Não fiquem embaixo da passarela,” rosnou o Tio Karl pelo canto da boca. A mãe dos garotos empurrou seu ombro em irritação fingida. Eles estavam todos parados na frente da Gorda May, a Dama que Ri que anunciava a casa de diversões. Maior que a vida, Gorda May se sacudia mecanicamente, balançava em seus calcanhares, batia em suas cochas enquanto risadas gravadas – hilárias, femininas – saiam amplificadas de um alto-falante oculto. Elas cacarejavam, arquejavam, lacrimejavam; tentavam em vão recuperar o fôlego; sumiam, gemiam, explodiam roucas e repetiam. Você não conseguia ouvir sem que você mesmo risse, não importa como você estivesse se sentindo. O Pai voltou da conversa com o Guarda Costeiro de plantão e relatou que as ondas estavam manchadas com óleo bruto de petroleiros recentemente atingidos por torpedos em alto mar. Caroços dele, difíceis de se remover, formavam marcas de piche na praia e grudavam nos nadadores. Muitos ainda assim se banhavam nas ondas e saíam manchados; outros pagavam para usar uma piscina municipal e apenas tomavam banho de sol na praia. Nós faríamos isso. Nós faríamos isso. Nós faríamos isso.
Sob a passarela, capas de caixas de fósforo, outras coisas granuladas. Qual é o tema da estória? Ambrose está doente. Ele transpira nas passagens escuras; maçãs-do-amor, aparentemente deliciosas, uma decepção comê-las. Casas de diversões precisam de banheiros masculinos e femininos a intervalos. Outros talvez também tenham vomitado em cantos e corredores; podem até mesmo ter esvaziado seus intestinos deixando poças suscetíveis a pisadas no escuro. A palavra foder sugere sucção e/ou e/ou flatulência. Mãe e Pai; avós e avôs nos dois lados; bisavós e bisavôs em quatro lados, et cetera. Conte que uma geração tenha trinta anos: aproximadamente no ano quando Lord Baltimore foi agraciado com a capitania da província de Maryland por Charles I, quinhentas e doze mulheres — inglesas, galesas, bávaras, suíças — de toda classe e personalidade, receberam em seus interiores os pênis os órgãos intrometidos de quinhentos e doze homens, idem, em todas as circunstâncias e posturas, para conceber os quinhentos e doze ancestrais dos duzentos e cinquenta e seis ancestrais dos et cetera et cetera et cetera et cetera et cetera et cetera et cetera et cetera do autor, do narrador, dessa estória, Perdido na Casa de Diversões. Em becos, valas, camas de dossel, pinhais, suítes nupciais, cabines de navio, um coche com quatro cavalos, coches com quatro, barracas de ferramentas abafadas; na areia gelada sob passarelas, suja de bitucas de charutos El Producto, entesourada com tocos de cigarro Lucky Strike, tampinhas de Coca-Cola, bosta seca, palitinhos de pirulito feitos de papelão, capas de caixa de fósforo alertando que “Em Boca Fechada não Entra Mosca”. O sussurro succional, contínuo como o deslizar das ondas por todo o mundo, cai como a maré e sobe com o circuito alvorada crepúsculo.
Os dentes de Magda. Ela era canhota. Transpiração. Eles atravessaram o caminho inteiro, Magda e Peter, eles têm esperado por horas com a Mãe e o Tio Karl enquanto o Pai procura por seu filho perdido; eles pegam batatas fritas de um papel plástico e balançam suas cabeças. Eles deram nomes às crianças que um dia terão e trarão a Ocean City nos feriados. Podem espermatozoides serem apropriadamente vistos como animalculus masculinos quando não há fêmeas espermatozoides? Eles tateiam por meandros quentes, escuros, posteriores aos obstáculos temíveis do Túnel do Amor. Alguns talvez percam o caminho.
Peter então sugeriu que eles fossem à casa de diversões; ele já a havia atravessado antes, Magda também, Ambrose não, e sugeriu, sua voz falhando graças à risada da Gorda May, que eles nadassem antes. Todos estavam risonhos, não conseguiam resistir; o Pai de Ambrose, o pai de Peter e Ambrose chegou sorridente como um lunático com duas caixas de pipoca coberta de caramelo, uma para a Mãe, uma para Magda; os homens deveriam pegar para eles mesmos. Ambrose andava à direita de Magda; sendo naturalmente canhota, ela levava a caixa na mão esquerda. Na frente a situação era invertida.
“Por que você está mancando?”, perguntou Magda a Ambrose. Ele supôs em um tom rouco que seu pé havia dormido no carro. Os dentes dela brilharam. “Formigas picando?” Era a madressilva na gelosia da antiga latrina que atraía as abelhas. Imagine ser picado lá. Quanto tempo isso vai levar?
Os adultos decidiram deixar a piscina para lá; mas o Tio Karl insistiu que eles colocassem roupas de banho e fossem à praia. “Ele quer ver as meninas bonitas,” provocou Peter, e se escondeu da raiva fingida do Tio Karl atrás de Magda. “Você tem todas as garotas bonitas de que precisa bem aqui,” declarou Magda, e a Mãe disse: “Essa sim, é a verdade do evangelho.” Magda ralhou com Peter, que passou o braço por cima de seu obro para pegar pipoca escondido. “Seu irmão e seu pai não estão pegando nada.” O Tio Karl perguntou se haveria queima de fogos aquela noite, com toda a escassez. Não era a escassez, o Sr. M_____ respondeu; Ocean City tem fogos de antes da guerra. Mas, alguns pensavam, é muito arriscado graças aos submarinos do inimigo.
“Não parece Quatro de Julho sem fogos,” disse o Tio Karl. A citação invertida na escrita de diálogos ainda é considerada aceitável com nomes próprios e epítetos, mas soa antiga com pronomes pessoais. “Teremos os fogos de volta logo logo”, previu o pai dos garotos. A mãe deles declarou que poderia ficar sem fogos: eles a lembravam demais da coisa de verdade. O pai deles disse que era mais uma razão para atirar alguns de vez em quando. Tio Karl perguntou retoricamente quem precisava ser lembrado, é só olhar para o cabelo e a pele das pessoas.
“Verdade, o óleo,” disse a Sra. M_____.
Ambrose estava com dor de estômago e então não nadou, mas gostou de ver os outros. Ele e seu pai ficavam vermelhos facilmente. A silhueta de Magda era excepcionalmente bem desenvolvida para sua idade. Ela também decidiu não nadar, e ficou nervosa, e ficou irritada quando Peter tentou arrastá-la para a piscina. Ela sempre nadava, ele insistiu; como assim, não ia nadar? Por que as pessoas vêm pra Ocean City?
“Talvez eu só queira ficar aqui com o Ambrose,” provocou Magda.
Ninguém gosta de gente pedante.
“Aha,” disse a Mãe. Peter pegou Magda por um calcanhar e mandou Ambrose pegar o outro. Ela gemeu e rolou em cima da toalha de praia. Ambrose fingiu ajudar a segurá-la novamente. O bronzeado dela era ainda mais escuro que o da Mãe e de Peter. “Ajuda, Tio Karl!”, gritou Peter. Tio Karl pegou o outro calcanhar. Dentro do top de sua roupa de banho, contudo, você conseguia ver a linha onde o bronzeado termina e, quando ela curvou os ombros e gemeu novamente, a rosada auréola de um mamilo. A Mãe fez com que eles se comportassem. “Você com certeza deveria saber,” ela disse para o Tio Karl. Intensamente. “Que quando uma dama diz que não está com vontade de nadar, um cavalheiro não faz perguntas.” Tio Karl disse me desculpe; a Mãe piscou para Magda; Ambrose corou; o estúpido Peter continuou dizendo “Não está com vontade uma droga!” e puxando o calcanhar de Magda; até que mesmo ele entendeu, e pulou com um berro na piscina.
“Eu juro,” disse Magda, com exasperação brincalhona e fingida.
O mergulho ofereceria um símbolo literário adequado. Para pular da prancha mais alta você precisa esperar em uma fila longa pela lateral da piscina e pela escada. Os rapazes faziam cócegas nas garotas e beliscavam as nádegas uns dos outros e gritavam para que os que estavam no topo andassem mais rápido, ou zoavam quem caía de barriga na água. Uma vez na prancha alguns gastavam muito tempo fazendo poses ou palhaçadas ou decidindo como mergulhar ou criando coragem; outros pulavam de uma vez. Especialmente entre os colegas mais novos a ideia era conseguir a pose mais engraçada ou fazer a façanha mais louca durante a queda, coisa que se tornava cada vez mais difícil conforme você subia e subia. Mas quer você berrasse Gerônimo! ou Sieg heil!, segurasse seu nariz ou “andasse de bicicleta,” fingisse levar um tiro ou desse um chute perfeito de 540° ou mudasse sua ideia no meio do caminho e acabasse sem nada, acabava em dois segundos, depois de toda aquela espera. Salto, pose, splash. Salto, fantástico, splash. Salto, ah droga, splash.
Os adultos haviam seguido; Ambrose queria dialogar com Magda; ela era notoriamente bem desenvolvida para sua idade; se dizia que isso era por se secar com toalhas turcas, e havia outras teorias. Ambrose não conseguia pensar em nada para dizer exceto que Peter, que estava se exibindo para ela, era um excelente mergulhador. Você conseguia dizer muito bem a distância que havia entre cada um dos colegas olhando para o músculo de seus braços e roupas de banho. Ambrose estava feliz por não ter ido nadar, a água gelada faz você encolher tanto. Magda fingiu não estar interessada nos mergulhos; ela provavelmente pesava tanto quanto ele. Se você conhecesse o caminho da casa de diversões como seu próprio quarto, você poderia esperar até que uma garota aparecesse e então fugir sem nunca ser pego, mesmo que seu namorado estivesse bem ao lado dela. Ela pensaria que era ele! Seria melhor ser o namorado, e fingir indignação, e despedaçar a casa de diversões.
Fingir não; ficar.
“Ele é um mestre mergulhador,” disse Ambrose. Em admiração fingida. “Você precisa mesmo se escravizar para ficar bom assim.” Qual seria o problema, de qualquer modo, caso ele perguntasse se ela se lembrava diretamente, ou mesmo a provocasse com aquilo como Peter teria feito?
Não há razão para ir mais longe; isso não está chegando a lugar algum; eles ainda nem chegaram à casa de diversões. Ambrose está fora dos trilhos, em alguma parte nova ou velha do lugar que não deveria ser usada; ele se desviou para lá por uma chance em um milhão, como daquela vez em que o carrinho da montanha russa saiu dos trilhos na segunda década do século XX contra todas as leis da física e navegou pela escuridão acima da passarela. E eles não conseguem localizá-lo porque não sabem onde procurar. Mesmo o construtor e o operador esqueceram essa outra parte, que gira em torno de si mesma como uma concha de caracol. Que gira ao redor da parte direita como as serpentes no caduceu de Mercúrio. Algumas pessoas, talvez, não consigam “atingir seu máximo” até os vinte, quando toda a coisa de “crescer” tenha acabado e as mulheres apreciam outras coisas além de piadas e provocações e pavoneios. Peter não tinha um décimo da imaginação que ele tinha, nem um décimo. Peter fez essa coisa de nomear-os-filhos como uma piada, inventando nomes com Aloísius e Murgatroid, mas Ambrose sabia exatamente como seria a sensação de se estar casado e ter seus próprios filhos, e ser um marido carinhoso e pai, e ir trabalhar confortavelmente todas as manhãs e para a cama com sua esposa à noite, e acordar com ela ali. Com uma brisa entrando pela janela e pássaros e sabiás cantando nas árvores trombetas. Seus olhos se encheram de água, não há maneiras suficientes de se dizer isso. Ele seria bem famoso em sua linha de trabalho. Quer Magda fosse sua esposa ou não, uma noite quando ele já carregasse as marcas da sabedoria e o cinza nas têmporas ele sorriria gravemente, em uma festa num jantar elegante, e a lembraria de sua paixão da juventude. A época em que eles foram com a família dele para Ocean City; as fantasias eróticas que ele costumava ter com ela. Quanto tempo atrás parecia, e quão infantil! E ainda assim, encantador, também, n’est-ce pas? Teria ela imaginado que o mundialmente famoso seja lá o que for se lembraria quantas cordas havia na lira no banco ao lado da garota na capa do maço de cigarro que ele tinha observado no barracão de ferramentas com dez anos enquanto ela, onze anos. Mesmo então ele se sentia maduro para sua idade; ele acariciou seus cabelos e disse com sua voz mais profunda e seu inglês mais correto, como para uma criança adorada: “Jamais me esquecerei deste momento.”
Mas ainda que ele tenha respirado pesadamente, gemido como em êxtase, o que ele realmente tinha sentido enquanto acontecia foi um estranho distanciamento, como se alguma outra pessoa fosse o Mestre. Por mais que se esforçasse em ser transportado, ele ouvia sua mente tomando notas da cena: Isso é o que eles chamam de paixão. Eu a estou experimentando. Muitas das gruas de bichos de pelúcia não estavam funcionando nos fliperamas e não podiam ser reparadas por enquanto. Além disso, os prêmios, agora feitos nos EUA, eram menos interessantes que antigamente, itens de papelão na maior parte, e algumas das máquinas não funcionavam com moedas de um centavo. A máquina cigana de dizer o futuro poderia ter fornecido algum presságio do clímax da história se Ambrose a houvesse operado. Ela estava ainda mais dilapidada que a maioria: a cobertura metálica se descascara das alavancas de metal marrom, as vitrines de vidro ao redor do manequim estavam quebradas e coladas com fita adesiva. O turbante e a seda há muito desbotados. Se um homem vivesse sozinho, ele poderia pegar uma manequim de loja de departamento de juntas flexíveis e modificá-la de certas maneiras. Contudo: quando ele tivesse essa idade teria uma mulher real. Havia uma máquina que estampava seu nome ao redor de uma moeda branco-metálica com uma estrela no meio: A_____. O filho dele seria o segundo, e quando o rapaz estivesse ali pelos treze ele colocaria um forte braço ao redor de seus ombros e diria calmamente: “Isso é perfeitamente normal. Todos nós passamos por isso. Não vai durar para sempre.” Ninguém sabia como ser o que eles eram direito. Ele fumaria um cachimbo, ensinaria a seu filho como pescar e pescar siris-moles, assegurá-lo de que ele não precisava se preocupar consigo mesmo. Magda certamente daria, Magda certamente produziria uma grande quantidade de leite, mesmo cometendo solecismos ocasionais. Nós gosta do sabor. Suponha que as luzes se acenderam agora!
O dia prosseguiu. Você pensa que você é você mesmo, mas há outras pessoas em você. Ambrose fica duro quando Ambrose não quer, e o inverso. Ambrose assiste à discordância deles; Ambrose assiste a si assistindo. No quarto dos espelhos na casa de diversões você não consegue se enxergar indo ao infinito, porque não importa como você fica, sua cabeça está no caminho. Mesmo que você tenha um periscópio de vidro, a imagem de seu olho cobriria aquilo que você realmente gostaria de ver. A polícia virá; haverá uma reportagem nos jornais. Deve ter acontecido ali. A menos que ele consiga achar uma saída surpresa, uma porta dos fundos não-oficial ou uma abertura de um alçapão que vaze para um beco, digamos, e então ande até a família na frente da casa de diversões e pergunte onde todos haviam estado; ele estivera fora dali há tempos. Foi lá, exatamente, que aconteceu, naquele último quarto iluminado: Peter e Magda encontraram a saída certa; ele encontrou alguma que não deveria ser encontrada e errou para algum lugar na obra. Em uma casa de diversões perfeita, você só conseguiria ir por um caminho, como os mergulhadores de cima da alta prancha; se perder seria impossível; as portas e salões funcionariam como armadilhas para peixinhos ou válvulas em veias.
Devido aos U-boats alemães, Ocean City estava “ensombrecida”; as luzes das ruas estavam escurecidas no lado do mar; janelas de lojas e as diversões na passarela eram mantidos a pouca luz, evitando criar silhuetas de petroleiros e de navios-Liberty para os torpedeiros. Em uma pequena estória sobre Ocean City, Maryland, durante a Segunda Guerra Mundial, o autor poderia usar a imagem de marinheiros de folga nos fliperamas e galerias de tiro, observando submarinos com suásticas pela mira de metralhadoras de brinquedo, enquanto no escuro Atlântico o capitão de um U-boat semicerra os olhos para ver navios reais contornados pelo leve brilho de fliperamas por seu periscópio. Depois do jantar, a família andou de volta para a parte recreativa da passarela. O pai dos garotos estava queimado e vermelho como sempre e vinha mascarado com Caladryl, um menestrel invertido. Os adultos pararam ao fim da passarela, onde o Furacão de ’33 cortara uma enseada desde o oceano até a Baía Assawoman.
“Pronunciada com um o alongado,” Tio Karl lembra Magda, com uma piscadela. As mangas de sua camisa estavam dobradas; a Mãe socou o coração flechado de seu bíceps marrom e disse que ele tinha a mente suja. A risada da Gorda May veio de repente da casa de diversões, como se ela acabasse de entender a piada; a família também riu da coincidência. Ambrose foi para baixo da passarela para procurar caixas de fósforos de outras cidades com a ajuda de sua lanterna de bolso; ele olhou para além da fronteira do continente Norte Americano e se perguntou a que distância sobre a água a risada deles chegava. Espiões em botes de borracha. Se a piada estivesse além de sua compreensão, ele poderia ter dito: “A risada estava acima dele.” E deixar o leitor ver o jogo de palavras sério em uma segunda leitura.
Ele ligou a lanterna e a desligou de uma vez ainda antes que a mulher gritasse. Correu dali, o coração batendo, derrubando a lanterna. O que o homem havia gritado? Antes que voltasse correndo para sua família, a transpiração o havia encharcado e resfriado. “Viu alguma coisa?” perguntou seu pai. Sua voz não saía; ele encolheu os ombros e espanou violentamente a areia das pernas de suas calças.
“Vamos andar nos cavalos voadores antigos!”, gritou Magda. Nunca serei um autor. Já faz uma eternidade, e todos foram para casa, Ocean City está deserta, caranguejos-fantasma clicam pela praia e pelas ruas sujas e frias abaixo. E os salões vazios de hotéis de madeira e casas de diversões abandonadas. Uma onda gigantesca; um assalto aéreo do inimigo; um caranguejo monstruoso emergindo do mar como uma ilha. Os habitantes fugiram aterrorizados. Magda se agarrou a suas pernas; apenas ele conhecia o segredo do labirinto. “Ele se sacrificou para que pudéssemos viver,” disse Tio Karl com uma careta de dor, conforme ele. As mãos do companheiro haviam sido tatuadas; as pernas da mulher, as pernas brancas e gordas da mulher haviam. Uma coincidência espantosa. Ele ansiava por contar isso a Peter. Ele queria vomitar de tanto entusiasmo. Eles nem o tinham procurado. Ele quis estar morto.
Um final possível seria fazer com que Ambrose se encontrasse com outra pessoa perdida no escuro. Eles uniriam sua inteligência contra a casa de diversões, pelejariam como Ulysses passando por obstáculo após obstáculo, se ajudariam e encorajariam entre si. Ou uma garota. Quando encontrassem a saída eles seriam melhores amigos, ou namoradinhos se fosse uma garota; eles conheceriam profundamente a alma um do outro, e seriam ligados pela argamassa da aventura compartilhada; então eles emergiriam à luz e se revelaria que a pessoa era um Negro. Uma garota cega. O filho do Presidente Roosevelt. O antigo arqui-inimigo de Ambrose.
Pouco depois do quarto de espelhos ele tateou por um corredor mofado, seu coração já apreensivo ante a ausência de flechas fosforescentes e outros sinais. Ele encontrou um fio de luz — não era uma porta, no fim das contas, mas um espaço na junção entre as pranchas de madeira compensada — e apertando os olhos por ele, espiou um homem pequeno e velho, não dissimilar em aparência às fotografias em casa do falecido Avô paterno de Ambrose, balançando a cabeça em cima de um banquinho ao lado de um bulbo sem enfeites e manchado. Um painel grosseiro com interruptores e alavancas se colocava acima da caixa de fusíveis próxima à sua cabeça; em outro lugar do pequeno quarto havia alavancas de madeira e cordas amarradas a cunhos de escota. Naquele momento, Ambrose não estava perdido o suficiente para bater ou chamar; depois já não conseguiu encontrar o fio de luz. Agora lhe parecia que possivelmente havia pegado no sono em algum momento ao longo do caminho; certamente estava exausto graças à luz do sol à tarde e aos problemas à noite; não podia ter certeza se havia sonhado parte da visão ou ela toda. Um velho ventilador de parede havia zumbido como abelhas e feito oscilar duas bandeirolas de papel pega-moscas? O operador da casa de diversões — gentil, aparentemente um pouco triste e cansado, a expressão facial não dissimilar à do falecido Tio de Ambrose, Konrad, nas fotos que havia em casa — murmurava em seu sono? Realmente há alguém como Ambrose, ou ele é uma invenção da mente do autor? Era a baía Assawoman ou Sinepuxent? Há outros erros ou fatos nessa ficção? Havia outro som além do pequeno tap tap de coxa e perna, como água sugada pela madeira de um esquife?
Quando você está perdido, a coisa mais inteligente a se fazer é ficar parado até que você seja encontrado, gritando se necessário. Mas gritar garante humilhação como garante resgate; ficar em silêncio permite manter um pouco de vergonha na cara — você pode fingir surpresa ante o alarde feito por seus salvadores e jurar que não estava perdido, se eles o fizerem. Além do mais você ainda pode encontrar o seu próprio caminho, mesmo que tardiamente.
“Não me diga que seu pé ainda está dormente!” exclamou Magda conforme os três jovens andavam da enseada para a área reservada às rodas-gigantes, carrosséis e outros brinquedos de circo, havendo decidido pelo vasto e antiquíssimo carrossel ao invés da casa de diversões. Que frase, tudo estava errado desde o início. As pessoas não sabem o que pensar dele, ele não sabe o que pensar dele mesmo, ele só tem treze anos, atlética e socialmente inepto, não é espantosamente brilhante, mas há antenas; ele tem… algum tipo de receptor em sua cabeça; coisas falam com ele, ele entende mais que deveria, o mundo pisca para ele por meio de objetos, agarra seu casaco com um sorriso irônico. Todos os outros estão cientes de um segredo que ele não sabe; eles se esqueceram de contar a ele. Por simples procrastinação a mãe dele havia adiado seu batismo até esse ano. Todos os outros o haviam recebido quando bebês; ele supôs o mesmo de si mesmo, assim como sua mãe, era o que ela alegava, até que chegou a hora em que ele participaria da Graça Metodista-Protestante e o descuido veio à tona. Ele ficou mortificado, mas se jogou sem descanso em seu catequismo privado, intimidado pelos mistérios antigos, alguém de treze anos nunca diria isso, empenhado em experimentar a conversão como Sto. Agostinho. Quando a água tocou sua sobrancelha e o pecado de Adão o abandonou, ele forjou lágrimas em seus olhos por uma tensão como a do defecar — mas não sentiu nada. Havia alguma diferença simples, radical a respeito dele; esperava que fosse genialidade, temia que fosse loucura, se devotava à amabilidade e à discrição. Sozinho na parede costeira próxima à sua casa ele foi pego pelas aterrorizantes visões que pensara encontrar no barracão de ferramentas, na taça da Comunhão. A grama estava viva! A cidade, o rio, ele mesmo, não eram imaginários; o tempo rugia em seus ouvidos como o vento; o mundo estava acontecendo! Essa parte deveria ser dramatizada. O autor irlandês James Joyce uma vez escreveu. Ambrose M_____ vai gritar.
Não há textura dos detalhes sensíveis apresentados, para começar. Os desbotados espelhos distorcidos ao lado da Gorda May; a impossibilidade de se escolher uma montaria quando só se pode andar uma vez no fantástico carrossel; a vertigem presente em seu reconhecimento de que Ocean City estava desgastada, o lugar de pais e avós, homens com chapéu de palha e mulheres com para-sóis sobreviveram por meio de suas diversões. Dinheiro gasto, os três pararam por insistência de Peter ao lado da Gorda May para assistir as garotas cujas saias eram assopradas para cima. O objetivo era provocar Magda, que disse: “Eu juro, Peter M_____, que você só pensa em uma coisa! Amby e eu não estamos interessados nessas coisas.” No barril giratório, também, logo ao lado da boca do Diabo que era a entrada para a casa de diversões, as garotas ficavam de cabeça para baixo e seus namorados e outros podiam ver por baixo de seus vestidos se quisessem. O que era justamente o objetivo, Ambrose compreendeu. De toda a casa de diversões! Se você olhava ao redor, você notava que quase todas as pessoas na passarela formavam casais, exceto as criancinhas; de certo modo, aquela era a razão de ser de Ocean City! Se você tivesse olhos de raio x e pudesse ver tudo o que estava acontecendo naquele instante sob a passarela e nos quartos de hotel e carros e becos, você perceberia que tudo o que normalmente se mostrava, como restaurantes e salões de dança e roupas e máquinas que testam-sua-força, era meramente preparação e intervalo. Gorda May gritava.
Por estar assistindo o que acontecia com o canto do olho, foi Ambrose quem notou o meio-dólar próximo ao barril giratório na passarela. Achado não é roubado. Na primeira vez em que ele ouviu algumas pessoas se movendo por um corredor não muito distante, logo depois de perder o fio de luz de vista, havia decidido não chamá-los, por temer que pensassem que ele estava com medo e o provocassem com piadas; eles soavam encrenqueiros. Esperara que se aproximassem e ele pudesse segui-los no escuro sem que soubessem. Em outro momento ouviu uma pessoa só, a menos que o tenha imaginado, trombando como se estivesse do outro lado da madeira compensada; talvez Peter voltando por ele, ou o Pai, ou Magda, perdida também. Ou o dono e operador da casa de diversões. Ele gritaria uma vez, como que alegremente: “Alguém sabe que diabo de lugar é esse?” Mas a pergunta era rígida demais, sua voz falhou, quando os sons pararam ele estava aterrorizado: talvez fosse uma bicha que esperava os homens ficarem perdidos, ou um monstro nojento de cabelos compridos que vivia em algum canto da casa de diversões. Estava rigidamente parado pelo que pareciam horas, mal respirando. Seu futuro era de uma clareza chocante, em seus contornos. Tentou segurar sua respiração até atingir a inconsciência. Deveria haver um botão que se pudesse apertar para acabar com a própria vida absolutamente sem dor; desaparecer num lampejo, como o apagar de uma luz. Ele o apertaria instantaneamente! Ele desprezava o Tio Karl. Mas ele desprezava seu pai, também, por não ser o que ele deveria ser. Talvez seu pai detestasse o pai dele, e assim por diante, e seu filho o fosse detestar, e assim por diante. Instantaneamente!
Naturalmente ele não tinha a coragem o suficiente para pedir a Magda que atravessasse a casa de diversões com ele. Com coragem surpreendente e para a surpresa de todos ele convidou Magda, discreta e educadamente, para atravessar a casa de diversões com ele. “Já aviso, eu nunca a atravessei antes,” ele acrescentou, rindo com desenvoltura; “mas acredito que vamos conseguir nos virar de algum jeito. O que é importante lembrar é que, afinal de contas, ela é feita para ser uma casa de diversões; isto é, um lugar de diversões. Se as pessoas realmente se perdessem ou machucassem ou ficassem exageradamente assustadas nela, o dono perderia o negócio. Haveriam até processos. Nenhum personagem em uma obra de ficção consegue fazer um pronunciamento longo assim sem interrupções ou demonstrações de reconhecimento dos outros personagens.”
A Mãe provocava o Tio Karl: “Três é demais, eu sempre ouvi dizer.” Mas na verdade Ambrose estava aliviado por Peter também ter um quarto de dólar agora. Nada era o que parecia. A cada instante, sob a superfície do Oceano Atlântico, milhões de animais vivos devoravam uns aos outros. Pilotos caíam em chamas sobre a Europa; mulheres eram violentamente estupradas no Pacífico Sul. Seu pai o deveria ter chamado de lado e dito: “Há um segredo simples para se atravessar a casa de diversões, tão simples quanto o para ser o primeiro a ver as torres. Aqui está. Peter não o sabe; nem o Tio Karl. Você e eu somos diferentes. Você sempre desejou que não fosse, o que não é surpresa. Não pense que eu não notei como a sua infância foi infeliz! Mas você vai entender, quando eu dizer a você, porque tinha que ser mantido em segredo até agora. E você não vai se arrepender por não ser como seu irmão e seu tio. Pelo contrário!” Se você soubesse todas as estórias por trás de todas as pessoas na passarela, você veria que nada era o que parecia. Maridos e mulheres muitas vezes se odiavam; pais não necessariamente amavam seus filhos; et cetera. Uma criança supunha que tudo estava bem porque não tinha nada com o que comparar sua vida e todos agiam como se tudo estivesse como devia ser. Portanto cada um via a si mesmo como o herói da estória, quando a verdade poderia indicar que ele é o vilão, ou o covarde. E não havia nada que você pudesse fazer a respeito!
Corcundas, mulheres gordas, idiotas — que ninguém escolhesse o que ele era era insuportável. Nos filmes ele conheceria uma bela garota na casa de diversões; eles escapariam por um fio de perigos reais; ele diria e faria as coisas certas; ela também; no fim eles seriam amantes; suas falas se encaixariam; ele estaria perfeitamente à vontade; ela não apenas gostaria dele o suficiente, ela o acharia maravilhoso; ela ficaria acordada pensando nele, ao invés do contrário — o modo como o rosto dele ficava em luzes diferentes e como ele se porta e exatamente o que ele dissera — e aquilo ainda assim seria apenas um pequeno episódio em sua vida maravilhosa, dentre muitos muitos outros. De modo algum uma virada. O que acontecera no barracão não era nada. Ele odiava, detestava seus pais! Uma razão para não escrever uma história perdido-na-casa-de-diversões é que ou todos sentem o que Ambrose sente, e nesse caso é desnecessário dizer, ou nenhuma pessoa normal sente tais coisas, e nesse caso Ambrose é uma aberração. “Há algo mais cansativo na ficção que os problemas de adolescentes sensíveis?” E é tudo muito longo e incoerente, como se o autor. Pelo que se sabe ao se atravessar pela primeira vez, o fim pode estar depois de qualquer curva; talvez, não é impossível que tenha estado ao alcance um número qualquer de vezes. Por outro lado ele pode mal ter passado do início, com tudo ainda por ser superado, uma ideia intolerável.
Complete: As sobrancelhas levantadas de seu pai quando ele anunciou sua decisão de passar pela casa de diversões com Magda. Ambrose entende agora, mas não entendia então, que seu pai estava se perguntando se ele sabia para que era a casa de diversões — especialmente quando ele não reclamou, como deveria ter feito, quando Peter decidiu ir junto também. A vendedora de ingressos, mortificando-o quando ele inadvertidamente a entregou a moeda com seu nome ao invés do meio-dólar, e então chamando sem nenhuma consideração a atenção de Magda para a marca de nascença em sua têmpora: “Cuidado com ele, menina, ele é um homem marcado!” Ela nem mesmo foi cruel, ele entendia, mas apenas vulgar e insensível. Em algum lugar no mundo havia uma jovem cuja compreensão era tão esplêndida que ela o veria por inteiro, como um poema ou história, e acharia suas palavras tão valiosas depois de tudo que quando ele confessasse suas apreensões ela explicaria porque elas eram de fato exatamente as coisas que o tornavam precioso para ela… e para a Civilização Ocidental! Não existia tal garota, a simples realidade sendo. Bocejos violentos conforme se aproximavam da boca. Conselho sussurrado de um veterano em um banco perto da entrada: “Entra que nem caranguejo e vai poder olhar sem problemas!” A compostura desapareceu na primeira nota: Peter riu prazerosamente, Magda perdeu o equilíbrio, deu gritos agudos, segurou a saia; Ambrose cambaleou como um caranguejo, lábios finos de terror, e em breve estava fora, assistiu à moeda com seu nome caída rolar entre os casais. Avermelhado ele viu que passar por ali rapidamente não era o objetivo; Peter fingiu ajudar para derrubar Magda, gritou “Estou vendo o Prêmio!” quando as pernas dela voaram. O velho, seu traidor mais recente, gargalhou aprovação. Então um pequeno salão de teias de aranha de fio-negro e balbucios gravados: ele pegou o cotovelo de Magda para estabilizá-la sobre os discos giratórios colocados no chão inclinado para jogar seus pés de baixo para fora, e a explicou em uma voz calma, profunda, sua teoria de que cada fase da casa de diversões era ativada ou automaticamente, por uma série de dispositivos fotoelétricos, ou então manualmente por operadores colocados em buracos de observação. Mas ele perdeu sua voz três vezes conforme os discos lhe tiraram o equilíbrio; Magda estava gemendo de qualquer forma; mas em um ponto ela o segurou na cintura para evitar a queda, e sua bochecha direita foi pressionada por um momento contra a fivela de seu cinto. Heroicamente ele a puxou para cima, era sua chance de segurá-la perto como se para apoiá-la e dizer: “Eu te amo.” Ele até mesmo colocou um braço suavemente próximo à parte baixa de suas costas antes que um marinheiro-e-garota se jogassem sobre eles por trás, pisando dolorosamente em seu dedão esquerdo e derrubando Magda arreganhada com eles. A garota do marinheiro era uma menina desimpedida de cabelos trançados com uma risada alta e calcinha azul clara; Ambrose percebeu que ele não teria dito “Eu te amo” de qualquer modo, e foi esmagado pela auto-comiseração. Quão melhor seria ser aquele marinheiro comum! Um pequeno e durão Terceiro Oficial Náutico, o camarada apertou uma garota de cada lado e cambaleou hilário para o quarto de espelhos, mais próximo de Magda em trinta segundos que Ambrose havia chegado em treze anos. Ela riu de alguma coisa que o camarada disse a Peter; ela tirou o cabelo de seus olhos com um movimento tão feminino que feriu o coração de Ambrose; Peter lhe acertando um tapa no traseiro pareceu então particularmente ofensivo. Mas Magda fez uma cara prazerosamente indignada e gritou, “Agora chega, garoto!” e perseguiu Peter para dentro do labirinto sem um olhar para trás. O marinheiro seguiu logo depois, sem pressa, puxando sua garota contra a cintura; Ambrose entendeu não apenas que eles estavam todos tão aliviados por se livrarem do fardo de sua companhia que nem mesmo haviam notado sua ausência, mas que ele mesmo compartilhava desse alívio. Andando finalmente da passagem traiçoeira para dentro do labirinto de espelhos, ele viu uma vez mais, mais claramente que nunca, quão prontamente ele havia se enganado ao supor que era uma pessoa. Ele até mesmo previu, estremecendo ante seu terrível auto-conhecimento, que ele repetiria a enganação, em intervalos cada vez mais raros, por toda sua vida miserável, tão medonhas eram as alternativas. Fama, loucura, suicídio; talvez todos os três. Não é crível que um garoto tão jovem pudesse articular essa reflexão, e na ficção o meramente verdadeiro precisa sempre se render ao plausível. Além disso, o simbolismo é excessivo em alguns lugares. Ainda assim Ambrose M_____ entendeu, como poucos adultos fazem, que a famosa solidão dos grandes não era um mito popular mas uma verdade geral — além disso, que ela era tanto causa quanto efeito.
Todo o antecedente exceto as últimas poucas frases é uma exposição que deveria ter sido feita mais cedo ou entremeada com a ação presente ao invés de amontoada assim. Nenhum leitor toleraria tanto tal prolixidade. É interessante que o pai de Ambrose, ainda que presumivelmente um homem inteligente (como indicava seu papel como diretor de uma escola primária), não encorajava nem desencorajava seus filhos de maneira alguma rumo a nada — como se ele não se importasse com eles ou se importasse sim mas não soubesse como agir. Se esse fato viesse a contribuir para a transformação de um deles em cientista celebrado mas miseravelmente infeliz, isso era uma coisa boa ou não? Ele também poderia algum dia ter que enfrentar a questão; seria útil saber se isso havia torturado seu pai por anos, por exemplo, ou nunca sequer passado por sua cabeça.
No labirinto aconteceram duas coisas importantes. Primeiro, nosso herói encontrou uma moeda com o nome de alguém que a havia perdido ou descartado: AMBROSE, sugestivo do famoso barco-farol e da sobremesa favorita de seu falecido avô, que sua mãe costumava preparar em ocasiões especiais a partir de coco, laranjas, uvas, e o que mais. Segundo, conforme ele vagava pela infinita repetição de sua imagem nos espelhos, segundo, conforme ele se perdeu na reflexão de que a necessidade de um observador torna a observação perfeita impossível, melhor fazê-lo ter ao menos dezoito anos, embora isso fosse tornar outras coisas improváveis, ele ouviu Peter e Magda rindo juntos no labirinto. “Aqui!” “Não, aqui!” eles gritavam um para o outro; Peter disse, “Cadê o Amby?” Magda murmurou. “Amb?” chamou Peter. Em uma voz contente, amigável. Ele não respondeu. A verdade era, seu irmão era um rapaz sem preocupações que estaria melhor com um irmão normal como ele mesmo, mas que raramente reclamava de sua sorte e era geralmente cordial. A garganta de Ambrose ardia; não há uma quantidade suficiente de maneiras de se dizer isso. Ele permaneceu quieto enquanto os dois jovens riam e se chocavam contra o labirinto brilhante, urravam sua descoberta da saída, gritavam alegremente alarmados diante do que agora se lhes apresentava. Então ele cerrou os lábios e os seguiu, ou o supôs, virou em uma curva errada, e vagou ao lugar no qual ainda agora permanece.
A ação convencional da narrativa dramática pode ser representada por um diagrama chamado Triângulo de Freitag:
ou mais acuradamente por uma variante daquele diagrama:
na qual AB representa a exposição, B a introdução do conflito, BC a “ação crescente,” complicação, ou desenvolvimento do conflito, C o clímax, ou a virada, CD o dénouement, ou resolução do conflito. Enquanto não há razão para se encarar esse padrão como uma necessidade absoluta, como muitas outras convenções ele se tornou convencional porque grande número de pessoas ao longo de muitos anos aprenderam por tentativa e erro que era eficiente; não se deve renunciar a ele, portanto, a menos que se deseje renunciar também o efeito do drama ou se tenha uma causa clara para acreditar que uma violação deliberada do padrão “normal” pode ser melhor pode efetivar melhor aquele efeito. Isso não pode continuar por muito tempo; pode continuar para sempre. Ele morreu contando histórias para si mesmo no escuro; anos depois, quando aquela vasta área insuspeita da casa de diversões veio à tona, a primeira expedição encontrou seu esqueleto perdido em um de seus corredores labirínticos e o confundiu com parte do entretenimento. Ele morreu de fome contando histórias para si mesmo no escuro; mas ignorado ignorado por ele, um operador assistente da casa de diversões, que por acaso o ouviu, se abaixou logo atrás da madeira compensada e transcreveu cada palavra. A filha do operador, uma extraordinária jovem com uma silhueta singularmente bem desenvolvida para sua idade, se agachou logo atrás da partição e transcreveu cada palavra. Ainda que ela nunca lhe houvesse deitado os olhos, ela reconheceu que ali estava uma das verdadeiramente grandes imaginações da Cultura Ocidental, cuja eloquência do sofrimento seria uma inspiração para inumeráveis. E seu coração estava dividido entre seu amor pelo desafortunado jovem (sim, ela o amava, ainda que nunca houvesse deitado com ele ainda que ela o conhecesse apenas — mas quão bem! — por suas palavras, e a profunda, calma voz com que ele as dizia) entre seu amor et cetera e sua intuição feminina segundo a qual apenas em sofrimento e isolamento ele poderia dar voz et cetera. Morte sombria solitária. Silenciosamente ela beijou a áspera madeira compensada, e uma lágrima caiu na página. Onde ela havia taquigrafado Onde ela havia taquigrafado Onde ela havia taquigrafado Onde ela et cetera. Há tempos nós deveríamos ter passado pelo ápice do Triângulo de Freitag e feito brevemente o dénouement; o roteiro não se eleva a passos significativos mas volta a si mesmo, divaga, recua, hesita, suspira, desaba, expira. O clímax da história tem que ser a descoberta de seu protagonista de uma maneira de atravessar a casa de diversões. Mas ele não encontrou nenhuma, talvez tenha deixado de procurar.
Que relevância a guerra tem para a história? Deveriam haver fogos de artifício lá fora ou não?
Ambrose vagava, debilitado, exausto. Aqui e ali ele caía em seu hábito de ensaiar para si mesmo a história inaventurada de sua vida, narrada do ponto de vista de terceira pessoa, de sua memória mais antiga parênteses de folhas de bordô se agitando no ar do verão na maré de Maryland fecha parênteses até o momento presente. Os principais eventos, nessa narração, pareceriam ter sido A, B, C e D.
Ele se imaginou anos depois, bem sucedido, casado, à vontade no mundo, os desafios de sua adolescência há muito superados. Ele veio ao litoral com sua família para o feriado: como Ocean City mudou! Mas em um raramente em um mal-frequentado canto da passarela uns poucos brinquedos negligenciados sobrevivem de tempos idos: o grande carrossel da virada do século, com seus grifos monstruosos e conjunto de músicas de concerto; a montanha russa que se dizia estar condenada desde 1916; a galeria de tiros mecânica na qual apenas a imagem dos nossos inimigos mudava. Seu único filho ri com a Gorda May e quer saber o que é a casa de diversões; Ambrose abraça o menino robusto e sorri para sua esposa através da fumaça do cachimbo.
A família está indo pra casa. A Mãe se senta entre o Pai e o Tio Karl, que o provoca bem-humoradamente que dá risadinhas ante o fato de que o companheiro com quem ele havia lutado ombro a ombro dentro da casa de diversões era uma garota negra cega — para seu desconforto mútuo, pois eles abriram suas almas. Mas tais são as barreiras do hábito, que mesmo quando. O braço de quem está onde? Como deve ser a sensação. Ele sonha com uma casa de diversões muito mais vasta que qualquer uma construída; mas elas podem estar fora de moda então, como barcos a vapor e trens de excursão. Já excêntricas e decrépitas: as ladies drapejadas na beira do carrossel são os sonhos de bochechas lunares do pai de seu pai; se ele pensar mais nisso vai vomitar sua maçã-do-amor.
Ele se pergunta: se tornará uma pessoa normal? Alguma coisa deu errado; sua vacina não pegou; na iniciação dos escoteiros ele apenas fingiu estar profundamente emocionado, como ele finge até agora que não é tão ruim afinal na casa de diversões, e que ele é um pouco coxo. Por quanto tempo vai durar? Ele divisa uma casa de diversões verdadeiramente assombrosa, incrivelmente complexa e ainda assim minuciosamente controlada a partir de um grande painel central como o console de um órgão de tubos. Ninguém tivera imaginação suficiente. Ele mesmo poderia desenhar tal lugar, com fiação e tudo, e ele só tem treze anos. Ele seria o operador: luzes no painel mostrariam o que estava acontecendo em cada articulação de sua aguda de sua multifacetada vastidão; o pressionar de um interruptor facilitaria o caminho desse rapaz, complicaria o daquele, para balancear as coisas; se alguém parecesse perdido ou assustado, tudo o que o operador tinha que fazer era.
Ele deseja que nunca houvesse entrado na casa de diversões. Mas entrou. Então ele deseja que estivesse morto. Mas não está. Portanto ele construirá casas de diversões para outros e será seu operador secreto — ainda que preferisse estar entre os amantes para quem as casas de diversões são desenhadas.
1. N do T.: Jogo no qual as pessoas presentes no carro durante uma viagem se dividem em duas equipes, e disputam quem consegue contar o maior número de vacas à beira da estrada, de seu lado do carro. As equipes podem tentar distrair seus oponentes para que eles não vejam determinado grupo de vacas.
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John Barth (1930 -) é norte-americano nascido em Cambridge, no estado de Maryland, e reconhecido como um dos maiores nomes da metaficção e do pós-modernismo. Entre suas obras mais conhecidas estão “Chimera” (1972), “Lost in the Funhouse” (1968), e o ensaio “The Literature of Exhaustion”(1967).
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Bruno Nogueira é graduado em Letras pela UFTM, escritor e tradutor, é autor da coletânea de contos Gravidade Pálida, ainda inédita. E-mail: bsnoguera@gmail.com
14 dezembro, 2015 as 20:20
7 janeiro, 2016 as 21:05