A arte de comprimir a narração
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O filme Acossado (A bout de souffle) de Jean-Luc Godard (1959), fez algumas pequenas revoluções na linguagem do cinema. Godard, nesse filme, mostrou Jean-Paul Belmondo num quarto de hotel, conversando ao telefone, e cortou em seguida para o mesmo Belmondo caminhando pelas ruas de Paris.
No cinema dos anos 1950 era de praxe mostrar os estágios intermediários. Para mostrar que ele saiu para a rua, por exemplo, seria preciso mostrar Belmondo falando ao telefone, depois vestindo o paletó, depois trancando a porta, descendo as escadas, chegando à rua. É sem dúvida uma maneira mais fluida de mostrar as ações, com transições mais suaves, quase imperceptíveis.
Era assim que se narrava, mas Godard, como qualquer artista que começa a criar um estilo próprio, estava buscando uma maneira diferente de dizer.
Comprimir a narrativa (no cinema, na literatura, no teatro, nos quadrinhos) envolve uma avaliação da parte do narrador. Que nível de familiaridade tem o público com esse modo de narrar? Está cansado de uma narrativa “mastigada” demais? Receberia com prazer o desafio de uma narração mais rápida? Seria capaz de preencher por conta própria as lacunas, compreendendo sem muito esforço o que foi deixado de fora?
Hoje em dia, a narrativa se acelerou tanto que praticamente se pode cortar de qualquer coisa para qualquer coisa. O público, principalmente o público jovem, faz essas conexões sem muito esforço.
A compressão serve às vezes apenas para simplificar e enxugar a narrativa, mas pode também provocar um efeito estético, aumentando a imprevisibilidade (a “dificuldade”) do texto para intensificar seu significado. Veja-se o famoso parágrafo inicial do conto “A Loteria em Babilônia” de Jorge Luís Borges:
Como todos os homens em Babilônia, fui procônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se em meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas me sujeita aos de Aleph, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza. Numa câmara de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança me foi fiel; no rio dos deleites, o pânico. Heráclides Pôntico refere com admiração que Pitágoras lembrava-se de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda algum outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura.
Quem lê o conto pela primeira vez, pode achar esta abertura desnorteante. Lido o conto e relida esta abertura, ela fica clara. A Babilônia de Borges é um país regido por uma misteriosa Companhia, a qual promove uma loteria cujos prêmios são interferências na vida dos cidadãos. Em vez de meros prêmios em dinheiro, sorteiam-se destinos: o indivíduo premiado é obrigado a praticar ações absurdas ou inexplicáveis, cometer crimes, tomar parte em alguma complexa encenação coletiva.
Relido, o primeiro parágrafo mostra a estonteante variedade de situações que um único homem pode experimentar em sua vida, por obra e graça dos sorteios da Loteria.
Uma prosa assim, comprimida ao máximo, tende em alguns casos a se aproximar da poesia, porque se transforma numa justaposição de elementos díspares, deixando que as conexões entre eles sejam preenchidas pelo próprio leitor.
A compressão narrativa produz um grande um efeito quando força o leitor a seguir o ritmo imposto pelo autor, seja retardando, seja acelerando esse ritmo.
É famoso o interlúdio criado por Flaubert no meio do romance Educação Sentimental. Ele faz o protagonista Frédéric Moreau testemunhar um episódio sangrento durante um golpe de Estado, encerra o capítulo, e diz, abrindo o capítulo seguinte:
Ele viajou.
Conheceu a melancolia dos barcos a vapor, o frio despertar na barraca, o tédio das paisagens e das ruínas, o amargor das amizades interrompidas.
Ele voltou.
Frequentou a sociedade e teve outras amantes. Todavia a lembrança sempre presente da primeira as tornava insípidas; e ademais a violência do desejo, a própria flor do sentimento, se perdera.
Anos da vida do personagem são resumidos em poucas linhas, como se o autor dissesse que a única coisa importante que lhe sucedeu naquela época é o que vem nas linhas seguintes: o reencontro de Frédéric com a mulher que amara no passado.
O conto “Sequência” de Guimarães Rosa (em Primeiras estórias) conta a fuga de uma vaca tresmalhada que tenta voltar para sua fazenda de origem. Um rapaz monta a cavalo e vai à sua procura. Durante todo o restante do conto, ele a persegue, entretido com aquela “involuntária aventura”. Fuga e perseguição são narradas com minúcias e detalhes pitorescos, como sempre ocorre nos contos de Rosa.
No final, ao anoitecer, a vaca chega à fazenda, com o rapaz atrás dela. Ele avista as luzes acesas da casa grande, onde mora um tal Major Quitério. Apeia-se. Sobe a escada, e ali é recebido, “bem-chegado”.
A uma roda de pessoas. Às quatro moças da casa. A uma delas, a segunda. Era alta, alva, amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-se? Da vaca, ele a ela diria: “É sua.” Suas duas almas se transformavam? E tudo à razão do ser. No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se. E a vaca-vitória, em seus ondes, por seus passos.
O conto se encerra assim: comprimindo neste parágrafo o encontro, a paixão à primeira vista, o casamento entre os jovens, conduzidos um ao outro por uma vaca erradia. Rosa dilata o tempo da perseguição, aumentando o suspense por algo que não temos idéia do que será. E contrai todo o tempo futuro do casal em poucas linhas, aumentando a surpresa e o impacto do desfecho.
Dashiell Hammett, em Seara Vermelha (“Red Harvest”) cria um curioso efeito de metalinguagem quando o narrador da história, o detetive conhecido como Continental Op, dialoga com outro agente que ele diz ser um cara de poucas palavras. Eles estão investigando juntos alguns dos chefões da bandidagem de uma cidade do interior. Diz ele:
Um quarteirão mais adiante encontrei Dick Foley, ao volante de um Buick alugado. Entrei no carro e perguntei:
– O que há?
– Peguei às duas. Saiu três e meia. Escritório de Willsson. Mickey. Cinco, casa. Movimento grande. Finquei pé. Saí três, e sete. Nada ainda.
Isto era para me informar que ele tinha começado a vigiar Lew Yard às duas da tarde anterior; que o seguira até o escritório de Willsson às três e meia; onde Mickey estava seguindo Pete; depois seguiu Yard quando este saiu às cinco, voltando para casa; viu muita gente entrando e saindo da casa, mas não seguiu ninguém; vigiou a casa até as três da madrugada, e depois de dormir voltou às sete; e que desde então nada mais acontecera.
A compressão do texto funciona na medida em que o leitor é capaz de preencher por conta própria as lacunas de informação.
[Uma versão diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento (São Paulo), em outubro de 2009.]
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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail: btavares13@terra.com.br
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