Lezama, Girondo e o humor surrealista


Ao reler a coletânea de poemas do cubano Lezama Lima, Llamado del deseoso (Ed. Colihue, 2013), publicada na Argentina, topei com o poema em prosa “Invocación para desorejarse”, constante do livro La fijeza (1949). Esse poema me lembrou, imediatamente, os textos de caráter surrealista de Espantapájaros (1932), do poeta argentino Oliverio Girondo.

Como venho traduzindo o Espantapájaros, achei que seria interessante apresentar o texto “21” (as peças do livro de Girondo são numeradas de 1 a 24), ao lado do poema de Lezama (ambos traduzidos por mim). O leitor, ao fazer a leitura das peças, perceberá aquele caráter surrealista supracitado, mas também identificará um tipo de humor muito semelhante em ambos os textos. E, principalmente, poderá realizar um profícuo exercício de comparação entre dois dos mais importantes poetas do século XX.

Boa leitura!

 

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21

Que los ruidos te perforen los dientes, como una lima de dentista, y la memoria se te llene de herrumbre, de olores descompuestos y de palabras rotas. Que te crezca, en cada uno de los poros, una pata de araña; que sólo puedas alimentarte de barajas usadas y que el sueño te reduzca, como una aplanadora, al espesor de tu retrato.

Que al salir a la calle, hasta los faroles te corran a patadas; que un fanatismo irresistible te obligue a prosternarte ante los tachos de basura y que todos los habitantes de la ciudad te confundan con un meadero.

Que cuando quieras decir: “Mi amor”, digas “Pescado frito”; que tus manos intenten estrangularte a cada rato, y que en vez de tirar el cigarrillo, seas tú el que te arrojes en las salivaderas.

Que tu mujer te engañe hasta con los buzones; que al acostarse junto a ti, se metamorfosee en sanguijuela, y que después de parir un cuervo, alumbre una llave inglesa.

Que tu familia se divierta en deformarte el esqueleto, para que los espejos, al mirarte, se suiciden de repugnancia; que tu único entretenimiento consista en instalarte en la sala de espera de los dentistas, disfrazado de cocodrilo, y que te enamores, tan locamente, de una caja de hierro, que no puedas dejar, ni un solo instante, de lamerle la cerradura.

 

 

21

Que os ruídos perfurem teus dentes, como uma broca de dentista, e tua memória se encha de ferrugem, de cheiros decompostos e de palavras gastas. Que cresça, em cada um de teus poros, uma pata de aranha; que apenas possas te alimentar de baralhos usados e que o sonho te reduza, como um rolo compressor, à espessura do teu retrato.

Que ao saíres à rua, até os postes de luz te expulsem a pontapés;  que um fanatismo irresistível te obrigue a te prostrar diante das latas de lixo e que todos os habitantes da cidade te confundam com um mictório.

Que quando quiseres dizer: “Meu amor”, digas “Peixe frito”; que tuas mãos tentem te estrangular a cada instante, e que em vez de jogar fora o cigarro, sejas tu que te jogues nas escarradeiras.

Que tua esposa te traia até mesmo com as caixas de correio; que ao deitar ao teu lado, ela se metamorfoseie em uma sanguessuga, e que depois de parir um corvo, ela dê à luz uma chave inglesa.

Que tua família se divirta deformando teu esqueleto, para que os espelhos, ao olharem para ti, se suicidem de repugnância; que tua única diversão consista em te instalar na sala de espera do dentista, travestido de crocodilo, e que te apaixones, tão loucamente, por uma caixa de ferro, que não consigas parar, nem um só instante, de lamber-lhe a fechadura.

 

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INVOCACIÓN PARA DESOREJARSE

Para que el sombrero pudiese penetrar en mi testa, decideron cortarme las dos orejas. Admiré sus deseos de simetría exquisita, que hizo que desde el principio su decisión fue de cortarme las dos orejas. Me sorprendió que tan lejos como era posible de un hospital, me fueran arrancadas con un bisturí que convertía al rasgar la carne en seda. Una urgencia como si alguien estuviese esperando en compraventa mis dos orejas. No hubo ninguna deliberación, pero comprendí que habían decidido que no se las llevaran. En sentido inverso, teniendo una en cada mano, las frotaron una sola vez contra el mármol de la repisa. Entró la patrona cantando y oprimió un limón contra la mancha que había quedado en la repisa. Pensé que se desprendería un humo o que se avivaría la mancha. Pensé, pero, cuando me asomé cuidadosamente, todo estaba igual, salvo el gesto de la patrona de encajarse en aquella situación cantando. Días después vi que arrojaba las gotas de limón en la parte de la repisa que no estaba manchada. Luego, tendría que repetirse la ceremonia o mi sacrificio estaba fuera de lugar, y no era a mí a quien debería haber arrancado las dos orejas. Sentí que era llamado para la otra ceremonia: dejarse insertar unas borlas azafranadas en el hueco dejado por las orejas. Unos mozalbetes, tal vez soldados vestidos de paisano, colocaban las borlas en unas grietas abiertas en las paredes. No sé si era un aprendizaje o un hecho que se aclararía después. Mientras yo esperaba la ceremonia y los soldados continuaban martillando, la patrona volvió a penetrar, ahora no cantaba, sino recogió una gran cantidad de almejas ya vacíadas que estaban por el suelo. Las hacía caer en su falda como si fueran flores. Luego, la noche anterior habían estado comiendo alli, antes de yo llegar, cuando aún tenía mis dos orejas. Me van pasando las borlas azafranadas de una a otra oreja, y la patrona me mira despacio, me recorre, me humedece. “Mañana, dice, volveré a recoger más almejas, traeré la canasta.” “Mire, me dijo, si puedo hacerlo, como está tendido mi delantal, tengo las uñas como comidas en una pesadilla, pero eso sí lo he dejado como la nieve.” “Todo lo que sale de esta casa, me dice con malicia, sale bien hecho.” Claro, mis dos orejas han sido cortadas, me cuelgan dos borlas azafranadas, y cuando me asomo veo un delantal inmensamente blanco, no se mueve, y por la tarde guardo caparazones vacíos de almejas. Otro delantal, otro delantal, delantales, otro delantal, otro delantal.

 

 

INVOCAÇÃO PARA DESORELHAR-SE

Para que o chapéu pudesse entrar na minha cabeça, decidiram cortar minhas duas orelhas. Admirei o desejo deles pela simetria refinada, o que, desde o início, fez com que eles decidissem cortar minhas duas orelhas. Me surpreendeu que, tão longe assim de um hospital, elas fossem removidas com um bisturi, que transformava a carne, quando rasgada, em seda. Tanta urgência que até parecia que alguém estava esperando para negociar minhas duas orelhas. Não houve qualquer deliberação, mas entendi que eles decidiram não levá-las. Pelo contrário, tendo uma em cada mão, eles as esfregaram uma vez só contra o mármore da lareira. A dona da casa entrou cantando e amassou um limão sobre a mancha deixada na lareira. Pensei que dali sairia fumaça ou que avivaria a mancha. Pensei, mas, quando observei atentamente, tudo estava igual, exceto pelo gesto da dona da casa de se adaptar àquela situação cantando. Dias depois, vi que ela jogava gotas de limão na parte da lareira que não estava manchada. Então, teria que se repetir a cerimônia, ou meu sacrifício estaria deslocado, e não seria eu a quem teriam que arrancar as duas orelhas. Senti que eu era chamado para outra cerimônia: deixar inserir borlas de açafrão no oco deixado pelas orelhas. Uns rapazolas, talvez soldados vestidos à paisana, colocavam as borlas em algumas fissuras abertas nas paredes. Não sei se aquilo foi uma forma de treinamento ou um fato que depois seria esclarecido. Enquanto eu esperava a cerimônia e os soldados continuavam martelando, a dona da casa voltou, agora sem cantar, mas recolhendo uma grande quantidade de mariscos, já abertos, espalhados no chão. Ela os fazia cair na sua saia como se fossem flores. Ou seja, na noite anterior, eles estavam comendo ali, antes de eu chegar, quando eu ainda tinha minhas orelhas. Eles passam as borlas de açafrão de uma orelha à outra, e a dona da casa me olha lentamente, me examina, me umedece. “Amanhã – ela diz – voltarei para coletar mais mariscos e vou trazer o cesto.” “Veja – me disse – se posso fazer isso, como meu avental está aberto, tenho as unhas como que roídas num pesadelo, mas isso eu deixei como a neve.” “Tudo o que sai desta casa – me disse maliciosamente – sai bem feito.” Claro, minhas duas orelhas foram cortadas, duas borlas de açafrão estão penduradas em mim, e quando observo lá fora, vejo um avental imensamente branco, que não se move, e à tarde guardo conchas de marisco vazias. Outro avental, outro avental, aventais, outro avental, outro avental.

 

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Confira mais 3 TEXTOS DE ESPANTAPÁJAROS, DE OLIVERIO GIRONDO (1891-1967) traduzidos por Paulo de Toledo.

 

 

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Paulo de Toledo é mestre e doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP. Poeta, publicou os seguintes livros: Torrão e outros poemas (Ed. Patuá, 2018), Concreróticos e Outros Versos (Dulcinéia Catadora, 2012), A Rubrica do Inventor (Ed. Multifoco, RJ, 2011), Hi-Kretos e Outras Abstrações (Sereia Ca(n)tadora, 2011) e 51 Mendicantos (Ed. Éblis, 2007; Ed. Amotape, 2013). Participou também dos livros Musa fugidia (Ed. Moinhos, 2017), VAIEVEM (Binóculo Editora, 2011) e LulaLivre*LulaLivro (Fundação Perseu Abramo, 2018). Colaborou com poemas, traduções, contos e ensaios para: Revista Babel, Meteöro, Cult, Revista Ciência & Cultura – SBPC, Coyote, Artéria, Revista Opiniães, Musa Rara, InComunidade, Correio das Artes, Suplemento Cultural de Santa Catarina, entre outros. E-mail: paulodtoledo@uol.com.br

 

 




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