Iguaria nenhuma


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A poeta, romancista, tradutora, libretista, ensaísta e dramaturga austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973) foi reconhecida ainda em vida como uma das mais potentes vozes da literatura em língua alemã. No panorama literário europeu, foi posta ao lado de nomes como Virginia Woolf e Samuel Beckett, enquanto leitores brasileiros veem semelhanças entre sua obra e a de Clarice Lispector. Trabalhou intensamente com diversos artistas de sua geração, dentre outros o poeta Paul Celan e o compositor vanguardista Hans Werner Henze. Bachmann morreu em Roma devido a um incêndio em seu quarto de hotel, supostamente causado por um cigarro. Em 1976 foi instituído na Áustria o Prêmio Ingeborg Bachmann, que cumpre hoje como poucos o papel de laurear autores significativos no contexto da literatura em língua alemã.

O poema “Keine Delikatessen”, que oferecemos em tradução aos leitores da Musa, surgiu num contexto bastante singular: Bachmann para – já do alto do reconhecimento crítico quase que unânime – de publicar livros de poesia, e se volta para a prosa, à qual se dedica até seus últimos dias. Se é verdade que a autora não publicou mais livros de poemas, não é verdade que ela tenha parado de escrevê-los e até de publicar meia dúzia deles em pequenas revistas.

O poema é visto por críticos como uma espécie de resposta às constantes e enervantes perguntas acerca do suposto abandono da poesia por parte da autora.

 

***

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Iguaria nenhuma (Ingeborg Bachmann)

Nada mais me agrada.

 

Devo

enfeitar uma metáfora

com uma amendoeira em flor?

crucificar a sintaxe

num efeito de luzes?

Quem vai quebrar a cabeça

com coisas tão supérfluas –

 

Aprendi a ter piedade

das palavras

que estão aí

(para a classe mais baixa)

 

fome

humilhação

lágrimas

e

escuridão.

 

Com o soluço ainda por limpar

e o desespero

(e desespero-me ainda do desespero)

em relação às muitas misérias,

às taxas de doença, aos custos de vida,

sobreviverei.

 

Não negligencio a escrita,

e sim a mim.

Sabe Deus que os outros

sabem

se virar com as palavras.

Não sou meu assistente.

 

Devo

aprisionar um pensamento,

conduzi-lo a uma frase-cela iluminada?

Alimentar olho e ouvido

com palavra-petiscos de primeira?

pesquisar a libido d’uma vogal,

determinar os valores de amantes de nossas consoantes?

 

Preciso,

com a cabeça em granizo desfeita,

com o espasmo da escrita nesta mão,

sob o peso de trezentas noites

rasgar o papel,

varrer pra longe as óperas linguísticas planejadas,

exterminando assim: eu tu e ele ela

 

nós vós?

 

(Que seja. Que façam os outros.)

 

Quanto à minha parte, que se perca.

 

*

 

Keine Delikatessen (Ingeborg Bachmann)

Nichts mehr gefällt mir.

 

Soll ich

eine Metapher ausstaffieren

mit einer Mandelblüte?

die Syntax kreuzigen

auf einen Lichteffekt?

Wer wird sich den Schädel zerbrechen

über so überflüssige Dinge –

 

Ich habe ein Einsehen gelernt

mit den Worten,

die da sind

(für die unterste Klasse)

 

Hunger

Schande

Tränen

und

Finsternis.

 

Mit dem ungereinigten Schluchzen,

mit der Verzweiflung

(und ich verzweifle noch vor Verzweiflung)

über das viele Elend,

den Krankenstand, die Lebenskosten,

werde ich auskommen.

 

Ich vernachlässige nicht die Schrift,

sondern mich.

Die anderen wissen sich

weißgott

mit den Worten zu helfen.

Ich bin nicht mein Assistent.

 

Soll ich

einen Gedanken gefangennehmen,

abführen in eine erleuchtete Satzzelle?

Aug und Ohr verköstigen

mit Worthappen erster Güte?

erforschen die Libido eines Vokals,

ermitteln die Liebhaberwerte unserer Konsonanten?

 

Muß ich

mit dem verhagelten Kopf,

mit dem Schreibkrampf in dieser Hand,

unter dreihundertnächtigem Druck

einreißen das Papier,

wegfegen die angezettelten Wortopern,

vernichtend so: ich du und er sie es

 

wir ihr?

 

(Soll doch. Sollen die andern.)

 

Mein Teil, es soll verloren gehen.

 

 

 

 

 

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Matheus Guménin Barreto (1992) é um poeta e tradutor brasileiro. Nascido em Cuiabá – Mato Grosso, é pós-graduando da Universidade de São Paulo (USP), onde traduz a poesia de Ingeborg Bachmann. Barreto estudou também na Universidade de Heidelberg (Alemanha). Publicou traduções de Ingeborg Bachmann em Dito ao anoitecer (2017) e Lira argenta (2017), de Bertolt Brecht em Cântico de Orge (2017) – parcerias entre Selo Demônio Negro, Editora Hedra e a editora portuguesa Douda Correria. Também disponíveis no Brasil e em Portugal estão alguns de seus poemas, publicados em: Escamandro, Enfermaria 6, Revista Lavoura, Revista Escriva – PUC-RS, Diário de Cuiabá e Ruído Manifesto; entre outras. É editor do site cultural mato-grossense Ruído Manifesto e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Paris-Sorbonne. Matheus Guménin Barreto é autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (2017, Editora 7Letras) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (2018, no prelo).

 




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