Um elogio da leveza


Em torno das Fábulas Portáteis, de André Ricardo Aguiar

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Estávamos a quinze anos do início deste século quando o escritor Ítalo Calvino, convidado a ministrar conferências numa universidade dos EUA, anotou suas “lições americanas”. Dos seis temas previstos, ele nos deixou concluídos cinco, que sequer chegaram a ser apresentados, mas foram reunidos postumamente em livro (Seis propostas para o próximo milênio, Companhia das Letras, 1990). As lições de Calvino para o milênio que ele não viu nascer consistem de uma enumeração de atributos considerados por ele fundamentais para a literatura de nosso tempo, a saber: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência (este último, não desenvolvido). Não se trata, evidentemente, de uma tábua de leis, mas de um depoimento, fartamente exemplificado, das experiências de um leitor que nos interessa, sobretudo, por ter estado envolvido, com reconhecido êxito, ao longo da vida, na dinâmica da criação literária.

Reproduzo, em linhas breves, a história desse livro, a propósito de outro, que me chegou às mãos neste final de 2016. Refiro-me às Fábulas portáteis, do paraibano André Ricardo Aguiar (ed. Patuá), cuja leitura me trouxe à lembrança, mais de uma vez, a primeira das lições de Calvino. Antes de prosseguir com o comentário, cumpre advertir, entretanto, que o conceito de leveza, como o autor das Seis propostas o considerou, deve repelir de imediato qualquer possível aproximação com facilidade ou banalidade. Assim como as demais qualidades ali destacadas, o que se define nesse caso não é algum traço espontâneo ou intuitivo que se possa atribuir a priori ao estilo de um autor; nem uma impressão de leitura que resulte de suas escolhas temáticas ou de seu posicionamento ideológico. É antes um efeito a ser construído a partir do trabalho que se desenvolve sobre o texto: “no mais das vezes…”, explica Calvino, “minha intervenção [como escritor de ficção] se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem”.

Pois bem, tendo me ocorrido a associação, me propus ler os contos de André Ricardo na chave desse elogio da leveza. Leitura que posso reorganizar, agora, em dois movimentos simultâneos e entrelaçados: uma rápida pesquisa de elementos que invoquem, como conceito ou imagem, o tema em destaque; e um segundo olhar, voltado pontualmente para procedimentos e invenções de linguagem que, de alguma maneira, endossem, no nível da escritura, essas reiterações. Comecemos então por onde se começa qualquer leitura, e notemos que as Fábulas já estão, desde a capa do livro, definidas por esse estranho e sugestivo atributo: portáteis. O título da coletânea parece brincar de se fingir redundante. Porque, afinal, se tomarmos o adjetivo em seu significado primeiro – e, por assim dizer, literal –, como qualidade do que se pode transportar sem esforço (o que, especialmente no contexto da indústria e do consumo tornou-se uma espécie de valor mercadológico do nosso tempo); e se esse mesmo sentido for pensado ainda como atributo físico do livro impresso, que é a mídia (e também a mercadoria) em que se veiculam essas narrativas, será difícil imaginar quaisquer outras fábulas que não tivessem essa mesma característica. Por que, então, enfatizá-la?

Acontece que esse mesmo adjetivo, na posição de destaque em que ocorre, é também um convite para que transportemos a linguagem (portátil que é) para outros territórios. Sabendo que a metáfora é ela mesma transposição, mudança de lugar, é que nos valemos aqui do sentido figurado em que se costuma falar de coisas que se levam na memória. Assim, serão portáteis os contos que forem memoráveis – os que pudermos trazer conosco – o que atualiza e inverte, de certa forma, aquele primeiro sentido, pois, se no universo da mercadoria, o portátil é também frequentemente mais frágil e descartável, quando se trata de narrativas, o que se pode levar é precisamente aquilo que permanece, que sobrevive ao tempo. Não é o que tem ocorrido, desde sempre, com as formas mais tradicionais de narrativas (incluídas aí as fábulas)? Fato é que, em qualquer desses dois contextos (o do transporte físico ou o da memória), se há uma característica incompatível com o atributo da portabilidade, esse atributo é o peso (o dos objetos; o das visões de mundo; o das construções literárias). Retornamos assim à poética de Calvino, para indagar dos meios por que André Ricardo opera, em seus contos, a mencionada “subtração”, para alcançar a leveza que desde o título sua obra nos sugere.

Em Fábulas portáteis, há uma espécie de pequeno inventário – uma série de definições criativas de coisas, como que arroladas arbitrariamente (sofá, despertador, ovo, cama, chuveiro, escada rolante, tamanduá, sombra) – que se interpõem às narrativas, enfeixando-as em pequenos conjuntos. A primeira delas, ao tempo em que prenuncia a dominância dos espaços domésticos e da atmosfera familiar nos contos que a sucedem, inaugura o tom de liberdade poética que marcará a construção de todo o volume, ao definir “sofá” como “animal vertebrado da pequena fauna de quatro pés, em que uma patética imobilidade permite o pouso das nádegas ou a polinização da poeira…”. O detalhe a notar é que, ao final, a estranheza dessa definição encontrará correspondência numa sutil ousadia estilística: “… a assombrosa monotonia das reuniões de família, os indesejáveis concílios de fazer sala para as visitas, a morte súbita de uma tia encostada, etc e gatos” (grifo meu).

Note-se que, na estrutura resultante, o último termo ocupa um dos dois lados, bastante assimétricos, de uma longa enumeração, equiparando-se em importância, ou mesmo contrastando com todo o conjunto que o precede – o das tediosas situações domésticas, seja porque o arranjo das palavras quer fazer jus à conhecida insubmissão desses felinos; ou porque, num contraponto com o peso das relações humanas ali retratadas, caberia a esse outro integrante da “pequena fauna”, figurar como uma imagem-síntese de leveza e movimento (em nítido contraste com a “patética imobilidade” que o autor atribuíra àquele primeiro “animal”). Não por acaso, justamente um gato, sensitivo e misterioso – espécie de sismógrafo vivo – será tomado como o elemento desestabilizador da rotina familiar em “Pequenos terremotos”, primeiro conto da coletânea. Não por acaso, ele é a única das personagens que vemos transcender o espaço claustrofóbico da casa para, embora “aterrorizado”, descrever um movimento de agilidade e leveza, em que (atente-se para o reforço dessa impressão na estrutura da frase, graças ao polissíndeto) “salta a janela e ganha o telhado e vê o mundo e as andorinhas e outros telhados…”.

Avançando na leitura, vemos outras tantas passagens associáveis ao que Calvino chamaria de subtração do peso, seja no plano ficcional (do que se narra) ou no nível da expressão. Nas Fábulas portáteis, a leveza transita sem aviso entre o concreto e o abstrato, entre o literal e o metafórico. Assim é que, no referido inventário poético, outro elemento da mobília doméstica, a cama, será descrito como “uma nuvem acolchoada” que “sofre a emboscada de quem a levite” (os grifos são meus). No conto “Casa de bonecas”, não só o espaço físico, mas a própria condição existencial das personagens (seu tédio, sua resignação, sua irritação com possíveis intervenções do destino) aparece sob a inusitada forma de uma hipérbole da redução, em que o cotidiano surge transfigurado pela fragilidade de uma vida em miniatura. Em “Carmela”, diz-se do protagonista, morto, que “saiu andando a esmo, deixando o seu corpo em stand-by”. Em “Compulsão”, descreve-se uma espécie de esvaziamento do sujeito (“João tem compulsão pela coisa vaga. Pela vida indefinida e pelas opiniões vazias.”), motivado pela interpretação literal de um elogio ouvido de uma professora na infância (“João, você não existe”). Já em “Uma história de escuridão”, o que se coloca em dúvida é a existência física de uma velhinha que “viveu toda a vida no país do escuro”, pois “sofre de uma hipersensibilidade à luz” (“Não existe ninguém ali, só a mistura do dia com a noite…”). Estamos, sem dúvida, no domínio dos seres que não têm peso.

Há também uma dimensão que se pode chamar de metafísica nessa figura da leveza. Por vezes, as coisas surgem subtraídas de suas funções utilitárias, destoando de uma possível representação convencional da realidade: um relógio “sem noção de tempo” (“Férias do relógio”), espelhos “para não refletir” (“As aparências não enganam”), um metrô fixo, “para os sem destino” (“Observações metroviárias”) etc. Privadas de suas funções, elas como que se libertam do sistema de relações lógicas a que deveriam estar conectadas, produzindo certo efeito de perplexidade, mas também refletindo o descompromisso desse gênero de narrativas (que se movem naquele arco todoroviano entre o estranho e o poético) com aquilo que Calvino descreveu como um peso a ser evitado. “Logo me dei conta” – ele explica – “de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade de superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo – qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas” (p. 16).

Outro recurso bem conhecido, que também atua em favor dessa depuração, é o humor, que descontrai a leitura e desobriga o leitor, ainda que momentaneamente, de graves exercícios de racionalismo e de argumentação. O humor costuma abolir, ou pelo menos atenuar, certa pretensa profundidade do discurso literário, sempre carregado de verdades para nos dizer. Nas Fábulas de André Ricardo, o riso do leitor será conquistado através de movimentos distintos em graus e tonalidades, que vão da leve ironia ao humor trágico, e desse ao mais cortante sarcasmo. Veja-se, nesse aspecto, a ironia que transparece na escolha das formas verbais: Luzia é o nome de uma personagem que foi contratada para trabalhar numa casa inteiramente às escuras; Vecchio, o nome de um rei (evidentemente velho) que se nega a receber a Morte. Assim como também soa irônico o nome da personagem, na primeira frase de “Casa de bonecas”: “Hermes tenta não contar para ninguém”.

Dos nomes próprios às situações cômicas e à intertextualidade burlesca: em “Pequenos terremotos”, o narrador afirma que “o gato enlouquecera dois graus acima da escala de Richter”. Em “Labirinto”, Dédalo se transforma em minotauro (ao menos vê nascerem-lhe chifres) ao flagrar a traição de Ariadne. Em “O problema do avô”, um velho é mumificado vivo, pela família, e guardado num armário. Sem resistir à fome, o irmão caçula de Joãozinho desenterra e come os feijões mágicos, numa paródia do conto famoso. Em “K”, um inseto devaneia sobre acordar metamorfoseado em Gregor Samsa. Mas nada disso é tão sutil e engenhoso quanto o trocadilho escondido em “O anão roubado”, em que, autorizados pela própria atmosfera nonsense da narrativa, vemos o substantivo do título se abrir à leitura alternativa de um neologismo, em que uma partícula a (com sentido de privação) se conecta ao advérbio não, produzindo um corpo estranho verbal que expressaria certa negação da negação – em tudo coerente com a história de um pai que nada pode negar ao filho, nem mesmo a posse de pessoas, como se elas fossem coisas.

Ainda nesta chave de leitura, e para concluirmos, há um conto a destacar, na coletânea, como exemplo e síntese do que vimos até aqui descrevendo: chama-se “Autoajuda”. O contexto é o de uma espécie de preleção da voz narrativa, dirigida a um interlocutor sem voz manifesta no texto, antes de um confronto iminente entre homem e animal, numa tourada. Mas há ali uma criativa relativização de perspectivas, pois é ao touro que se destina esse discurso. É, ironicamente, ao corpulento animal – a que se contrapõe, em geral, a figura esguia, até franzina, do toureiro – que a voz narrativa dirige este conselho: “Descreva um arco de intenções, e pense leve”. Princípio do touro, princípio da narrativa.

Expedito Ferraz nasceu em Maceió, Alagoas, em 1970, mas radicou-se em João Pessoa-PB desde a infância. É professor universitário e crítico literário. Assina a coluna Entre os livros, no Correio das Artes (Jornal A União, João Pessoa). Em 2012, publicou Semiótica aplicada à linguagem literária, pela Editora da UFPB. Em 2014, publicou Poheresia, pela editora A União, e em 2018, O visgo das coisas, pela editora Penalux.

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[Publicado no Correio das Artes (Jornal A União, em fevereiro de 2017]

 

 

 

 

 

 

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Expedito Ferraz nasceu em Maceió, Alagoas, em 1970, mas radicou-se em João Pessoa-PB desde a infância. É professor universitário e crítico literário. Assina a coluna Entre os livros, no Correio das Artes (Jornal A União, João Pessoa). Em 2012, publicou Semiótica aplicada à linguagem literária, pela Editora da UFPB. Em 2014, publicou Poheresia, pela editora A União, e em 2018, O visgo das coisas, pela editora Penalux.

 




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