“The Wall entre Us and Them”
“Nós e eles
E depois de tudo, somos apenas homens comuns
Eu e você”
(Roger Waters, “Us and Them”)
“No final das contas, é só mais um tijolo no muro
No final das contas, todos são somente tijolos no muro”
(Roger Waters, “The Wall”)
Em 14 de março de 2002, no Estádio do Pacaembu, assisti ao primeiro show de Roger Waters no Brasil, na turnê “In The Flesh?”. Em 24 de março de 2007, no Estádio do Morumbi, vi o músico pela segunda vez, na tour de “Dark Side of The Moon”. Em 1º de abril de 2012, no mesmo gramado, testemunhei de olhos, ouvidos e boca aberta o espetáculo “The Wall Live”. Em 9 de setembro de 2018, no Allianz Parque, abri ainda mais os olhos, os ouvidos e a boca na sua quarta e última performance, “Us + Them”. Infelizmente, não porque ela foi maravilhosa, mas por ter presenciado o “show de horror” do público.
Para explicar o que aconteceu, é necessário contextualizar o quadro político de cada uma das apresentações do ex-Pink Floyd. Em 2002, o Brasil elegera pela primeira vez Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República. Em 2007, o ex-operário iniciou o segundo mandato à frente do país. Em 2012, Dilma Rousseff estava no segundo ano de seu primeiro governo de “frente ampla”, como a primeira presidenta da história do Brasil. Em 2018, enfim, o golpista Michel Temer – que era, novamente, o seu vice – está no terceiro ano do mandato usurpado de Dilma. Recordemos que a presidenta, eleita pela segunda vez em 2014, foi vítima de impeachment em 2016: o processo do golpe parlamentar foi resultado da articulação das forças políticas mais conservadoras do país, para aprofundar os ataques à classe trabalhadora, diante do agravamento da crise econômica mundial.
Para quem não entendeu a relação entre os dois parágrafos, alguns esclarecimentos: nos três primeiros shows de Waters, ainda podíamos dizer que vivíamos em um contexto de “normalidade institucional”. Em que pesem sempre as enormes limitações da “democracia burguesa”, ainda estávamos em um “Estado de Direito”: alcançado, aliás, graças às árduas lutas dos trabalhadores para derrubar a ditadura civil-militar. A conquista das liberdades democráticas e das garantias individuais – vale sublinhar – custou o sacrifício de muitas militantes e diversos combatentes: vários deles sofreram os horrores da tortura “in the flesh” (“na carne”), nas mãos sádicas dos covardes lacaios do “regime de exceção”; outros tantos perderam a vida nos duros combates para derrotar a nefasta ordem autoritária.
Por falar nisso, em 2018 faz 50 anos que o estudante secundarista Edson Luís foi assassinado pelos militares no restaurante Calabouço (no centro do Rio de Janeiro), em um dos muitos confrontos pelo restabelecimento da ordem democrática. Apesar de estarmos distantes de 1968, vimos de perto, no show “Us + Them”, os espectros dos algozes rondando o estádio do Palmeiras, para nos lembrar que a tragédia histórica insiste em se repetir como farsa. Quem foi ao Allianz Parque no dia 9 de setembro, ou acompanhou as reportagens sobre o evento, sabe o que aconteceu quando o artista projetou a hashtag #Elenão, logo após listar os nomes de diversos líderes autoritários contemporâneos: de Trump (USA) a Le Pen (França), de Putin (Rússia) a Kurz (Áustria), de Kaczynski (Polônia) a Orbán (na Hungria), de Farage (Reino Unido) a Bolsonaro (Brasil).
O Messias Nazi tupiniquim foi o último “neofascista” da série macabra: depois de seu nome, apareceu na projeção seguinte, em letras garrafais, o alerta #Elenão. Como uma espécie de “palavra mágica”, foi exatamente o #Elenão que quebrou o estado hipnótico da plateia, devolvendo-a bruscamente à nua, crua e dura realidade da disputa eleitoral. Entre gritos de #Elenão e uivos de #Elesim, o coro bolsomínico entoou em uníssono, por mais de cinco minutos, a bestial vaia repressiva que impediu Waters de cantar. A horda de hunos, não satisfeita com o gesto autoritário, partiu em seguida para a agressão física aos opositores de seu líder fascista. Esses fatos graves, enfim, são emblemáticos dos tempos sombrios que estamos vivendo, servindo para ilustrar a trágica progressão do conservadorismo da direita tradicional – que conduziu o golpe – ao reacionarismo da extrema-direita que marca estas eleições.
Para dimensionar as transformações políticas de 2002 a 2018, sem precisar analisar detalhadamente cada evento, recordemos apenas o espetáculo “The Wall Live”, de 2012, ano em que teve início o segundo governo de “frente popular” de Dilma Rousseff (à época – não é demais repetir – o país ainda respirava o ar da “democracia burguesa”, vivendo sob o clima da “normalidade institucional”). Nesse contexto, enfim, é que aconteceu o show no Estádio do Morumbi: a turnê foi uma reedição – revista e atualizada – do “The Wall Live in Berlin”, que estreou em 1990, no mesmo local em que caíra, poucos meses antes, o “Muro de Berlim”. Aliás, a queda do muro que separava as duas Alemanhas é o grande símbolo não só da derrocada da burocracia stalinista na Rússia e no Leste Europeu, mas também, desgraçadamente, da restauração do capitalismo no planeta. Foi para administrar a crise econômica subsequente – não esqueçamos – que entraram em cena os governos reformistas de “frente popular”, como os do PT.
Enfim, para entender as mudanças políticas de 2012 a 2018, que se manifestaram concretamente nas distintas reações dos públicos, lembremos que, na terceira passagem pelo Brasil, Roger Waters projetou nos tijolos do “Muro do Morumbi”, durante os quinze minutos de intervalo, nomes de diversas vítimas dos aparelhos repressivos estatais. Uma delas foi o brasileiro Jean Charles de Menezes, assassinado com onze tiros pela polícia britânica no metrô de Londres, em 2005, confundido com um terrorista árabe. A propósito, o fato de ter sido morto “por engano” não serve de álibi para esconder o “dark side of the moon” dessa história xenofóbica: o problema não é que Jean Charles parecia árabe; a questão é que isso revela, sem disfarce, o ódio aos árabes, sempre vistos como “terroristas” em potencial. Essa mesma lógica “nacionalista” de aversão aos estrangeiros vale para os judeus na Alemanha nazista, perseguidos e exterminados pela intolerância racista de Hitler. A mesma premissa de “superioridade étnica”, encobrindo a cruel exploração econômica, serviu também de base (guardadas as devidas particularidades) para justificar o genocídio dos negros nos Estados Unidos, na África do Sul ou no Brasil: tragédias históricas que o ódio racial dos “bolsominions” repete como farsa em 2018 (130 anos depois da “Lei Áurea”, agem como se quisessem revogá-la).
No show de 2012, seis anos antes do “neofascismo” se reconhecer no telão do Allianz Parque, não houve qualquer manifestação de protesto do público “verde-amarelo” no gramado, nas arquibancadas e nas cativas do Morumbi, quando a foto e o nome de Jean foram projetados no muro: não ecoou no estádio sequer um berro indignado quando Roger Waters, parafraseando “Another Brick in The Wall 2 “, homenageou o mineiro vitimado pela xenofobia inglesa em “The Ballad of Jean Charles de Menezes”. A massa, civilizadamente, permaneceu em silêncio ouvindo os versos da canção de denúncia da brutal violência de Estado: “No final das contas, é só mais um tijolo no muro/ Só mais outra mancada (…)/ E desculpas vazias do governo britânico/ E não há nenhum indício de tristeza na cal do muro/ (…) Jean Charles de Menezes permanece/ Apenas mais um tijolo no muro”.
Aqueles fãs, mesmo os que não pareciam emocionados, ainda demonstravam sinais de ter um respeito básico pelos direitos humanos, muito embora não enxergassem uma irônica semelhança, que não por mera coincidência revelava o seu verdadeiro descaso: o nome projetado nos tijolos do “The Wall Live”, sintomaticamente, era o do filho morto de um pedreiro. Um pedreiro que poderia ter construído, por exemplo, uma das lanchonetes do McDonald’s em que não poderia comer; ou uma das lojas da Mercedes em que não poderia entrar; ou um dos postos da Shell em que não teria carro para abastecer. Ou até mesmo o estádio em que aconteceu o show a que jamais teria condição de assistir (ainda que conhecesse e gostasse do artista), se o seu filho não tivesse sido assassinado e se não fosse ele o homenageado da noite.
Durante o espetáculo – e depois dele – também não houve registro de qualquer crítica negativa quando a tecnologia de alta definição projetou no “Muro do Morumbi” as logomarcas de algumas das mais conhecidas grandes corporações mundiais (como o McDonald’s, a Mercedes e a Shell). Ninguém vaiou Waters quando os “ícones sagrados” do imperialismo foram derrubados, no último ato, caindo um a um como os tijolos do “Muro de Berlim”. Ninguém disse que a cena teria sido uma provocação do músico, desrespeitando as idiossincrasias ideológicas dos fãs capitalistas: afinal, além da classe média de direita, estavam presentes também alguns industriais, empresários e agentes financeiros.
Nenhum dos ricos ou milionários acusou Roger de apologia “comunista”, por estar condenando o mesmo capitalismo monopolista que intensifica a miséria, a fome, a devastação do meio ambiente e, ironicamente, os permitiu pagar valores exorbitantes para prestigiá-lo. A classe média de direita, ainda que sem acesso aos privilégios da ala vip do “andar de cima”, também não abriu a boca para reclamar de nada, sentindo-se recompensada pela possibilidade de assistir ao mesmo show que os patrões. Em 2012, recordemos que a grande burguesia ainda achava graça vendo os tijolos “simbólicos” do Capital ruírem; e a pequena burguesia ainda não percebia que o muro em que se apoiava, bem mais frágil do que parecia, cairia sobre ela, soterrando seus sonhos de ascensão social.
Assistindo das arquibancadas do Morumbi à apoteótica queda das logomarcas do McDonald’s, da Mercedes, da Shell & Cia., chegou-me imediatamente à memória a obra “Imperialismo, estágio superior do capitalismo”. Comentei com um amigo algumas impressões sobre a utopia pequeno-burguesa de se tornar grande proprietária evocando este trecho de Lenin: “A propriedade privada baseada no trabalho do pequeno patrão, a livre concorrência (…), todas essas palavras de ordem por meio das quais os capitalistas e a sua imprensa enganam [os trabalhadores] pertencem a um passado distante. O capitalismo transformou-se num sistema universal de subjugação colonial e de estrangulamento financeiro da imensa maioria da população do planeta por um punhado de países ‘avançados’ (…)” (Obra citada, Expressão Popular, São Paulo, 2012, p.27).
Na época de “The Wall Live”, a ilusão de “unidade nacional” – criada pela política de conciliação de classes dos governos petistas – fazia os mais ingênuos crerem que não existia um muro “real” os separando. Os que eram um pouco menos inocentes, sabiam que havia um muro, mas acreditavam que ele era bem mais baixo, e que era possível saltá-lo. Os mais espertos, obviamente, tinham consciência de que o muro era bem alto, e queriam mais tijolos para que ficasse ainda maior, protegendo os lucros e escondendo os luxos do “setor vip” da classe exploradora. No governo Dilma, apesar da crise econômica, a classe média ainda ouvia ecos dos tempos de Lula, acreditando que podia crescer um pouco mais, aumentando o seu poder aquisitivo até se tornar grande proprietária; e a classe alta ainda não parecia desconfiar tanto que não podia ficar bem maior, com a relativa segurança de quem “nunca ganhou tanto” (nas palavras do ex-presidente) quanto nos governos do PT.
O agravamento da crise mundial, contudo, fez a carruagem virar abóbora, destruindo o sonho de “Cinderela” da classe média, que foi obrigada a ver a sua face sofrida, sem maquiagem, no espelho. Apesar das evidências, a pequena burguesia não queria se enxergar mais parecida com a “Gata Borralheira” proletária do que com a “Rainha” imperialista. Na tentativa desesperada de recuperar o “encanto” perdido, ela saiu às ruas (nas “jornadas de 2013”) para caçar a “bruxa” petista que as teria iludido, sob o disfarce de “fada madrinha”. A enfurecida turba “verde-amarela”, finalmente, conseguiu entregá-la ao “Tribunal da Santa Inquisição” da burguesia: em 2016, o veredito condenou Dilma Rousseff à fogueira do impeachment.
Dois anos antes do show de Waters no Allianz Parque, a classe média se vangloriava da suposta vitória, sentindo-se vingada por ter sido bruscamente despertada do sonho de ascensão social. Para sua desgraça, entretanto, viu-se iludida outra vez: o governo golpista não só foi incapaz de repetir a “mágica”, como também a fez ficar ainda mais parecida com a “borralheira” proletária que limpava o chão do “castelo”. Dando de novo com a cara no muro, a classe média buscaria uma saída à extrema-direita, passando a confiar agora na “varinha de condão” do fascismo: Bolsonaro seria identificado, assim, como a verdadeira “fada madrinha”, a única que teria o poder “real” de transformar a mísera abóbora em luxuosa carruagem, derrubando o “muro social” para a pobre “Cinderela” entrar na festa e brilhar como princesa emergente.
Por isso é que a classe média vaiou Waters quando o artista protestou #Elenão, insistindo em mostrar-lhe o que ela continua se recusando a enxergar: que “The Wall” sempre esteve diante de seu nariz, separando pelo “Money”, irremediavelmente, “Us + Them”. A pequena-burguesia não queria que Roger revelasse o “Dark Side of The Moon” de Bolsonaro, evidenciando a sua obscura velha face do engodo neofascista: afinal, para o pesadelo continuar disfarçado sob a máscara do sonho, “The Show Must Go On”. Os filhos do capitão foram ao estádio do Palmeiras para ouvir o som, não para entender a letra. Aliás, se a compreendessem, enxergariam o muro e negariam a autoridade do “Grande Pai”: “Deve ter havido um engano,/ Eu não pretendia deixar/ Que eles roubassem minha alma/ Estou muito velho? É tarde demais?/ Oh mãe, oh pai/ Para onde o sentimento foi?/ Oh mãe, oh pai/ Eu me lembrarei das músicas?/ O show deve continuar”.
No show de 2018, Roger Waters tocou outra canção emblemática do clássico disco “The Wall”, composta em parceria com David Gilmour: “Confortably Numb”. Estes versos poderiam servir de recado aos bárbaros bolsominions que invadiram o Allianz Parque para estragar a grama e apagar a noite: “Olá/ Tem alguém aí?/ Apenas acene se puder me ouvir/ (…) A criança cresceu/ O sonho se foi/ E eu me tornei/ Confortavelmente entorpecido”. Infelizmente, a maioria dos 40.000 espectadores não ouviu o “olá” do veterano ativista dos direitos humanos, não acenou ao seu chamado pelas liberdades democráticas. Mais de 20.000 hunos pequeno-burgueses, “barbarizados” pela crise e “confortavelmente entorpecidos” pelo discurso ufanista do “capitão”, não queriam que Waters lhes jogasse um balde de água fria para acordar: #Elenão.
De volta ao passado, aquela “criança” pequenina-burguesa que cresceu na era do “milagre econômico” de Lula, aplaudindo Waters em 2002, sentiu “in the flesh” (em português bem claro, “na carne”) que “o sonho se foi”. Achando que o “pesadelo” era Dilma, tiveram com Temer pesadelos bem maiores, dormindo cada vez pior na cama de pregos das “contrarreformas” do sádico inimigo. A classe média desiludida, então, se entupiu de “entorpecentes” fascistas e embalou no sono “verde-amarelo”, sonhando com a propaganda de “ordem e progresso” do ditador. Os “emergentes decaídos” não queriam que o canto alto de Roger lhes despertasse para o pesadelo do regime autoritário, mostrando aos “confortavelmente entorpecidos” que a próxima “bad trip” será ainda mais terrível, sem dinheiro e sem liberdade.
Assistindo ao degradante “show de horrores” dos pequeno-burgueses bárbaros do exército de bolsominions no estádio do Palmeiras, e interrogando “aonde vai o Brasil?”, lembrei-me das sábias lições de Trotski em “Aonde vai a França?”: “A democracia nada mais é do que uma forma política. A pequena-burguesia não se preocupa com a casca, mas com o fruto. A democracia se mostra impotente? Ao diabo com a democracia! Assim sente e raciocina o pequeno-burguês (…). Nas condições de decadência do capitalismo, não há mais lugar para um partido de reformas democráticas e de progresso ‘pacífico’ (…). A pequena-burguesia não rejeitará a demagogia do fascismo, a não ser que tenha fé em outro caminho (…). Os pequeno-burgueses desesperados veem no fascismo, antes de tudo, uma força que combate o grande capital (…)” (Obra citada, Editora Kiron, Brasília, 2012, pp.86-88).
Ouvindo os urros enfurecidos da massa disforme, e pensando nas bruscas mudanças na correlação de forças sociais e políticas entre 2002 e 2018, novamente recordei o diagnóstico de Trotski: “A pequena-burguesia é economicamente dependente e está politicamente atomizada. Por isso não pode ter uma política própria. Necessita de um “chefe” que lhe inspire confiança. Este chefe individual ou coletivo, indivíduo ou partido, pode ser fornecido por uma ou outra das duas classes fundamentais, seja pela grande burguesia, seja pelo proletariado. O fascismo unifica e arma as massas dispersas; de uma ‘poeira humana’ (…) faz destacamentos de combate. Assim, dá à pequeno-burguesia a ilusão de ser uma força independente. Ela começa a imaginar que, realmente, comandará o Estado. Não há nada de surpreendente que essas ilusões e esperanças lhe subam à cabeça” (idem, p.88).
De volta para o futuro, os 20.000 bolsominions vaiaram Waters porque não conseguiram entender a reprise farsesca da tragédia anunciada pela milésima vez em alto e bom som: cada um, “no final das contas, é só mais um tijolo no muro”; “no final das contas, todos são somente tijolos no muro”; “e depois de tudo, somos apenas homens comuns/ eu e você”. Enfim, traduzindo o “Apocalipse” de Bolsonaro, Roger profetizou a desgraça aos devotos do capitão: em 2019, “o muro cairá sobre vossas cabeças”.
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Paulo César de Carvalho é militante da RESISTÊNCIA-PSOL, por uma frente única antifascista.
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