Uma odisseia anfibiográfica


CLEPSIDRA DE ÁGUAS VIVAS (UMA ODISSEIA ANFIBIOGRÁFICA EM 60 POEMAS)

“E escutando o correr da água na clepsidra”

(Camilo Pessanha)

“riocorrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía, devolve-nos por um commodius vicus de recirculação (…) antes o barcoíris fora visto circularco sobre a aquaface.”

(James Joyce)

 

“Meu estado é o de jardim com água correndo. Descrevendo-o tento misturar palavras para que o tempo se faça (…): a morte apaga os traços de espuma do mar na praia (…). Movo-me dentro de meus instintos fundos (…). Sinto então que estou nas proximidades de fontes, lagoas e cachoeiras, todas de águas abundantes. E eu livre (…). Quando digo ‘águas abundantes’ estou falando da força de corpo nas águas do mundo (…). Sou-me (…). Esta é a base de minha tragédia (…). E ninguém é eu. Ninguém é você. Esta é a solidão (…). Bebo um gole de sangue que me plenifica toda (…). O instante é o vasto ovo de vísceras mornas.”

(Clarice Lispector)

 

Que me desculpe o poeta Chacal, se na paráfrase discordo da premissa de que “quem lê pensa que é easy”: não que não seja “hard”, é claro, “fazer release”; mas não há hábil leitor que pense ser fácil, quer dizer, que não seja difícil escrever prefácio. Nem vou entrar no mérito de que seja mais “easy”, por menos “hard” que pareça, escrever um release do que fazer um prefácio: para começo de conversa, este é um gênero paratextual, logo, parte integrante do livro; em geral, é mais extenso e com teor analítico mais vertical. Aquele é um gênero de divulgação, portanto, circula paralelo à obra; via de regra, é mais breve e superficial na apresentação. Não é demais lembrar também, como traços distintivos entre ambos, que muito release, de natureza institucional, sequer é assinado; em contrapartida, todo prefácio é personalíssimo, de caráter marcadamente autoral. Por si só, aliás, isso já implica um grau de envolvimento mais direto, de comprometimento muito maior do autor com o criador e a criatura.

Deixando de lado o release, enfim, o fato é que é muito menos “hard” prefaciar um gênero de maior apelo mercadológico, como um manual de autoajuda, um best-seller policial, um diário de aventureiro, uma antologia de crônicas jornalísticas ou uma biografia de celebridade, convenhamos, do que um livro de poemas. Não é novidade, infelizmente, que, entre os textos literários, o público prefere romances, novelas e contos: ou seja, sendo um gênero de baixíssima popularidade (para não falar que é o mais impopular nas letras), que exige protocolos técnicos de leitura muito específicos – tão exclusivos quanto excludentes – a poesia é praticamente ignorada pelo mercado, circunscrita a poucos e raros leitores habilitados. Sob essa perspectiva, pois, parece mesmo mais “easy” – ou, ao menos, mais gratificante – fazer prefácio de prosa. Não que isso não seja difícil também, convém sublinhar, sobretudo se for de uma obra de difícil digestão, como o romance caleidoscópico “O jogo da amarelinha”, de Julio Cortázar. Dos não muitos interessados em literatura, a propósito, pouquíssimos têm fôlego intelectual para atravessar áridos textos de vanguarda como esse, com alto teor de inventividade e cheio de referências intertextuais.

Há certos livros que só podem ser lidos mesmo – com o perdão da franqueza que possa soar a pedantismo – por quem já leu muitos livros, ouviu muitas canções, frequentou muitos museus, assistiu a muitos filmes, viu muitas peças, visitou muitos lugares, se relacionou com muitas pessoas, conheceu muitas culturas, se interessou por muitos assuntos, debateu muitos temas e compreendeu muitos pontos de vista. Ou seja, para prefaciar um Cortázar, por exemplo, é imprescindível não só identificar as inúmeras alusões e citações “intersemióticas”, mas também compreender as sutis relações implícitas entre elas, na construção da totalidade de sentido do discurso literário. Conforme o próprio escritor argentino explicou a uma aluna, em lição que valer para qualquer leitor ou crítico que se preze, a leitura efetiva – profunda – de uma obra literária de relevo exige vasta bagagem cultural e grande acuidade analítica:

“Contei-lhes um pouco minha biografia (…) e disse que, sendo jovem e muito solitário, dentro dessa solidão li um milhão de livros (…) e acumulei uma cultura livresca muito, muito grande (…). Todo esse conteúdo (…) se encontrava em minha memória, e vocês sabem muito bem – porque são de todos nós – os jogos da associação: quando temos um ‘background’ cultural, estamos pensando em qualquer coisa e nos aparece um verso de T. S. Eliot ou uma letra de um tango de Carlos Gardel (…). Quando eu estava escrevendo ‘O jogo da amarelinha’ (…), cruzava-se o tempo todo essa acumulação de leituras (…), há uma enorme acumulação de citações, se dão nomes, se fala de pintura, se acumulam montes de coisas.” (CORTÁZAR, Julio. “Aulas de literatura”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, pp. 252-253).

Posto isso, para retomar a questão, não é “easy” fazer prefácio de um livro “hard” porque o mediano leitor prototípico não quer – nem poderia – ler o que não só lhe parece, mas, de fato, é difícil. A bem da verdade, indo direto ao ponto com a certeira constatação irônica do autor, o fato é que não é fácil escrever prefácio também porque, no fundo mesmo, ninguém realmente o lê: triste sina dos “prólogos, que um espanhol dizia que é uma coisa que se escreve ao final, se põe ao princípio e não se lê nem no princípio nem no final”.

Para concluir, finalmente, este já tão longo preâmbulo metalinguístico, justificando-lhe a extensão como antídoto contra eventuais críticas de prolixidade e acusações de falta de objetividade, se não é fácil fazer prefácio de uma prosa à Cortázar, de uma prosa poética à Joyce ou de uma poesia à Pound, tanto pelo novo “modelo de escrita” quanto pelo imprevisto “horizonte de leitura” que instauram, mais difícil parece escrever prefácio – pela razão inversa – de obra literária contemporânea. Para ficar só na poesia, nunca houve tantas editoras – ainda que pequenas – especializadas no gênero: o que significa que nunca se publicaram tantos livros de poemas, que jamais tantos autores, consequentemente, foram promovidos – sem qualquer rigor editorial – a bardos, autoproclamando-se – sem o menor juízo autocrítico – poetas.

Se é certo que sempre houve, na história da literatura, uma quantidade maior de autores do que de obras de qualidade, não há dúvida também – pelas facilidades criadas pelos “meios de reprodutibilidade técnica” dos objetos artísticos – de que há muito mais poetas para muito menos poesia hoje em dia. Considerando o aumento significativo da desproporção – em vertiginosa progressão geométrica – entre a quantidade de livros e a qualidade das obras, portanto, não é fácil escrever prefácio de um livro de poemas porque é difícil encontrar uma obra poética que não seja mais uma.

Em outras palavras, Walter Benjamin anteviu o problema: como há sempre mais e mais escritores publicando, uma hora acabará a distinção entre autores e leitores. De lá para cá, na verdade, a pior das hipóteses consumou-se piorada: há muito mais poetas do que leitores de poesia. Para piorar, mesmo entre os muitos poetas, poucos são mesmo leitores de poesia: entre estes, é claro, pouquíssimos leem os respectivos prefácios. Em síntese, entre muitos e maus poetas, e poucos e maus leitores, Aldous Huxley (citado por Benjamin) tem razão: nunca se produziu tanto “lixo cultural”.

Levando tudo isso e aquilo em conta, um outro fator torna ainda mais difícil escrever prefácio de obras poéticas contemporâneas: muitos poetas são conhecidos ou amigos do prefaciador. Como a maioria dos livros têm em comum a baixa qualidade estética, é preciso fazer vista grossa aos vícios para forjar virtudes no texto: haja manobra retórica – e grande dose de cinismo, pois – para dizer que é bom o que é ruim. Confesso que não tenho talento para abstrair as debilidades e elogiar o que é sofrível: para não me trair e não ser desonesto com os leitores é que venho recusando – sempre com convincentes e respeitosas desculpas – várias solicitações de colegas de ofício. Sem explicitar as razões para não ferir suscetibilidades, obviamente, as negativas sempre partem do célebre princípio aforismático – est/ético – de Hemingway: se a lealdade, em matéria de amizade, é uma virtude, em se tratando de juízo crítico, pode levar a distorções pavorosas. Se não declinei deste convite, portanto, não haveria de ser por abrir uma contraditória – injustificada – exceção à regra, mas porque “tantos estados da água”, notável livro de poemas de estreia de Mariana Ferraz, é uma raríssima exceção à regra: logo, bem difícil mesmo seria, nesse caso tão excepcional de uma obra digna de nota, abrir mão de escrever seu prefácio.

Em certa medida, até poderia dizer que é “easy” fazê-lo porque é muito fácil ser leal à amiga e não é nada “hard” defender a poeta: difícil mesmo é achar alguém assim, que mereça nossa grande admiração nessas duas instâncias tão distintas – a ética e a estética, a pessoal e a literária. Coerente com tudo o que disse, contudo, não poderia dizer que seja fácil fazer este prefácio não só porque “tantos estados da água” é um livro difícil, cheio de ricas referências intertextuais, que exige, portanto, muito repertório e argúcia do leitor; mas também – sobretudo – porque é uma obra cuja enunciação é marcadamente feminina, o prefaciador é homem, e vivemos numa época de estreiteza autoritária, em que a ditadura do “politicamente correto” e a delimitação escolástica dos “lugares de fala”, por exemplo, obrigariam que uma mulher escrevesse sobre a poética desta mulher.

Atento ao prototípico – e caricato – policiamento de plantão dos gêneros, então, por prudência já me antecipo às eventuais objeções deslegitimadoras, mostrando os andaimes da construção deste edifício textual. A princípio, esclareço que o título, o subtítulo e as epígrafes não escondem o imponderável do lance de dados no jogo hermenêutico, simulando certezas absolutas para dissimular dúvidas inequívocas, como se a opacidade não fosse o “dark side of the moon” do sentido, eclipsado pela ilusão da transparência do signo sob a lua cheia (de desvãos). Aliás, se já não soassem excessivos os três excertos, acrescentaria à “espiral de vozes” o velho Santiago, que se dirigia respeitosamente às enigmáticas águas salgadas sempre no feminino, alertando aos incipientes pescadores – amantes amadores – que “a lua afeta o mar [la mar] tal como afeta as mulheres”.

Se Hemingway entrasse, entretanto, no coro epigráfico, a última palavra seria, de todo modo, de Lispector, sublinhando que “não adiantaria explicar, porque a explicação exigiria uma outra explicação que se abriria de novo para o mistério”. Em sua “luminosidade obscura”, a alquimista do verbo refletiria esfíngica o lusco-fusco da incógnita: “Só tive inicialmente uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre (…). Hoje é noite de lua cheia. Pela janela a lua cobre a minha cama e deixa tudo de um branco leitoso azulado. O luar é canhestro. Fica do lado esquerdo de quem entra”. Se os marinheiros de primeira viagem a chamassem de “el mar”, replicaria irônica em ondas revoltas: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido”; “Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é a palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar fora a palavra. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a”. Para não dizer que ela não falou que escutou “o correr da água na clepsidra” simbolista, redimensionando o tempo além do “relógio de água” de Camilo, Clarice falou e disse:

“Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa (…). À duração de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios”.

A propósito, parece que o ancião Santiago, apesar de homem, era respeitoso escutador dos enigmáticos marulhos lunares, mas sem mergulhar mais fundo nos turvos mistérios inauditos, consciente de sua impotência para decodificar as lacônicas curvas hieroglíficas das águas vivas: por isso – amar não é domar – “o velho pensava sempre no mar como sendo ‘la mar’, que é como lhe chamam em espanhol quando verdadeiramente o querem bem”. Responderia então a Tétis das letras, endossando o mistério inacessível à palavra:

“Continua a lua cheia. Relógios pararam e o som de um carrilhão rouco escorre pelo muro (…). Sou coerente: meu cântico é profundo (…). Se crescer muito vira lua cheia e silêncio, e fantasmagórico chão lunar. À espreita do tempo que para (…). Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão”.

Posto isso, é sob essa perspectiva que o prefaciador mergulha fundo nestes “tantos estados da água”, atravessando as quatro estações – “sólidas”, “líquidas”, “gozosas” e “sublimes” – da singularíssima densa odisseia poético-existencial de Mariana Ferraz, aceitando o convite desafiador do poema-pórtico (“a mulher, a água, a vitória”):

 

“encontre-me

na fundura do mergulho:

você verá que sou esta mulher

e não outra.”

 

Aliás, “esta mulher” que se projeta no enunciado em primeira pessoa, sincretizando os papéis de “narradora” e “personagem”, cria já no introito um efeito de sentido autobiográfico, como explicita no penúltimo verso – metalinguístico – do terceiro poema (“falanstério”): “conclamo a narrativa pelo dorso biográfico”. No primeiro verso do sétimo poema (“prefixo”), a alusão ao antropônimo deixa mais nítida – ou menos difusa – a identidade “desta mulher” em que se (con)fundem os planos da realidade e da ficção: “o mar está em meu nome”. Nesse percurso poético genealógico em que as ondas onomásticas evocam sua mãe (que também traz o mar no nome) e seu avô (que a batizou nas águas salgadas “talvez porque habitara uma baleia”), “esta mulher” que se anuncia como uma, “não outra”, não poderia simular a singularidade, é claro, dissimulando a pluralidade.

Em outras palavras, não haveria de poder se sentir, de certa forma, “una” (em que pese, no fundo, saber-se imersa – como todos, ainda que não saibam – na trágica incompletude constitutiva da existência, na opacidade do discurso), se não se reconhecesse – uma a filha, a neta outra (entre outras tantas) – fruto da síntese de muitas. “Esta mulher” não precisaria de prefaciador algum – veja bem – atrevendo-se a lhe ensinar a lição básica de Heráclito, que ela tão bem conhece: afinal, se ignorasse que uma Mari jamais se banha duas vezes no mesmo mar (porque ela e ele – Maris e mares – são sempre outros quinhentos movimentos dialéticos), não teria plena consciência de que só é possível “ser a ponte” depois de “banhar-se no rio” (transmutando-se em outra, em outras águas, conforme já indicia o sugestivo título “o duplo”, poema sintomaticamente dividido em duas partes).

Aliás, abrindo os parênteses, esse “banho” traz à memória a metamorfose epifânica da personagem Joana de “Perto do coração selvagem” (romance de estreia de Clarice Lispector): nos breves segundos em que mergulha o corpo na banheira e põe a cabeça para fora, a garota se torna mulher. Se essa mulher fosse “esta mulher”, banhando-se “no rio de que emerge o verbo”, registraria o ponto de mutação assim: “descubro a veemência da palavra água/ e adentro seus meandros em pranto e profusão” (versos finais de “falanstério”). No mesmo poema, a propósito, “esta mulher” deixa nas entrelinhas que, se não ousasse mergulhar em tantas águas vivas, não poderia “autorizar-me correnteza”. Se não fosse “riocorrente”, “esta mulher” que tem o mar em seu nome jamais seria capaz de escrever um verso, tampouco sessenta poemas – com tanta beleza e propriedade, tanta riqueza e profundidade – sobre “tantos estados da água”.

Em outras palavras, só quem vive simultaneamente as transformações “sólidas-líquidas-gozosas-sublimes”, sismografando as variações da água na saliva, nas lágrimas, na vulva, mensurando a densidade da chuva que cai lá fora e a tempestade dentro de si, enfim, poderia escrever este surpreendente livro das águas. Não é fácil fazer prefácio, pois, porque é difícil não ficar bem aquém desta obra-prima. Quem dera pudesse escrever um texto que fosse um “circularco sobre a aquaface” de Mari.

 

 

 

Você encontra o livro, aqui: Editora Urutau

 

 

 

.

.

Paulo César de Carvalho nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Linguística pela USP. Escreveu em coautoria o material paradidático Arte e Cultura nos Anos 60 (Editora Anglo). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua PortuguesaDiscutindo LiteraturaArte & InformaçãoLivro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010, lançou o livro Toque de Letra (editora nhambiquara).  Tem parcerias com Tatá Aeroplano, Gustavo Galo e Cabelo (Trupe Chá de Boldo), Pélico, Juliano Gauche, Carlos Zimbher, Reynaldo Bessa e Wella Borges Costa. E-mail: carvalho70@gmail.com




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook