Isto não é uma crítica – II


 

 

“A diferença entre a avaliação feita por um grande crítico e a que faz o tolo semialfabetizado encontra-se na abrangência das referências inferidas ou citadas, na lucidez e na capacidade de argumentação (o estilo do crítico) e no acréscimo acidental do crítico que é, ele mesmo, alguém que cria.” (STEINER, George. “Presenças verdadeiras”. In: “Nenhuma paixão desperdiçada”. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 38).

 

O leitor ilustrado dispensa a legenda: o título, obviamente, faz alusão ao célebre quadro do surrealista René Magritte. Se leu a primeira parte (publicada em minha coluna no site Musa Rara), recorda certamente que o fecho já explicitou o jogo intertextual, desafiando a quem discordasse da sentença que provasse ser o texto criticado realmente uma crítica, provando também do “não cachimbo” do pintor, como coroamento da façanha retórica. Recomeçando do ponto crítico, pois, parafraseamos agora Gertrude Stein, para recolocar – com mais destaque, em atenção aos que enxergam mal, ou mal enxergam – os pingos nos is: uma crítica é uma crítica é uma crítica é uma crítica. Tão claro quanto constatar que uma crônica é uma crônica é uma crônica é uma crônica; ou que uma entrevista é uma entrevista é uma entrevista é uma entrevista; ou que um charge é uma charge é uma charge é uma charge. Nenhum leitor competente, convenhamos, haveria de confundir um artigo de divulgação científica com uma tese acadêmica, ou uma carta de leitor com um editorial, ou uma reportagem com um artigo de opinião, ou uma previsão meteorológica com um horóscopo. Aliás, uma pessoa com formação escolar de nível médio não precisaria ter grande inteligência (sendo delicadamente eufemístico) para saber que um sermão religioso não tem nada a ver com uma sentença judicial, que um diagnóstico médico não tem qualquer semelhança com um mapa astral, que redigir um “curriculum vitae” não é discorrer sobre detalhes da vida privada. Como bem definiu o linguista Mikhail Bakhtin, os gêneros discursivos são os “elos na grande cadeia da comunicação humana”: da réplica monossilábica de uma saudação cotidiana a um romance de vários tomos, todos se caracterizam por uma “estrutura de composição” (ou seja, por um “formato” padronizado), um “eixo temático” (isto é, por determinados “assuntos” específicos) e um “estilo” (quer dizer, por um registro de linguagem particular). Na síntese do linguista Tzvetan Todorov, todo gênero instaura um “modelo de escrita” e delimita um “horizonte de leitura”. Enfim, para concluir o introito didático-digressivo, lembro que, em três décadas de magistério, depois de explicar às classes esses princípios básicos, sempre alertava os vestibulandos para não fugir jamais ao gênero textual exigido pela banca examinadora, sublinhando-lhes que, por melhor que de fato pudesse ser sua redação, quem escrevesse uma narração em lugar de uma carta argumentativa, ou uma crônica em vez de uma dissertação, por exemplo, seria sumariamente desclassificado, sem qualquer hipótese de recurso.

 

Posto isso, que é tão elementar ao ilustre autor de “Problemas de Redação” (o mesmo que assina – por incrível que pareça – a tal “não crítica”), voltemos ao ponto crítico : uma crítica, seja cinematográfica ou gastronômica, política ou teatral, econômica ou literária, é uma crítica. Em outros termos, independentemente de tratar de moda ou de turismo, de dança ou de vinhos, de artes plásticas ou de música, uma crítica é uma crítica, gênero de discurso que se caracteriza pela descrição e interpretação, pela análise exaustiva – com os instrumentos metodológicos adequados – e pelo bem fundamentado julgamento de valor do objeto sob exame. Para corroborar essa ideia com um qualificadíssimo argumento de autoridade, convém acrescentar à epígrafe outras lapidares formulações de um dos mais respeitados críticos literários contemporâneos, George Steiner. A propósito, como o “não resenhista” é professor titular de Teoria Literária da Unicamp e membro da Accademia Ambrosiana de Milão, e lastimou (num parágrafo do infausto texto, citado em nosso artigo anterior) o fato de o “não resenhado” não estar lecionando literatura nas maiores universidades daqui, de lá e acolá, não custa informar – para dimensionar o grau de deslumbramento provinciano do comentário – que o eminente intelectual francês foi professor das mais prestigiosas universidades do mundo, como Cambridge, Genebra, Oxford, Stanford, Princeton, Harvard e Yale. Deixemos de lado, enfim, a aristocrática e tediosa apresentação de títulos acadêmicos, para credenciar o autor – como se deve corretamente proceder, a bem do rigor crítico – pelo padrão de excelência de sua própria obra. Nos trechos a seguir, pois, evocando o quadro “Le Philosophe lisant” (1734) de Chardin, Steiner registra a função determinante da prática de leitura – meticulosa, vertical – para a formação do grande leitor especializado, requisito obrigatório para a execução competente do papel de crítico literário. Para ser mais exato, toda crítica é – traço indissociável do ofício – um gesto sistemático de leitura: o que significa dizer, em outras palavras, que todo crítico é uma espécie de “leitor profissional”. Com a palavra autorizada, então, o emérito mestre:

 

“Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total (…). É assumir responsabilidade pelo texto (…): é um processo de exames que testam a compreensão do essencial apreendido (…).

O leitor clássico, o ‘lisant’ de Chardin, situa o texto que está lendo em um espaço cheio de ressonâncias. Um eco responde a outro, a analogia é precisa e imediata, as correções e as emendas são justificadas por precedentes evocados com precisão. O leitor reage ao texto com toda a densidade articulada de seu próprio repertório de referências e associações (…). O ato e a arte da leitura séria comportam dois movimentos principais do espírito: o da interpretação (hermenêutica) e o da valorização (crítica, do julgamento estético). Os dois são absolutamente inseparáveis. Interpretar é julgar. Nada se decifra, por mais filosófico, por mais textual no sentido estritamente técnico, sem que se empregue juízo de valor. Da mesma forma, nenhum juízo crítico, nenhum comentário estético pode deixar de ser interpretativo (…). Uma teoria crítica, uma estética, é uma declaração política de gosto. Procura sistematizar, tornar visivelmente aplicável e pedagógico, um conjunto de instruções articuladas, uma determinada inclinação da sensibilidade, um viés conservador ou radical de algum mestre da percepção ou de uma aliança de opiniões.” (STEINER, George. “Nenhuma paixão desperdiçada”. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 18, 26, 37-38).

 

Como se depreende de suas precisas formulações, não é demais resumir, a arte da leitura crítica implica tanto o domínio da ciência “hermenêutica”, a competência interpretativa, quanto a capacidade de discriminação valorativa, a habilidade de julgar qualitativamente a obra. Na perspectiva arguta do crítico-professor, é necessária uma espécie de síntese dialética entre sujeito e objeto, entre a “subjetividade” do “gosto” e a “objetividade” da “declaração política” de “determinada inclinação de sensibilidade: efeito de sentido produzido pela sistematização do gostar ou não gostar, justificando a apreciação positiva ou negativa da obra por meio de “um conjunto de instruções articuladas” – “visivelmente aplicáveis e pedagógicas”. Moral da história: para George Steiner, gosto literário se discute sim, sem margem a inconsistentes – tão fáceis quanto frágeis – argumentos “impressionistas”, como os inúmeros de que lançou mão – perdeu a mão? – o expert tupiniquim no jornal Rascunho. Aliás, não tinha atentado para a obviedade onomástica: talvez a não crítica – “que podia ter sido e que não foi” (que Bandeira!) – tenha sido publicada como “rascunho” propositadamente… Seja ou não seja isso, enfim, a questão é que o texto não cumpre os requisitos do gênero: menos pior seria se fosse identificada como o que realmente é – uma “coluna social” literária. Parafraseando novamente Gertrude, uma coluna social é uma coluna social é uma coluna social é uma coluna social: um gênero textual jornalístico opinativo, cujo objeto é a vida de artistas, autoridades, figuras excêntricas, tipificado pelos especialistas – em geral – como espaço de “mexericos”, “boatarias”, sem linha demarcatória nítida entre as esferas pública e privada. Em outros termos, trata-se de um subgênero que revela indiscrições, dá a conhecer confidências, fazendo elogios hiperbólicos ou comentários depreciativos sobre o “contemplado”.

 

Considerando que já reproduzimos, na parte I, longos excertos da “não resenha”, daremos destaque aqui apenas a trechos pontuais, para ilustrar sumariamente algumas análises. Por exemplo, os epítetos e adjetivos que ratificam o argumento de que “isto não é uma crítica”, mas uma coluna social, uma vez que apresentou o autor de “Impressões do pântano” como “espírito de porco da poesia nacional”, um sujeito “indigesto” e extremamente “talentoso”, que deveria ser “doutor em literatura e estar empregado em alguma universidade de ponta”, desejoso de ser “reconhecido como um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos” – não o sendo, entre outras supostas “razões”, por não fazer a “social” nos encontros do “clubinho das letrinhas” nem média com os críticos (essas últimas aspas são minhas). Aliás, o leitor atento, interlocutor de excelente memória textual, reclamaria se faltasse aqui a informação de que o ilustre desconhecido “colunável” era “amigo e parceiro de composições” do poeta pop Paulo Leminski. Com o perdão da redundância, sublinho que essas notas adjetivosas – focalizando a vida social do autor, e não sua obra – são deveras estranhas ao gênero “crítica literária”, todavia bastante familiares ao subgênero “coluna social da literatura”. Como também o são as caracterizações impressionistas de teor psicologizante, que diagnosticaram o “colunável” (aspas minhas) como “ressentido” e “excitado” frente à “subestima”, com perfil “desenganado”,  vocação “destrutiva”, um típico “niilista” – em cujas “pupilas fatigadas” (a alusão a Drummond é do colunista) se refletiria a sua “muita experiência do fracasso”. Para concluir o parágrafo, parece-me que a organização desses trechos serve de prova inconteste – dada a obviedade ululante – de que o “rascunho” é uma coluna social, não uma crítica literária. A esta altura, diante de tantos reiterados colossais equívocos, enfim, não custa repetir enfática e sarcasticamente: quem ainda assim o negar, que negue também Magritte e acenda seu “cachimbo”.

 

Posto isso, convém fazer também algumas críticas complementares a este excerto absurdo: “O que há em comum nos blocos é a convicção de que, na experiência humana, apenas a dor, o temor e a morte são certos, tudo o mais não indo além de figuras de ideologia, no sentido marxista de falsa consciência ou de ilusões de auto-engano (sic) complacente”. Para dar a real dimensão do amadorismo do dublê literário de Ibrahim Sued nesta súmula de bobagens, cito um trecho de “Linguagem e Ideologia”, obra de José Luiz Fiorin que integra – veja bem – a série “Princípios” da editora Ática. Com a finalidade de expor o complexo tema a leitores incipientes, o linguista sintetiza didaticamente as formulações materialistas históricas e dialéticas propostas em “A ideologia alemã” (já citada na primeira parte), esclarecendo que nela – atenção, detratores de plantão – Marx e Engels “dizem que não se pode fazer da linguagem uma realidade autônoma, como os filósofos idealistas fizeram com o pensamento. Mostram os dois autores que nem o pensamento nem a linguagem constituem um domínio autônomo, pois ambos são expressões da vida real”. Com a clareza dos que conhecem a fundo o objeto de que tratam (o que não é o caso, é claro, do colunista), Fiorin se previne das rasteiras interpretações deterministas, sublinhando que o próprio Engels – em carta a Bloch de 21 de setembro de 1890 – teve a cautela de ressalvar “que nem todas as alterações que se dão nas instituições sociais se devem a causas econômicas, e exemplifica essa afirmação com a mutação consonântica do alto alemão, que ocorreu por razões internas ao sistema fonológico”.  Concluindo o capítulo, o eminente professor fez ainda este providencial alerta aos debutantes, como antídoto contra o tão comum tratamento mecanicista do problema: “O primeiro cuidado é, pois, não considerar a linguagem algo totalmente desvinculado da vida social nem perder de vista sua especificidade, reduzindo-a ao nível ideológico.” (FIORIN, José Luiz. “Linguagem e ideologia”. São Paulo: Ática, 2001, pp. 8-9).

 

É certo que essas ressalvas não poderiam servir de desculpa ao membro da Accademia Ambrosiana de Milão quanto à sua perspectiva sobre caráter não ideológico dos conceitos – atenção! – de “dor, temor e morte”. Se afirmasse isso em aula, palestra ou conferência, e alguém o questionasse irônico sobre as diferenças entre “dor” e “prazer”, por exemplo, aos olhos de um sádico e de um masoquista, como será que ele resolveria a questão? E se outro, aproveitando a deixa, perguntasse ao mestre sobre uma mesma situação de “dor”, para uns tão improvável quanto insuportável, e tão suportável e corriqueira para outros, como é o caso da “escarificação”, isto é, das marcas feitas na pele – com diferentes instrumentos cortantes – em algumas tribos (bodi, mursi e surma) da Etiópia, Uganda e Sudão do Sul, como parte dos ritos iniciáticos e traço étnico identitário? Se fosse seu aluno, não resistiria em confrontá-lo com o significado singular do binômio morte-luto entre os “dayak” na ilha de Bali, conforme a ritualística descrita pelo sociólogo da cultura e folclorista Robert Hertz: “Os indonésios dão sentido especial à decomposição do cadáver, após a qual o espírito estará livre de suas impurezas e pode se unir a seus antecessores entrando no país dos mortos. Isso graças a uma cerimônia especial que conduz a alma para o outro mundo. O período ritual é, então, um período dedicado a exorcizar o cadáver e alertá-lo contra os demônios, cujo final culmina no encontro de um lugar para o indivíduo no mundo dos mortos. A família auxilia participando de práticas como a ingestão do líquido do cadáver colocado no arroz, o que aceleraria a passagem do cadáver a esqueleto.” (DIAS, Maria Luiza. “Suicídio: testemunhos de adeus”. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 33). O que é “certo” nesse caso, notável sábio? Todos esses exemplos não seriam – como quase tudo – “figuras de ideologia”? Para encerrar minha interpelação retórica, pediria que o excelso acadêmico comentasse se o que disse na “não resenha” era ou não o que deu a entender, à luz destas duas lapidares formulações do linguista Mikhail Bakhtin (o primeiro excerto, citação indireta; o segundo, da fonte originária):

 

“Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem (…). Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos.”

(ZAVALA, Iris. “O que estava presente desde a origem”. In: “Bakhtin, dialogismo e polifonia”. São Paulo: Contexto, 2009, p. 155).

 

“As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais, em todos os domínios (…). O ser (…) não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que (…) determina essa refração do ser no signo ideológico é o confronto de interesses sociais (…). Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”. (BAKHTIN, Mikhail. “Marxismo e Filosofia da Linguagem”. São Paulo: Hucitec, 1992, p. 41-46).

 

A propósito de tantos despropósitos – também – sobre “figuras de ideologia” e “falsa consciência”, poderia lembrar ao colunista literário outras referências teóricas, como, por exemplo, o filósofo Louis Althusser, em cuja perspectiva “a ideologia representa a relação imaginária de indivíduos com suas reais condições de existência”. Como estamos recorrendo a obras didáticas de iniciação – como a de Fiorin da série “Princípios” – para explicar conceitos básicos a quem faz pose de especialista, recordo-lhe os comentários de Helena Nagamine Brandão sobre o filósofo Paul Ricoeur, em “Introdução à Análise do Discurso”. Segundo a professora da Unicamp – que, diferentemente do pretensioso colega, sabe bem do que fala -, eis a questão: “Uma definição de ideologia que a reduz as funções de dominação (…) é que nos leva a aceitar sem crítica a identificação de ideologia com as noções de erro, mentira, ilusão. Ele não nega a existência de tais funções, mas, antes de chegar a ela, diz ser preciso entender uma função anterior e básica que concerne à ideologia em geral (…). A ideologia perpetua um ato fundador inicial. Nesse sentido, ‘a ideologia é a função da distância que separa a memória social de um acontecimento que, no entanto, trata-se de repetir. Seu papel não é somente o de difundir a convicção para além do círculo dos pais fundadores, para convertê-la num credo de todo o grupo, mas também o de perpetuar a energia inicial para além do período de efervescência’. Essa perpetuação de um ato fundador está ligada à ‘necessidade, para um grupo social, de conferir-se uma imagem de si mesmo’ (…). Toda ideologia é operatória e não-temática. Isto é, ela opera atrás de nós, mais do que a possuímos como um tema diante dos nossos olhos. É a partir dela que pensamos, mais do que podemos pensar sobre ela.’ É devido a esse estatuto não-reflexivo e não transparente da ideologia que se vinculou a ela a noção de dissimulação, de distorção.” (BRANDÃO, Helena Nagamine. “Introdução à análise do discurso”. Campinas: Editora da Unicamp, s.d, pp. 24-25). Some-se a essas precisas reflexões as do crítico marxista Terry Eagleton e as do linguista Michel Pêcheux, autoridades citadas no artigo anterior para contradizer os clichês do colunista sobre o tal “sentido marxista de falsa consciência”.

 

Problematizando uma última questão, a fim de deixar ainda mais evidente que “isto não é uma crítica”, mas uma coluna social literária, proponho uma breve análise do “éthos” do não resenhista. No brilhante ensaio “O éthos do enunciador”, José Luiz Fiorin (este sim, professor, um grande intelectual!) explica que o éthos “é uma imagem do autor, não é o autor real; é um autor discursivo, um autor implícito”. Dando como exemplo o grande Machado de Assis (este sim, professor, um grande autor!), o professor da USP anuncia o conceito, herdeiro da retórica aristotélica: “Nunca é demais insistir que não se trata do Machado real, em carne e osso, mas de uma imagem do Machado produzida pelo texto”. Conforme ensinara o Estagirita, sublinha providencialmente Fiorin, “é preciso que essa confiança [inspirada pelo “orador”] seja resultado do discurso e não de uma prevenção favorável a respeito do orador [modernamente, do “enunciador”].” Vale destacar, aliás, esta sintomática – porque reveladora, no caso da “não crítica”, de cacoetes personalistas do “não crítico” – ressalva do linguista:

 

“Em termos mais atuais, dir-se-ia que o ‘éthos’ não se explicita no enunciado, mas na enunciação. Quando um professor diz ‘eu sou muito competente, está explicitando uma imagem sua no enunciado. Isso não serve de prova, não leva à construção do ‘éthos’. O caráter da pessoa competente constrói-se na maneira como organiza suas aulas, como discorre sobre os temas, etc. À medida que vai falando sobre a matéria, vai dizendo ‘sou competente’ (…). Portanto, a análise do ‘éthos’ do enunciador nada tem do psicologismo que, muitas vezes, pretende infiltrar-se nos estudos discursivos. Trata-se de apreender um sujeito construído pelo discurso e não de uma subjetividade que seria a fonte de onde emanaria o enunciado, de um psiquismo responsável pelo discurso.” (FIORIN, José Luiz. In: “Em busca do sentido” estudos discursivos”. São Paulo: Contexto, 2012, p. 139).

 

Posto isso (e aquilo, e aquilo, e…), espero que o grande especialista em Padre Viera, o grande mestre da retórica barroca conceptista, depois de cometer grandes deslizes (típicos de um despreparado pequeno crítico amador – a redundância é enfática), justifique esta injustificável justificativa para chancelar a obra do autor de “Impressões do pântano”: “Li atentamente todos esses livros, e posso garantir [atenção, leitor!] o nexo entre eles (…). Isto é, além de possuir talento, Dolhnikoff não o economiza jamais.” A impressão que o colunista dá ao leitor crítico, enfim, é de que ele sim é que patina no pântano, afundando no “Lodo”, sintoma do tal “colapso da crítica”, sobre o qual discorreu naquela entrevista ao Jornal da Unicamp” (citada também no artigo anterior). Ao se comportar como aquele paraguaio disfarçado de japonês naquela velha propaganda televisiva, repetindo, com léxico mais pomposo, “la garantía soy yo”, o colunista social – dublê de crítico literário – constrói sua imagem não com os recursos da “phrónesis” (do “lógos”), mas da “areté”: ou seja, diz que é competente – como diz que é competente o “colunável” -, como se bastasse dizer no enunciado que é, sem precisar provar sê-lo pela enunciação. Ao nosso Ibrahim Sued do colunismo literário, daria o célebre recado shakespeareano do Bobo ao Rei Lear:

 

“Isso mesmo. Tu darias um bom Bobo (…). Se tu fosses meu Bobo, titio, ias apanhar muito pra aprender a não ficar velho antes do tempo (…). Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio.” (SHAKESPEARE, W. “O Rei Lear”. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2020, p. 40).

 

Aos jovens críticos, parafraseando Mário de Andrade na “Conferência de 42”, diria: se o colunista não lhes pode servir de exemplo, que lhes sirva, ao menos, de lição!

 

 

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PS: Gostaria de ter citado, no primeiro artigo, esta lição do grande Ezra Pound (este sim, professor, um grande poeta-crítico):

 

“Como escreveu Lewis: ‘A matéria que não tem a permeá-la inteligência suficiente se torna, como sabem, gangrenosa e apodrecida’ (…). A crítica é fruto da maturidade; o faro é uma faculdade das mais raras. Na maioria dos países, as únicas pessoas que conhecem literatura bastante para apreciar – isto é, para determinar o valor das – novas produções são professores e estudantes que limitam sua atenção ao antigo. É característico do artista que ele, e somente ele, seja indiferente à antiguidade ou à novidade. Não tolera a decrepitude; o jade pode ser antigo, as flores razoavelmente viçosas, mas um carneiro assado na semana retrasada é na maioria das vezes intragável.

O crítico imaturo está sempre caindo nessas armadilhas. A ‘originalidade’, quando assaz real, é com frequência simples derivação, é muitas vezes uma proximidade de índole. O inovador mais aferrado à excentricidade é amiúde o que está mais no centro da trajetória ou órbita da tradição, e seus detratores não passam de ignorantes. O artista se encontra em equilíbrio saudável, totalmente indiferente à antiguidade ou novidade, desde que a coisa satisfaça-lhe as necessidades. O erudito, quase sempre egoísta, pouco tem a ver, via de regra, com as letras contemporâneas. Ele joga no certo. Atém-se ao que muitos já consagraram. Deixa que o jornalista seja nosso juiz (…). O jornalista e seus artigos existem em função de seu ‘colorido protetor’. Sua função é pensar como seus leitores pensam num determinado momento.” (POUND, Ezra. “Ironia, Laforgue e um pouco de sátira”. In: “A arte da poesia: ensaios escolhidos de Ezra Pound”. São Paulo: Cultrix, 1988, pp. 119-120).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Linguística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Escreveu em coautoria o material paradidático Arte e Cultura nos Anos 60 (Editora Anglo). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo LiteraturaArte & InformaçãoLivro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010, lançou o livro Toque de Letra (editora nhambiquara). É vocalista e letrista da bandaOs BabilaquesTem parcerias com Tatá Aeroplano, Gustavo Galo e Cabelo (Trupe Chá de Boldo), Pélico, Juliano Gauche, Carlos Zimbher, Reynaldo Bessa e Wella Borges Costa. E-mail: carvalho70@gmail.com




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