Isto não é uma crítica


 

“Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade.” (Mário de Andrade, “Prefácio Interessantíssimo”)

 

Ele é professor titular de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas, título obtido pelo conjunto de ensaios reunidos no livro “Máquina de Gêneros”, lançado em 2001 pela Edusp. Ele foi diretor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, entre 2007 e 2011. Ele é membro da Accademia Ambrosiana de Milão. Ele é um dos maiores especialistas na obra do mestre barroco conceptista Padre Antônio Vieira, cujos “Sermões” criteriosamente organizou em dois tomos, publicados pela editora Hedra entre 2000 e 2001. Ele é responsável pelas cuidadosas edições das obras completas do poeta beat tupiniquim Roberto Piva, da escritora polígrafa Hilda Hilst e do dramaturgo Plínio Marcos: as de Piva, entre 2005 e 2008, e as de Hilda, entre 2001 e 2008, pela Editora Globo; as de Plínio, em 2017, pela Funarte. Ele foi coeditor da qualificada revista de cultura Sibila. Ele também exerce a função de crítico literário na imprensa, colaborando há muitos anos com diversos tipos de publicações, como Folha de S. Paulo e Cult. Com um currículo acadêmico, editorial e jornalístico tão vasto, com uma produção intelectual tão exemplar, enfim, ele dispensa evidentemente apresentações: em outros termos (mais técnicos) o referente do pronome reto da terceira pessoa, em papel coesivo catafórico no texto, só pode ser ignorado, a esta altura de tantas “pistas” óbvias, por quem é de fato leigo no assunto. A esse perfil de leitor, é claro, não só seria indiferente acrescentar a informação de que ele já escreveu inclusive livro analisando redações de vestibulandos – “Problemas de redação”, lançado pela Martins Fontes em 1983 -, mas também seria inútil até explicitar seu nome: certamente, ele ainda continuaria incógnito. Aliás, não é absurdo considerar que mesmo os que saibam quem é ele – depois de entregar seu nome, é claro – não o identificariam pelas digitais impressas neste “pé biográfico”. Em síntese, como em toda enunciação, via de regra, o enunciador define o enunciatário, o interlocutor deste artigo – vale ressalvar para que não reclamem o que não está acordado – é especializado. Sendo mais direto, a questão é que o diálogo aqui só é possível com aquele que efetivamente está envolvido – como leitor ou autor – com as letras, interrogando-se, pois, sobre os caminhos e descaminhos da crítica e da produção literária contemporânea.

Posto isso, o objeto sob exame neste texto é uma resenha que ele publicou na edição 257 do jornal “Rascunho”, em setembro de 2021, sobre o último livro de poesia de um colega de ofício: que se consolidara tão polêmico quanto consistente crítico – para desespero das vítimas de seus obuses verbais – naquelas mesmas páginas da revista Sibila, aliás, que ele coeditou. Começando, então, a crítica da tal crítica ao livro do crítico-poeta pelo princípio, eis o título: “Poesia como declinação lógica de dor, medo e morte”. Lendo-o descontextualizado, à primeira vista a escolha lexical do autor provoca ambiguidade, em razão da polissemia do termo “declinação”, que pode basicamente significar (em “situação dicionária”, diria João Cabral) “decadência”, “enfraquecimento”, “abaixamento”, “afastamento”, “direção para baixo ou fora”, “recusa”, “renúncia”, “abdicação”, “repúdio” – ou, em acepção linguística estrita, “conjunto de flexões de certas classes gramaticais, conforme a função sintática que exercem”. Sem mais dados contextuais, enfim, não dá para saber ao certo se o crítico quis dizer, por exemplo, que a poesia do crítico-poeta traduziria a inexorável “decadência”, a queda existencial expressa pelo trinômio “dor, medo e morte”; ou se, em via diametralmente oposta, que seus versos refletiriam a “recusa” e o “afastamento” das destruidoras pulsões tanáticas. Em todo o caso, seja como “direção para baixo”, impulsionado por força negativa, ou “para fora”, movido por força positiva, não se trata, a bem do rigor filosófico ou matemático, de relação propriamente “lógica”, não? A menos que o professor-crítico, exímio linguista e conhecedor do Latim, tenha empregado “declinação” em sentido técnico, hipótese a conferir pelo contexto em que circunscreve os lexemas “dor, medo e morte”. O subtítulo também não ajuda a resolver a inequação sintático-semântica: “Impressões do pântano, de Luis Dolhnikoff, traz o emprego de formas poéticas variadas: de poemas em prosa a decassílabos”. Aliás, dando a conhecer agora o título do novo livro do crítico-poeta, o professor-crítico parece estar sugerindo que o “eu-lírico” do bardo “decadentista” teria uma forte atração pelo terreno lúgubre, ou tremenda repulsa pela lamaçal, contudo, de que não consegue sair, protestando para surdos néscios no atoleiro estético contemporâneo, em que nada se cria, tudo – se copia – se destrói. Mesmo supondo que seja isso mesmo o que tenha pretendido dizer, ainda assim resta explicar ao leitor o que essa constatação teria a ver com “o emprego de formas poéticas variadas”, isto é, de que maneira o conjunto eclético de “poemas em prosa” e “decassílabos” concorre para instaurar a tal atmosfera pesarosa de “dor, medo e morte”. Como qualificado crítico literário, é de se esperar que, nas linhas subsequentes, ele esclareça a relação isomórfica entre os planos da expressão e do conteúdo que confere unidade poética à obra “Impressões do pântano”.

Prosseguindo a leitura (considerando que ela começa já nos “procedimentos supratextuais” de formatação textual, como o título e o subtítulo, na terminologia de Bronckart), à espera de uma centelha de luz neste pantanoso breu hermenêutico, eis o que se encontra nas primeiras linhas da resenha:

Reconhecido como um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos… – assim reza a lenda da orelha do novo livro de Luis Dolhnikoff. Lenda, digo, pois se alguma coisa com que Dolhnikoff não pode contar é o reconhecimento de sua grandeza, seja entre críticos ou colegas de ofício, ainda que seja de fato um poeta de valor. Seria mais justo, portanto, falar em subestima de sua poesia (…).”

Para começo de conversa, diria um leitor tão arguto quanto impaciente, o introito é conversa fiada: o ponto de partida é obscuro; nenhuma palavra acende uma faísca sequer para iluminar um pouco o percurso. A afirmação proclamatória do “orelhista” é obtusa, insustentável à luz das evidências: afinal, o crítico-poeta não é mesmo “reconhecido como um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos”. A propósito do despropósito, se realmente – como sublinha o professor-crítico – isso é uma “lenda”, para que a lenda se impusesse sobre a realidade, conforme a clássica frase aforismática que encerra o emblemático faroeste de John Ford, é porque haveria no mínimo vários outros que comungariam desse balanço otimista, não? De todo modo, sendo mesmo uma “lenda”, seria ela a antípoda da verdade dos fatos, certo? Mas quem mais, além do anônimo “orelhista”, ousaria sustentar tal absurdo, se o crítico-poeta “não pode contar com o reconhecimento de sua grandeza” – na asseveração do professor-crítico – nos dois polos autorizados, uma vez que é ignorado tanto pelos leitores especialistas quanto pelos “fabbro”? Supondo que o “orelhista” não seja mais um leigo livre-atirador no escuro (mera suposição, já que – como se envergonhado do disparate sobre o vate – sequer assina embaixo), a frase grandiloquente deve então ser lida como ironia, figura retórica em que a afirmação expressa no enunciado é negada implicitamente na enunciação. Retomando a epígrafe do modernista, enfim, talvez se trate realmente disto: a “blague” do enunciado dissimularia estrategicamente a “seriedade” da enunciação. Sendo mais direto, para traduzir o jogo argumentativo sutil “em língua de dia de semana” (nas aspas exigentes do jagunço “Famigerado” de Rosa), eis a questão: é tudo mentira! Quem saberia a verdade sobre a tal “grandeza” não reconhecida, sobre a suposta “subestima de sua poesia”, logo, seria o ilustre portador da palavra final: ele, e somente ele, o célebre douto professor-crítico resenhista. Só a ele caberia emitir o juízo derradeiro, proferindo professoral a sentença estética definitiva. Só ele poderia esclarecer, é claro, indo aos versos do resenhado para matar a cobra e mostrar o pau, por que o injustiçado seria injustiçado, provando por “A mais B”, para não deixar pedra sobre pedra, por que o crítico-poeta seria “de fato um poeta de valor”. Em primeiro lugar, isso; só depois, aquilo: ou seja, atestando o valor estético do “fabbro” pela análise sistemática dos poemas, poderia então o crítico literário conjecturar, ao menos com mais propriedade, sobre as eventuais razões que teriam provocado o eloquente silêncio – forma de “boicote” mais perversa – dos “críticos ou colegas de ofício” sobre a “grandeza” de sua obra. Em síntese, isso sim parece “lógico” a todo experimentado crítico: não seria consequente ponderar sobre as motivações gerais da injusta “subestima”, há de se convir, sem antes ter atestado, com argumentos incontestes aos detratores de plantão, a alta qualidade da produção do inglório boicotado.

O professor-crítico, entretanto, na contramão da esperada razoabilidade “lógica”, preferiu ponderar sobre as possíveis causas do desprezo tanto dos que escrevem sobre os que escrevem poemas quanto dos que escrevem poemas, sem ter escrito ainda uma linha sequer sobre as “louváveis” linhas poéticas – no vasto espectro de “formas”, entre “poemas em prosa” e “decassílabos” – do injustamente desprezado. Aliás, com o perdão do trocadilho pleonástico, se “seria mais justo, portanto, falar em subestima de sua poesia”, é justamente por isso, portanto, que seria mais justo falar de sua poesia, não é justo? Mas ele optou por abordar problemas de ordem extralinguística, fatores exteriores ao texto, questões de sociologia da literatura, deixando de lado a investigação dos próprios poemas que deveriam ser objeto, evidentemente, da rigorosa crítica literária. É o que se depreende da analogia do fim do primeiro parágrafo: “(…) assim como ainda são subestimadas as obras de dois excelentes poetas a quem Dolhnikoff admira e homenageia em alguns de seus poemas: Bruno Tolentino e Régis Bonvicino. E entende-se porque (sic) seja assim, pois não são poetas que se prestem a relações de camaradagem entre pares ou a compor versos que tragam estímulo e edificação à vida do leitor”. Novamente, não há uma linha justificando por que (separado e sem acento) os dois nomes sejam “excelentes poetas”, nem em que medida autores tão díspares – quanto “as formas poéticas variadas” de “Impressões do pântano” – fariam parte do “paideuma” do crítico-poeta: nenhum exemplo sequer dos versos que rendem homenagens a ambos. Na verdade, a referência aos dois se presta apenas a ampliar o rol de poetas subestimados, como mero pretexto para “ilustrar” sua tese sociológica. Ou seja, o tal desprezo às obras do trio se explicaria por duas razões básicas: por um lado, por não se prestarem ao “compadrio” típico do clubinho das letrinhas; por outro, por não escreverem poemas “edificantes” de “autoajuda”. Não é difícil inferir, portanto, que a valorização de suas obras dependeria de dois tipos de proselitismo: um, caracterizado pela gestão diplomático-demagógica junto aos “colegas de ofício” e aos críticos; outro, pela retórica da sedução fácil voltada à massa informe de leitores despreparados. Se é possível ler no “pois” explicativo do professor-crítico os caminhos para o sucesso no círculo literário, enfim, seria preciso aos “fabbri” afrouxar a mão e abandonar o rigor construtivo, para se dedicarem com afinco à potencial horda de fiéis, em busca da fama consagradora: nada mais alheio, convenhamos, ao fazer poético “stricto senso”, não?

No segundo parágrafo, como se não bastasse, o resenhista apresenta ainda uma terceira hipótese – que, agregada às pregressas, faria “entender” a tal “subestima” dos “excelentes poetas” – de ordem política (as outras, na verdade, também o são, embora em sentido lato). Vejamos: “Mais ainda, são poetas cujas convicções políticas nada têm de simpáticas, seja a um humanismo genérico, seja a uma esquerda culturalista, digamos. Contudo, diferentemente das posições políticas de Tolentino, as de Dolhnikoff, reiteradas em seus poemas, são pensadas dentro de um viés de esquerda materialista, iluminista, racionalista e cientificista – ainda que não dialética, como se verá -, frontalmente contrária ao comportamentalismo populista, de matriz norte-americana, ancorado em bandeiras relevantes como as do politicamente correto e das minorias de gênero e raça.” O professor-crítico, dublê de sociólogo da literatura, com vocação taxonômica de entomologista bissexto, cataloga os “specimen” – caso “acusativo” no Latim – da fauna poética com critérios bastante duvidosos, de uma imprecisão “impressionista” ofensiva à seriedade científica: o que seria, por exemplo, “humanismo genérico” e “esquerda culturalista”? Se ele houvesse empregado terminologia consagrada, marcada pela “monossemia” e “monorreferencialidade” (a precisão lexical é requisito obrigatório no discurso científico), ainda assim conviria esclarecê-la em respeito ao leitor leigo no específico campo de saber: não é, contudo, o caso em tela, não é mesmo? Além de o adjetivo “genérico” não delimitar a natureza do “humanismo” de Tolentino, não se trata propriamente de “convicção política”, certo? Será que o notável colecionador de “borboletras” conhece a famosa palestra de Sartre, em 1945, que dera origem ao clássico ensaio “O Existencialismo é um Humanismo”? Outro problema é o impróprio adjetivo “culturalista” com que classifica a visão de “esquerda” de Bonvicino: seria ela “materialista dialética”, portanto “marxista”, ou não? Na perspectiva míope do taxonomista amador, parece que não, já que o adjetivo “materialista” restringe o significado da “esquerda” que identificaria o autor de “Impressões do pântano”: que, aliás, não seria “dialética”, segundo o exímio exegeta. Seria, então, “escolástica”, adjetivo empregado por Lênin para separar o joio do trigo, distinguindo dos “bons” os “maus marxistas”? Outro “imbróglio”, a propósito, é o anacronismo do emprego de “iluminista”, é claro, circunscrito a outro contexto histórico, distinto quadro ideológico e matriz teórica diversa, a cujas categorias “universais abstratas” se contrapõe a epistemologia marxista, a metodologia materialista histórica e dialética, né? Em síntese, para não perder mais tempo comentando tantas bobagens insustentáveis (pleonasmo enfático), se o leitor esperava encontrar uma nesga de luz, enfim, no fim do túnel, aprofundou-se a escuridão no pântano conceitual em que chafurda o resenhista.

Como ele resolveria, por exemplo, o paradoxo de o bardo de “esquerda materialista” ser “frontalmente contrário” ao discurso identitário, senão abstraindo as condições materiais de existência em que se articulam perversamente – em níveis desiguais e combinados de relações – opressão e exploração? Na perspectiva estrábica do professor-crítico, as lutas por direitos das minorias “étnicas” (o conceito de “raça”, veja bem, é herdeiro da tradição reacionária positivista – eugenista – do século XIX) e de gênero seriam mera expressão oportunista do “comportamentalismo populista, de matriz norte-americana”. Ao mesmo tempo, rotulando “genérica” e pejorativamente o(s) discurso(s) das minorias, ele ressalva – tucanamente – que é “ancorado em bandeiras relevantes de gênero e raça (sic)”. O que ele não explica, para não entrar em detalhes e entrar no mérito da contradição, é como alguém que pensa “dentro de um viés de esquerda materialista” pode ter um discurso frontalmente contrário – engrossando o coro reacionário – às “bandeiras relevantes” das “minorias”? Só para não deixar passar em branco (aqui é preto no branco!!!), será que ele sabe que o crítico-poeta já defendeu o campo de concentração de Guantánamo, onde os imperialistas ianques amontoaram como bichos os prisioneiros das guerras do Iraque e do Afeganistão? O leitor atento há de convir que uma das causas que provocariam o desprezo de pares e críticos pelo autor de “Impressões do pântano” não seria – como equivocadamente avalia o deletério resenhista – o “viés de esquerda materialista”: a repulsa é tributária dessas convicções típicas da mais sórdida (extrema) direita. Dizer que tais posturas não são “simpáticas” seria risível eufemismo: se o professor-crítico interpuser réplica, na tréplica trataremos especificamente disso, já que a literatura ficou mesmo em último plano aqui, certo? A propósito de tanto despropósito, considerando que ele notoriamente desconhece o que seja marxismo, e confunde os lados esquerdo e direito, vêm bem a calhar estes fragmentos do único romance de Marx, quando era ainda um jovem hegeliano de esquerda:

“(…) ‘Porque (isto se relaciona a um capítulo anterior) seus joelhos se dobraram mais para certo lado!’, mas faltava a certeza, a certeza; e quem pode assegurar, quem pode asseverar qual é o lado direito e qual o esquerdo? Se me disseres, mortal, de onde vem o vento ou então se Deus tem um nariz na fronte, dir-te-ei onde estão o lado direito e o esquerdo (…). Ah, terá sido vão todo o nosso esforço e insensata toda a nossa nostalgia até descobrirmos o que sejam direita e esquerda, pois ele disporá os bodes à esquerda e as ovelhas à direita.

Caso ele se vire, caso volte-se para outro lado ao sonhar de noite, então, de acordo com nossos miseráveis pontos de vista, os bodes ficarão à direita e os pios à esquerda.

Por isso, se me explicares o que são direita e esquerda, o nó da criação estará desfeito por completo; ‘Acheronta movebo’, deduzirei onde irá parar tua alma, do que deduzirei também em que patamar te encontras, pois aquela relação primordial se tornaria mensurável, uma vez que tua posição teria sido determinada pelo Senhor. Tua posição atual, porém, pode ser medida pelo tamanho de tua cabeça. Tenho vertigens; se Mefistófeles aparecesse, eu seria um Fausto, pois, evidentemente, todos somos um Fausto, visto não sabermos qual lado é o direito e qual o esquerdo. Nossa vida, portanto, é um circo; corremos em círculo, procurando pelos lados até cairmos na areia e o gladiador, a vida, nos abater; precisamos de um novo salvador, pois – excruciante pensamento!, roubas-me o sono, roubas-me a saúde, matas-me – não somos capazes de discriminar entre o lado esquerdo e o direito, não sabemos onde ficam.” (MARX, Karl. “Escorpião e Félix”. In: “Escritos ficcionais”. São Paulo: Boitempo, 2018, pp. 27-28).

Depois de trocar as mãos – pelos pés – e chamar de esquerda o que é “de direita”, o ilustre acadêmico encerra a “discurseira de arrastão” (ah, Mário de Andrade!) do segundo parágrafo jogando mais lama no ventilador: “Ou seja, estamos falando de um poeta profundamente indigesto, que faz questão de se opor ao consenso do ambiente cultural do país. Daí também não ser reconhecido, mas, ao mesmo tempo, como deixa trair a orelha, ressentir-se disso e, de alguma forma, excitar-se com isso, a ponto de posar como espírito de porco da poesia nacional.” Como ele abordara em “Problemas de redação” os elementos coesivos, cujo papel é ligar os enunciados, articulando as partes do texto numa totalidade de sentido, a expressão explicativa “ou seja” retoma – termo anafórico – as afirmações sobre o posicionamento ideológico do resenhado, “frontalmente” refratário aos discursos identitários, para esclarecer ao leitor – com o mínimo de bom senso – o óbvio: o crítico-poeta é, de fato, “profundamente indigesto”. Realmente não se põe em dúvida que alguém que erga a voz contra as “minorias de gênero e raça (sic)”, desafinando o coro das lutas democráticas, é tão indigesto quanto a sola da botina e os cadarços que Carlitos comeu – sonhando, em delírio famélico, com bife e macarrão – no clássico chapliniano “The Gold Rush” (1925). Entretanto, se as “convicções políticas” de Dolhnikoff, “reiteradas em seus poemas”, estariam circunscritas ao universo valorativo da “esquerda materialista”, não poderia ser “indigesto” o poeta enquanto a voz instaurada nas páginas do livro, entidade literária, mas o “outro” – de carne e osso – externo ao texto, o “eu biográfico”. De quem “estamos falando” mesmo, eminente professor? Aproveitando a pergunta que não quer calar, por que (separado e sem acento, por favor) o “indigesto” faria “questão de se opor ao consenso do ambiente cultural do país”? Em que pesem corretas objeções de alguns intelectuais – e ativistas – aos estéreis clichês, às cansativas frases-feitas, à reiteração de estereótipos midiáticos do “politicamente correto”, à equivocada ou simplista compreensão das relações desiguais e combinadas de exploração e opressão, enfim, o fato é que o tal “consenso” se coaduna – em linhas gerais, ao menos – com os princípios básicos (democrático-burgueses, veja bem!) das “garantias individuais e liberdades democráticas”, dos direitos humanos. Ou seja, estamos falando de uma dinâmica que, apesar dos equívocos, é “progressiva”: quem “faz questão de se opor ao consenso” deste “ambiente cultural do país”, no final das contas, se não está declaradamente do lado contrário, vestindo a camisa do opressor, de todo modo joga como colaborador do inimigo, contribuindo para a manutenção das autoritárias relações de poder (econômicas, sociais, políticas, culturais e ideológicas – entre sutis “mediações” de nível a nível de relações, diria Engels lembrando as aspas tão caras à dialética hegeliana).

A esta altura, em que esta crítica à “não crítica” já a excede em extensão, não tendo passado ainda à segunda das três páginas, a prudência exige abrir um breve parêntese metalinguístico para esclarecer a visível – ou melhor, “aparente” – desproporção. Poderia justificá-la, em primeiro lugar, que é porque estão sendo citados, quase na íntegra, parágrafos da “não crítica” criticada: que, aliás, seria uma crítica – maior em tamanho, certamente – se citasse trechos do livro seguidos de análises profundas dos poemas, para ilustrar sua tese sobre o conjunto da obra do tal “poeta profundamente indigesto”. Em segundo lugar, como excludente de culpabilidade “preventiva”, supondo ser acusado de lhe tomar mais tempo do que o necessário, poderia arguir que não só poderia, mas deveria ser mais breve – poupando não só o leitor, mas sobretudo ao próprio crítico (o objeto direto preposicionado, quebrando o paralelismo sintático, acentua ser o fardo mais pesado do lado de quem tem de escrever sobre “isso”), se a resenha não fosse tão problemática. A começar, é claro, pelo fato de que isto não é de fato uma resenha, porque não apresenta o livro, não analisa nenhum poema, não cita um verso sequer para justificar a proclamação monocrática de “grandeza” do “indigesto”. E tudo o que fala – até aqui, é certo; até o ponto final, há de comprovar o leitor – sobre o que não é o livro (como se falasse de outra coisa na “não resenha” que não fosse de ordem extralinguística), conjecturando sobre as razões do desprezo de críticos e poetas à obra do “subestimado” crítico-poeta, está muito aquém de um intelectual de larga experiência, acadêmica e jornalística. Enfim, se participasse de uma banca examinadora de seu texto, poderia arguir contra ele recorrendo a princípios basilares da comunicação formulados pelo linguista Grice, um dos grandes teóricos da Pragmática. Indo direto aos pontos críticos da “não crítica”, o pretenso resenhista põe à mostra os seguintes “Problemas de redação”:

  1. Quanto à “máxima de pertinência”, não discorre sobre o objeto, não trata “do que é concernente ao assunto tratado”: ou seja, o livro “Impressões do pântano”.
  2. Quanto à “máxima de quantidade”, sua contribuição não contém “o tanto de informação exigida” no contexto.
  3. Quanto à “máxima de qualidade”, que requer o compromisso com a verdade das informações, afirma o que é falso, apresentando como “de esquerda materialista” quem tem “convicções políticas” – atenção ao grave equívoco – de direita.
  4. Quanto à “máxima de maneira”, o modo de dizer do professor-crítico é prolixo e obscuro, conforme a sequência – desordenada – de adjetivos: “materialista, iluminista, racionalista e cientificista – ainda que não dialética”.

Posto isso (e aquilo), para que o leitor não se perca no parêntese digressivo e retome o norte do debate, vale relembrar que o professor-crítico levantara as seguintes hipóteses sobre a “subestima” da “grandeza” do crítico-poeta: não se prestar a “relações de camaradagem entre os pares”; não “compor versos que tragam estímulo e edificação à vida do leitor”; ter “convicções políticas nada simpáticas”; e fazer “questão de se opor ao consenso do ambiente cultural do país”. Ato contínuo, concluiu o parágrafo com mais esta pérola – como era de se esperar, coerente com as incoerências pregressas – do absurdo: “Daí também não ser reconhecido, mas, ao mesmo tempo, como deixa trair a orelha, ressentir-se disso e, de alguma forma, excitar-se com isso, a ponto de posar como espírito de porco da poesia nacional.” Em primeiro lugar, tragicomicamente, o resenhista entrega a “blague” (ah, Mário!) do resenhado: o “orelhista”, cuja identidade era até então anônima (a orelha, afinal, não é assinada), é o “alter ego” do autor. Em segundo, no divã do “analista”, o “analisando” é diagnosticado como “ressentido”, visto que desejaria – “profundamente” – ser “reconhecido como um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos”; e como “excitado” – perversamente – com o desprezo de “colegas de ofício” e críticos. Decorrência “lógica” do ressentimento e da excitação provocados pela “dor” de se sentir rejeitado, o “indigesto”, então, teria havido por bem – ou por mal – “posar como espírito de porco da poesia nacional”. É realmente espantosa a quantidade de inconsistências em tão poucas linhas: melhor dizendo, de contradições, uma vez que o mesmo professor-crítico, que outrora dera entrevista apontando como uma das causas do “colapso da crítica” a “dificuldade contemporânea em se lidar com o fim da hegemonia dos paradigmas críticos produzidos durante o século 19 e 20 (marxismo, psicanálise, estruturalismo etc.)”, é o mesmo que propôs esse insólito “diagnóstico” de viés “psicologizante” – Freud explica! – do tal enjeitado do “clube dos poetas brasileiros contemporâneos” (aspas minhas). Para piorar a imagem do “indigesto” (o objetivo era elogiá-lo, não?), destaca caricatamente sua pose – entre o recalque e sublimação – de “espírito de porco”, expressão popular depreciativa, que serve de epíteto condenatório a quem procede “de forma desagradável, cruel”, habituado a “causar constrangimentos” e “complicar situações”, desconsiderando “o sentimento ou a opinião alheia”, pelo “prazer gratuito de discordar” do consenso. O ilustre professor certamente não ignora que todo “sentido figurado” deriva de uma base “literal”, bem como que a “denotação” é um efeito de sentido cultural (não há dúvida de que o ilustrado acadêmico leu isso também em Barthes, é claro): uma hipótese para a gênese da expressão é que o porco é um animal teimoso porque faz sempre “o contrário do que é forçado”. Indo direto ao ponto crítico do comportamento suíno, pois, para tentar entender melhor a alusão metafórica pejorativa, eis a questão elementar a quem é – um pouco, ao menos – experimentado na “lida” com o bicho: para ele ir para frente, é só puxar seu rabo; em contrapartida, se puxar para a frente sua orelha (outra “orelha”!), ele vai para trás. Moral da história: de “porcaria” em “porcaria”, assim caminha a humanidade…

O parágrafo seguinte, depois dessa cascata de enunciados “impertinentes” (na acepção técnica de Grice) – “digo tudo isso de uma vez” -, tenta justificar o injustificável com a relativização proclamatória de que “é preciso superar esses enganos circunstanciais para se atingir o cerne do que importa na melhor poesia de Dolhnikoff”. Não deixa de chamar a atenção do perplexo leitor, em primeiro lugar, que, em apenas duas páginas e meia da “não resenha”, o professor-crítico tenha gasto uma para conjecturar sobre os tais “enganos circunstanciais”. Em segundo, não só não esclarece de quem seriam esses equívocos – do “subestimado” ou dos que o desprezam – como também quais exatamente seriam eles: as “convicções políticas nada simpáticas” do “espírito de porco da poesia nacional”, na contramão do “politicamente correto”; seu indisfarçável “ressentimento” por não ser “reconhecido como um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos”? Nada disso, replicaria ao ilustre mestre, enfim, obsta que se atinja o “cerne da melhor poesia” do autor de “Impressões do pântano”, o que deveria, aliás, estar em primeiro plano num texto que se propõe exatamente a ser uma resenha, não é mesmo? Para quem achou que as coisas encontrariam melhor termo a partir dessas afirmações, e entraríamos, enfim, nas páginas do livro, eis a sequência do raciocínio do grande especialista em Vieira, sublinhando as supostas virtudes estéticas do “indigesto” bardo sem quaisquer exemplos para corroborá-las: “a meu ver, é o rigor entimemático com que encara o andamento do poema – algo que, na tradição poética, seria realizado exemplarmente pelo soneto (…)”. Homem erudito, certamente emprestou o adjetivo da “Arte Retórica” aristotélica, que já no primeiro capítulo (tópico III) apresentara a clássica definição de “entimema” como espécie de silogismo da ordem dos “raciocínios preferíveis”, por isso objeto da Retórica, e não da Lógica, que trataria apenas dos “raciocínios necessários”. Enfim, o Estagirita explica: “Sendo manifesto que o método mais hábil estriba em provas; que a prova é uma demonstração – pois que a nossa confiança é tanto mais firme quanto mais convencidos estivermos de ter obtido uma demonstração -; atendendo a que a demonstração da Retórica é o entimema; que este fornece, em resumo, a convicção mais decisiva; assente que o entimema é uma espécie de silogismo (…).” (ARISTÓTELES, “Arte Retórica e Arte Poética”. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d, p. 30).

Parafraseando o filósofo, em relação inversamente proporcional, diria que a nossa desconfiança é tanto mais firme quanto menos convencidos “de ter obtido uma demonstração” da tal “grandeza” do poeta: contrariando o “método mais hábil”, porque não o “estriba em provas”. Em outros termos, se não temos elementos para avaliar o “rigor entimemático” do resenhado, não faltam provas para demonstrar a falta (ops!) de “rigor entimemático” do resenhista: Vieira, a esta altura, já virou e revirou mil vezes na tumba… Com esse difuso – confuso – juízo crítico, há de convir quem tem juízo, ele não contribui de modo algum para que se “atingir o cerne” de poesia alguma. O insólito enunciado, marcado pela obscuridade e prolixidade, aliás, não só fere – mais uma vez – a “máxima da maneira” da Pragmática, mas entra em contradição com as palavras do próprio professor-crítico, em entrevista de 2004 ao Jornal da Unicamp (edição 260): “O jargão acadêmico sempre restringe o número de leitores e demanda domínio de vocabulários especializados. Logo, inicialmente, não favorece o incremento de leitores.” (https://www.unicamp.br/unicamp_hoje/ju/agosto2004/ju260pag06.html).

Em síntese, se é fato que a terminologia técnica reduz o “número de leitores”, empregada com impropriedade, afugenta até mesmo – sobretudo, no infausto caso – os leitores especializados, também incapazes de decifrar o que seria o tal “rigor entimemático com que [o crítico-poeta] encara o andamento do poema”. Por falar nisso, a bem do rigor (com o trocadilho no gatilho!), o conceito de “andamento”, egresso da ordem de discurso musical, faz par com a noção de “ritmo”: que, além de não ser regido por um tipo de rigor que pudesse ser caracterizado propriamente de “entimemático”, tampouco teria sido “realizado exemplarmente pelo soneto”. Para não entrar em detalhes sobre as relações desiguais e combinadas não só entre “ritmo” e “metro”, mas também “rima”, recordando outras “formas poéticas” para problematizar a assertiva categórica do catedrático (como, por exemplo, as épicas de Homero, as éclogas de Virgílio, as trovas de Arnaut Daniel ou a ‘terza rima’ de Dante, sem falar na prosa poética de Baudelaire e Rimbaud, ou nos “pulmões épicos” dos longos versos livres de Whitman), indo direto ao ponto crítico, convém citar estes esclarecedores trechos de “A arte da poesia” de Ezra Pound (“Whitman para a minha pátria/ o que Dante é para a Itália”), atualizando providencialmente os termos do debate: “Com referência ao ritmo: compor seguindo a sequência da frase musical e não obedecendo a um metrônomo.” (POUND, Ezra. “Retrospectiva”. In: “A arte da poesia: ensaios escolhidos de Ezra Pound”. São Paulo: Cultrix, 1988, p. 9).

Prosseguindo o percurso pantanoso (sem veredas), depois de proclamar o soneto como realização exemplar – “na tradição poética” – do “andamento do poema”, o resenhista faz a ressalva, como se, apesar de não ser um “sonetista”, o resenhado encontraria “exemplarmente” o ritmo num amplo espectro de “formas poéticas variadas”, que vão “do poema em prosa aos decassílabos”. O “mas” adversativo – atenção! – é sintomático: “mas não é assim com Dolhnikoff, muito mais inclinado às formas livres e informais do modernismo, assim como ao jogo aberto de aliterações, paronomásias e trocadilhos do concretismo e, mais ainda, do pós-concretismo – no que guarda algum parentesco com Paulo Leminski, seu amigo e parceiro de composições.” Da mesma maneira que não se pode afirmar categoricamente que o soneto seja exemplo de excelência formal de “andamento do poema”, tampouco se pode supor que sem a “bússola” do metrônomo seja fácil acertar o passo, encontrar o ritmo – ou seja, andar no “andamento”. Como o professor-crítico não “estriba em provas” sua defesa da “grandeza” do “indigesto” iconoclasta da poesia brasileira contemporânea, crendo que todos crerão no “milagre da multiplicação” sem precisar ver pães e peixes, vale lembrar-lhe as certeiras notas críticas de Manuel Bandeira quanto “às formas livres e informais do modernismo”, bem como acrescentar, em diálogo intertextual de dois grandes poetas-críticos (atenção: a ordem dos termos altera o produtos), as ressalvas argutas do apologista da “frase musical”, “il miglior fabbro” moderno Ezra Pound:

“Mas verso livre cem por cento é aquele que não se socorre de nenhum sinal exterior senão a da volta ao ponto de partida à esquerda da folha do papel: ‘verso’ derivado de ‘vertere’, voltar. À primeira vista parece mais fácil de fazer do que o verso metrificado. Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o poeta tem de criar o seu ritmo sem auxílio de fora. É como o sujeito que solto no recesso da floresta deva achar o seu caminho e sem bússola, sem vozes que de longe o orientem, sem os grãozinhos de feijão da história de João e Maria. Sem dúvida não custa nada escrever um trecho de prosa e depois distribuí-lo em linhas irregulares, obedecendo tão somente às pausas do pensamento. Mas isso nunca foi verso livre. Se fosse, qualquer pessoa poderia pôr em verso até o último relatório do Ministro da Fazenda. Essa enganosa facilidade é causa da superpopulação de poetas que infestam agora as nossas letras. O modernismo teve isso de catastrófico: trazendo para nossa língua o verso livre, deu a todo mundo a ilusão de que uma série de linhas desiguais é poema. Resultado: hoje qualquer subescriturário de autarquia em crise de dor-de-cotovelo, qualquer brotinho desilududo do namorado, qualquer balzaquiana desajustada no seu ambiente familiar se julgam habilitados a concorrer com Joaquim Cardoso ou Cecília Meireles.

Por isso era sempre com delícia que eu lia as críticas de Elói Pontes no Globo e é sempre com prazer que leio as de Berilo Neves no Jornal do Comércio, críticos sem contemplação para com a poesia que não se exprime em versos medidos e rimados. O que me entristece é ver que eles nunca tenham tido influência bastante para pôr um paradeiro nesse ‘babaréu de medíocres’, como costumava dizer o primeiro no seu curioso estilo.” (BANDEIRA, Manuel. “Poesia e verso”. In: “Seleta em prosa e verso”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, p. 38).

 

“(…) Na realidade, o ‘vers libre’ se tornou tão prolixo e verborrágico quanto qualquer das flácidas variedades que o antecederam. Acarretou falhas que lhe são peculiares. A linguagem e o fraseado atuais são muitas vezes tão maus quanto os nossos antecessores, sem sequer a desculpa de que as palavras são metidas à força para atender a normas métricas ou completar a sonoridade de uma rima. Cabe ao leitor decidir se são ou não musicais as frases da sequência. Por vezes, descubro um ritmo marcante em versos livres tão cediço e vulgar (…); o escritor não parece obedecer a nenhuma estrutura musical. De um modo geral, entretanto, é bom que o terreno seja revolvido. Talvez do novo método tenham advindo alguns bons poemas e, neste caso, ele se justifica.” (POUND, Ezra. “Retrospectiva”. In: “A arte da poesia: ensaios escolhidos de Ezra Pound”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.10).

Os problemas são tantos, que são necessários vários parágrafos para comentá-los um a um, parágrafo a parágrafo da inglória “não resenha”. Por exemplo, quando o eminente membro da Accademia Ambrosiana de Milão identifica como traço distintivo da “arte poética” do artífice do “andamento [pantanoso] do poema” – pasme mais, se puder – o “jogo aberto de aliterações, paronomásias e trocadilhos do concretismo e, mais ainda, do pós-concretismo – no que guarda algum parentesco com Paulo Leminski, seu amigo e parceiro de composições.” Em primeiro lugar, é muito reducionista, de um simplismo amadorístico, típico de estereótipos tão ao gosto dos “pseudocríticos” jornalísticos, definir a estética concretista por tropos que não lhe são nem recursos exclusivos, nem determinantes: seria melhor que a abordasse sob a dialética isomórfica – na tessitura sutil entre os planos da expressão e do conteúdo – “verbivocovisual”. Quanto ao que o titular em Teoria Literária rotula como “pós-concretismo”, mais problemático ainda, uma vez que caberiam poetas muito diversos neste mesmo imenso “guarda-chuva” taxonômico-cronológico: será que estaria evocando na obscura analogia, por exemplo, obras tão díspares como “Beijo na boca”, de Cacaso, “A poesia está morta mas juro que não fui eu”, de José Paulo Paes, “Me segura qu’eu vou dar um troço”, de Waly Salomão, “Os Últimos Dias de Paupéria”, de Torquato Neto, “Caprichos & relaxos”, de Paulo Leminski, entre tantos possíveis outros autores e obras? Será que o tão culto professor, entre tantos livros lidos, de outrora a agora, mencionou o recurso ao trocadilho semântico mais à Antonio Carlos de Brito, como em “dedo duro/ pau mole”, ou à José Paulo Paes, na inversão proverbial de “em casa de ferreira/ espeto de paulo”, ou mais propriamente do tipo paronomástico, à Torquato, nas similaridades – mais explicitamente de ordem fonética – entre as palavras “arte”, “arma”, ” mãe”, “manha” e “artimanha”? Ainda que o criticado critique a propriedade dessas escolhas ilustrativas, as eventuais impropriedades dos exemplos, no final das contas, não o eximirão da irresponsabilidade de não ter citado nenhum para fazer ver o que quis dizer – confrontado agora com estes versos – com a sentença judiciosa de que “Dolhnikoff encaixa o raciocínio rigoroso no coração da sintaxe informal e desbocada, que não evita o calão, gera uma sucessão de máximas e sentenças que invertem violentamente os lugares-comuns do ‘zeitgeist’, provocando mais espanto e rejeição do que iluminações ou bordões amigáveis”? A propósito dos despropósitos, questionaria ainda o que de fato tem a ver com a análise de “Impressões do pântano” a informação – mais ao gosto de leitores de coluna social do que de crítica literária – o fato biográfico da amizade do crítico-poeta com o poeta-crítico Leminski? Aproveitando a deixa, se ambos foram “parceiros de composições” – dado que confesso ignorar -, quais seriam as tais parcerias e em que medida ajudariam a esclarecer a obra do “subestimado”? Para fechar o parágrafo com outra pergunta que não ousa calar, se o resenhado (?) “guarda algum parentesco” com o finado pop, “mas não tanto”, quais seriam as aproximações e distanciamentos, no final das contas, entre as suas “artes poéticas”?

No primeiro parágrafo da segunda página, depois de exaustivamente testar a paciência do mais crédulo leitor, falando tanto para não dizer absolutamente nada (ah, Mário, que estéril “discurseira de arrastão”!), eis a blague consumada: “Quem quiser saber do que falo [risos], deve experimentar a leitura do novo livro de Dolhnikoff (…). Segundo a mesma orelha de antes, trata-se do fecho de uma trilogia iniciada com ‘Lodo’ [de 2009] e seguida de ‘Rugosidade do Caos’ [ de 2015]. Li todos esses livros, e posso garantir o nexo entre eles, que tanto remetem (sic) aos pontos que mencionei acima, como ao que os antigos chamariam de ‘copiosidade’. Isto é, além de possuir talento, Dolhnikoff não o economiza jamais: escreve sobre todos os assuntos, com vasta predominância dos contemporâneos, usando grande variedade de instrumentos poéticos e críticos”. Como já era de se esperar, é claro, nenhuma citação e análise dos poemas de “Impressões do pântano”: diante de tantas provas do improvável, pois, que leitor, senão tão incipiente e insipiente, haveria de não já ter entendido que a não resenha não poderia jamais mostrar o lugar do livro – de que não tratou, evidentemente – como “fecho” da suposta progressão poética da trilogia do não resenhado? O leitor especializado, muito atento e deveras indignado, não deixaria por menos, a recomeçar aqui por atacar a desfaçatez do pretenso portador da autoridade hermenêutica, pondo perigosamente a cabeça a prêmio – o nobre pescoço na guilhotina  – pela soberba típica dos que não supõem adversários mais fortes. Não há dúvida das “implicaturas” (Grice dando o ar da graça de novo – nada de novo…), por exemplo, já no enunciado “quem quiser saber do que falo”: em primeiro lugar, considerando o contexto, o pronome indefinido singular de terceira pessoa pressupõe sua expectativa de uma pluralidade (“mais de um”) de leitores fiéis, que tenham interesse de saber do – e o – que ele fala. Supondo que ele falasse algo – aqui, ao menos, efetivamente não -, e que o que porventura falasse tivesse alguma relevância para orientar a leitura da obra. Para piorar, não precisaria passar pelo vexame de citar como argumento de autoridade a orelha forjada pelo autor para inscrever a obra numa trilogia que diz ter lido – “Li todos esses livros” -, proclamando – usando despudoradamente a si mesmo, enfim – como argumento de autoridade: “posso garantir o nexo entre eles”. O contexto, aliás, traz à memória aquele comercial de tevê em que um “paraguaio” disfarçado de japonês tentava vender um eletrônico “genérico” como original, valendo-se do bordão canastrão como lastro de confiança: “La garantía soy yo!”.

Se estivesse escrevendo uma “carta a um jovem crítico”, certamente esta não crítica cumpriria uma função didática, ilustrando “exemplarmente” princípios básicos – elementares “regras de dizer” (na expressão foucaultiana da “ordem do discurso”) – que não podem ser desconsideradas, sob pena de desautorização sumária – vexatória – do “desconsiderante” embriagado de tamanha injustificada autoconfiança. Em outras palavras, o nexo entre os três livros existiria, assim, porque “tanto remetem (sic) aos pontos que mencionei acima, como ao que os antigos chamariam de ‘copiosidade’. Isto é, além de possuir talento, Dolhnikoff não o economiza jamais: escreve sobre todos os assuntos, com vasta predominância dos contemporâneos, usando grande variedade de instrumentos poéticos e críticos”. Tendo analisado um “corpus” de 1500 textos de vestibulandos, apontando “Problemas de Redação” a partir de critérios de textualidade de “coesão e coerência”, não poderia justamente o julgador incorrer nos mesmos erros que condenou. Sendo mais direto, se o que “remete” – como termo anafórico – retoma o “já dito”, se nada foi dito antes, logo nada pode ser objeto de remissão: ou seja, não há nada, pois, a ser retomado no texto. Outra inconsistência – disfarçada com verniz retórico de erudição de mesa de feira literária, para impressionar os crédulos compradores de gato por lebre – confere ao experimentado crítico a feição de um deslumbrado debutante no ofício, fazendo caras e bocas de “expert”: palavra pomposa a tal da “copiosidade”, né? O leitor deveria crer – sem ver um verso sequer – que o crítico-poeta “não economiza talento” confiando cegamente na autoridade do púlpito de onde vem a pregação: como na antiga propaganda televisiva, afinal, “la garantía soy yo!”.

Passemos ao segundo parágrafo da segunda página, reproduzindo-o na íntegra para então comentá-lo: “Sempre que o leio, fico imaginando que diabos aconteceu a Luis Dolhnikoff que ele não é doutor em literatura e está empregado em alguma Universidade de ponta do Brasil ou do exterior, pois é evidente que ele não apenas conhece o seu ofício, como tem instrumentos teóricos e críticos para falar com maestria (sic) a respeito dele. A resposta talvez seja a de que a destreza de Dolhnikoff responde estritamente à sua vocação original (sic) como autor, não como disposição genérica de estudo ou de prática pedagógica.” Veja-se que observações mais sintomáticas, típicas de quem é veterano acadêmico (titular de Teoria Literária da Unicamp, atenção!), pressupondo que homens eruditos – sejam ou não poetas, críticos de ofício ou não – deveriam envergar prestigiosos títulos e lecionar em qualificadas universidades. Recordo ao professor-crítico uma curiosa “anedota”, quando Gertrude Stein, preocupada com a precária condição financeira de Eliot, tentou empregá-lo numa universidade, ouvindo do grande poeta um “não” categórico, com sabor aforismático sarcástico: “Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”. Ainda que não esteja de pleno acordo com o irascível bardo britânico, não entrarei em pormenores para não desviar o eixo principal do nosso debate: em primeiro lugar, o comentário do eminente “não resenhista” não tem pertinência com o objeto de seu texto. Em segundo, a hipótese aventada para o não ingresso do “sábio” nas fileiras universitárias, sob a alegação de sua “vocação original como autor” (a bem da propriedade lexical, “originária”), traz uma implicação perigosa, de viés romântico: parece fundada na crença de que a voz poética seria uma espécie de “graça divina”, de bênção de berço: como se alguém nascesse “assinalado” para ser poeta. A ressalva no parágrafo seguinte, fazendo-lhe justiça, se de fato atenua a sentença, não elide o pressuposto: “Tornando, entretanto, à copiosidade (…), tenho de acrescentar que ela não é avessa à disciplina (…)”. Em síntese, eis a fórmula da gênese do poeta: “vocação original (sic)” + “disciplina”.

Argumentando em defesa de sua tese de que, além do “talento natural”, é preciso ter método (inspiração + construção) para escrever bons poemas e publicar grandes livros, o professor-crítico assegura que – em “Impressões do pântano” – o leitor competente pode “reconhecer blocos temáticos em sequência (…), como os de discussão metapoética, teológica, fisiológico-obsceno-satírica, os de comentário político ou os associados ao desempenho de tópicas antigas como as da passagem do tempo ou de natureza contraditória e caduca do amor”. Não seria necessário sublinhar que faz parte da atribuição básica do crítico, por exemplo, dar ao leitor algumas chaves de acesso ao texto, orientando com autoridade competente o percurso de leitura: a sentença conclusiva sobre a qualidade da obra, pois, deve fundamentar-se em análises precisas (a partir de modelos teóricos e instrumentos metodológicos adequados), devidamente ilustradas com os respectivos excertos – é claro – do próprio objeto textual sob exame. Em contrapartida, sem ter esclarecido a taxonomia temática, mostrando ao menos um poema mais emblemático de cada bloco, o “não crítico” aventura-se em busca da unidade entre as cinco partes do “pântano” semântico, afirmando tê-la encontrado. Para não incorrer no erro de negligenciar também o que a “não resenha” – a bem do rigor das “regras de dizer” do gênero discursivo – deveria ter feito, apresentamos à apreciação do leitor a prova textual: “O que há em comum nos blocos é a convicção de que, na experiência humana, a dor, o temor e a morte são certos, tudo o mais não indo além de figuras de ideologia, no sentido marxista de falsa consciência ou de ilusões de auto-engano complacente”. Como absurdo pouco aqui é bobagem, de cara diria que não é preciso ser catedrático para chegar à óbvia conclusão sobre a inexorabilidade da morte: aliás, como Freud já bem explicou em 1925, em “O mal-estar na civilização”, acrescente-se também que o “temor” tem raízes profundas nas complexas relações intersubjetivas (o “Outro” – ou, indo mais fundo, o “Grande Outro” de Lacan), na fragilidade humana diante da fúria imprevisível da natureza e, evidentemente, na certeza da morte. Por falar nisso, considerando que o “analista” – que proclamara na citada entrevista ao Jornal da Unicamp o fim das grandes epistemologias (como a psicanálise, ao lado do marxismo e do estruturalismo) – parece mais interessado em conjecturar sobre a vida do que sobre a obra do “analisado” (na última página mencionará, como veremos, a “muita experiência de fracasso” do “indigesto”), a “não resenha” é como se diagnosticasse – leiga e superficialmente, claro – uma espécie de “pulsão tanática” como força motriz do atávico “niilista” (auto)”destrutivo”. Que, proclamando a amarga máxima cética de que só a dor (além do “temor” e da “morte”) é certa, bem poderia posar – há de se convir – ao lado do grande mestre do pessimismo, o filósofo Artur Schopenhauer:

“Sentimos a dor, não a ausência da dor; a inquietação, mas não a ausência de inquietação; o temor, mas não a segurança (…). Não se poderia absolutamente imaginar uma grande e viva alegria, se esta não sucedesse a uma grande miséria (…). É por este motivo que todos os poetas são obrigados a colocar os seus heróis em situações cheias de ansiedades e tormentos, a fim de os livrarem delas (…). Voltaire, o feliz Voltaire, que tão favorecido foi pela natureza, pensa como eu, quando diz: ‘A felicidade não passa de um sonho, só a dor é real’; e acrescenta: ‘Há oitenta anos que o experimento. Não sei fazer outra coisa senão resignar-me, e dizer a mim mesmo que as moscas nasceram para ser comidas pelas aranhas, e os homens para serem devorados pelos pesares.’ A vida de cada homem, vista de longe e de alto, no seu conjunto, e nas fases mais salientes, apresenta-nos sempre um espetáculo trágico; mas se a analisarmos nas suas minúcias, tem o caráter de uma comédia (…). Mas as aspirações iludidas, os esforços baldados, as esperanças que o destino esmaga implacavelmente, os erros funestos da vida inteira, com os sofrimentos que se acumulam e a morte no último ato, eis a tragédia.” (SCHOPENHAUER, Artur. “As Dores do Mundo”. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1964, pp. 47-48).

Convém iniciar outro parágrafo, ainda que tratemos do mesmo parágrafo, para não misturar as ordens de problemas. Depois da brilhante constatação de que, “na experiência humana, apenas a dor, o temor e a morte são certos”, o professor-crítico conclui com esta pérola retórica: “tudo o mais não indo além de figuras de ideologia, no sentido marxista de falsa consciência ou de ilusões de auto-engano complacente”. Como o eminente “legista” – que decretara a morte do paradigma marxista – já deu provas suficientes de desconhecer o beabá da obra do “defunto”, e considerando que será necessário abordar detalhes conceituais para desautorizar equivocados juízos jocosos – basta de estereótipos – sobre sua teoria de conhecimento, aproveito para citar outro Marx ainda “pré-marxista” (recorde-se que já citamos trechos de uma obra literária que, aliás, a maioria dos marxistas também desconhece). Refiro-me a esta passagem lapidar do doutorado em Filosofia do jovem Karl: “(…) no nível do detalhe, sou forçado a abordar aparentes micrologias (…). E, por serem as diferenças tão escondidas que praticamente só se revelam ao microscópio, tanto mais importante será demonstrar uma diferença essencial, que chega à minúcia (…). O que se pode demonstrar no detalhe é ainda mais fácil de apresentar quando as relações são apreendidas em dimensões maiores; inversamente, análises muito gerais põem em dúvida se o resultado se confirmará no detalhe.” (MARX, Karl. “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro”. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 32). O caricaturista do pensador, enfim, obriga-me a restituir-lhe as feições, para que o detrator seja mais cauteloso ao publicizar comentários depreciativos sobre o que notoriamente desconhece: o tal “sentido marxista de falsa consciência” é uma asneira repetida “de orelha” por canastrões que, se muito, leram contracapas e orelhas de pouquíssimos livros de sua monumental produção teórica. Posto isso, e sem olvidar seu confesso desdém pela episteme marxista, para dar-lhe uma breve noção da insustentabilidade de suas frágeis frases-feitas (a aliteração em fricativas traduz – isomorficamente – a frouxidão falaciosa), vêm bem a calhar estas certeiras notas de Terry Eagleton, não por ser professor de Oxford, mas por se destacar como um dos mais eruditos e argutos (para não perder a rima, atributos raros que raras vezes andam juntos) críticos marxistas contemporâneos de cultura:

“O próprio Marx nunca usou a expressão ‘falsa consciência’, uma distinção que deve ser conferida a seu colaborador, Friedrich Engels. Em uma carta de 1893 a Franz Mehring, Engels fala da ideologia como um processo de falsa consciência porque ‘os reais motivos que impelem [o agente] permanecem desconhecidos a ele, pois, do contrário, não seria sequer um processo ideológico. Portanto, ele imagina motivos falsos ou aparentes’. No caso, a ideologia é, na verdade (…), uma espécie de dupla motivação, em que o significado superficial ser para bloquear à consciência o verdadeiro propósito do sujeito. Talvez não seja surpreendente que essa versão de ideologia tenha surgido na era de Freud. Como argumentou Joe McCarney, a falsidade em jogo neste caso é uma questão de auto-ilusão, não de perceber o mundo erroneamente. Não há razão para supor que a crença superficial envolva necessariamente a falsidade empírica, ou que seja em algum sentido ‘irreal’ (…)”. EAGLETON, Terry. “Ideologia”. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista; Editora Boitempo, 1997, p. 86).

Poderia ainda lembrar ao ilustre equivocado, que já citou Michel Pêcheux nas páginas de “Problemas de redação”, em que termos o célebre analista do discurso – conjugando os saberes da linguística, da psicanálise e do marxismo – equacionara o problema da “falsa consciência”. Se o professor leu, por exemplo, a brochura “Discurso: estrutura ou acontecimento”, não deveria abstrair de sua análise que “todo fato já é uma interpretação”, que a ordem de discurso hegemônica produz uma “falsa-aparência da homogeneidade lógica, encaixando a estabilidade discursiva própria às ciências da natureza, às técnicas materiais e aos procedimentos de gestão-controle administrativo”, que “todo dito se ancora num já-dito”, que sob a ilusão da “transparência” há sempre “opacidade” de sentido. Em síntese, que toda descrição simula a “objetividade” para dissimular a interpretação: ou seja, que – no fundo – “o real é o impossível”. Parece que o estudioso de linguística, inacreditavelmente, ignora premissas básicas de seu próprio campo de saber, proferindo despautérios que não se distinguiriam – senão pelo estilo mais refinado e vocabulário mais técnico – dos de leigos com verniz cultural sofisticado.  Só para não dizer que ficou para trás, enfim, a simplista declaração de morte do marxismo e da psicanálise naquela infeliz entrevista, recordaria ao eminente detrator o grande linguista que ele apenas mencionara, ainda muito jovem, e cuja lição certamente ainda não compreendeu:

“O efeito subversivo da trilogia Marx-Freud-Saussure foi um desafio intelectual engajando a promessa de uma revolução cultural, que coloca em causa as evidências da ordem humana como estritamente biossocial. Restituir algo do trabalho específico da letra, do símbolo, do vestígio, era começar a abrir uma falha no bloco compacto das pedagogias, das tecnologias (industriais e biomédicas), dos humanismos moralizantes ou religiosos (…). Era um ataque dando um golpe no narcisismo (individual e coletivo) da consciência humana (…)”. (PÊCHEUX, Michel. “Discurso: estrutura ou acontecimento”. Campinas: Pontes, 1997, pp. 41-45).

Para encaminhar a conclusão, comentaremos apenas o primeiro parágrafo da última página da não resenha: os dois finais desta, bem como o último da segunda, ficarão à espera da consulta de um leitor mais crédulo, que ainda tem um pouco de esperança de encontrar neles alguma informação substancial sobre a obra. Com a primazia da palavra, então, o nobre membro da Accademia Ambrosiana de Milão: “Não conheço poesia brasileira atual mais empenhadamente destrutiva, ao menos em termos de disposição intelectual apriorística, do que a de Dolhnikoff. Embora cite bastante Drummond, ele tem pouco a evocar como escarmento do tempo, pois é programaticamente desenganado: as suas pupilas não estão fatigadas pela muita experiência do fracasso, mas pela razão implacável de sua metafísica cerebrina e niilista. Para quem aprecia poesia intelectual exigente, Dolhnikoff é um must, além de profundamente incomum às euforias brasis.” Infelizmente, estamos próximos do ponto final, e continuamos sem saber o que significa de fato a noção de “poesia mais empenhadamente destrutiva”. Também não faz sentido o oxímoro “programaticamente desenganado”, porque não nos parece plausível a hipótese de programação de sentimentos, de estados de alma. Na perspectiva platônica, sob as lentes “idealistas” do não resenhista, a experiência existencial – material, concreta – do fracasso, enfim, subordina-se à ditadura da “razão implacável”, está sob a regência “de sua metafísica cerebrina e niilista”. Essa tradição de pensamento, obviamente, è a antípoda do “protomaterialismo” atomista de Demócrito e de Epicuro (objeto do já citado doutorado de Marx sobre a “Filosofia da Natureza”), do materialismo de Feuerbach (problematizado por Karl e Engels em “A Ideologia Alemã”): nada mais contraditório, pois, do que chamar um “metafísico cerebrino” de “esquerda materialista”, não é mesmo? Moral da história: nesse falacioso texto, a blague não cedeu espaço à seriedade. Se alguém conseguir provar, portanto, que isto é uma crítica, certamente conseguirá fumar o cachimbo de Magritte!

 

PS: Sobre a extensão desta crítica à não crítica, justifico ainda com esse diálogo lapidar de Platão:

 

“ESTRANGEIRO

– Lembremo-nos por que fizemos, a esse propósito, tão longas reflexões.

SÓCRATES, O JOVEM

– Por quê?

ESTRANGEIRO

– Exatamente devido ao tédio que experimentamos ao falar dos pormenores da tecedura, que realmente nos aborrecem, do grande discurso sobre a revolução retrógrada do universo, e dessa discussão em torno do sofista (…). Sentimos que essas exposições foram demasiado extensas, censurando-nos por isso, e temendo que não passassem de digressões, e digressões excessivamente prolongadas. Foi, pois, com o propósito de evitar para o futuro semelhantes minúcias, que fizemos todas as observações precedentes.

SÓCRATES, O JOVEM

– Entendido. Continua.

ESTRANGEIRO

– Creio, pois, que tu e eu devemos lembrar-nos das observações agora feitas, quando censurarmos ou aprovarmos a extensão ou brevidade de nossas conversações sobre qualquer assunto, a fim de não avaliar suas extensões por sua relação recíproca, mas antes por esta parte da arte de medir que recomendamos há pouco à nossa lembrança: a conveniência.

SÓCRATES, O JOVEM

– Muito bem.

ESTRANGEIRO

– Mas, agora, não sujeitemos todas as coisas a esta regra. Pois a necessidade de agradar nos imporá o cuidado das proporções, apenas acessoriamente; e quanto à solução do problema apresentado, encontrá-la da maneira mais fácil e pronta possível deve ser apenas uma preocupação secundária e não a finalidade primordial, se dermos crédito à razão, que nos aconselha a preferir e a colocar em primeiro lugar o método que prescreve a divisão por espécies; e, mesmo que um discurso seja demasiado longo, prosseguir resolutamente se isso torna mais hábil àquele que ouve, sem nos preocuparmos agora com sua extensão como antes com sua brevidade. Aliás, não podemos desprezar rápida e sumariamente o julgamento que censura a extensão do discurso em conversas como as nossas, e reprova as digressões que o acompanham com este simples comentário: ‘essas conversações são muito longas’; devemos antes demonstrar que se fossem mais breves tornariam os ouvintes mais aptos à dialética e mais hábeis em encontrar raciocínios que lançassem luz sobre a verdade; com relação às demais críticas ou elogios fingidos não compreender apreciações dessa natureza.” (PLATÃO, “Diálogos”. São Paulo: Abril Cultural,1979, pp. 232 e 234).

 

 

 

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Linguística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC  – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Escreveu em coautoria o material paradidático Arte e Cultura nos Anos 60 (Editora Anglo). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo LiteraturaArte & InformaçãoLivro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010, lançou o livro Toque de Letra (editora nhambiquara). É vocalista e letrista da bandaOs BabilaquesTem parcerias com Tatá Aeroplano, Gustavo Galo e Cabelo (Trupe Chá de Boldo), Pélico, Juliano Gauche, Carlos Zimbher, Reynaldo Bessa e Wella Borges Costa. E-mail: carvalho70@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Frederico Barbosa, Belo texto, Carvalho, meu caro. Faltou dizer que a não-crítica é um belo exemplo do compadrio mais deslavado. Só acho que você não devia perder seu tempo e talento com seres tão desprezíveis: o poeta é péssimo e ambos são críticos de circunstância da pior espécie. Atacam maliciosamente o inimigo e elogiam de forma acrítica os amigos. Para ser um crítico de verdade não basta ser erudito, é preciso ter caráter.
    28 outubro, 2021 as 7:00

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