Para ser poeta


PARA SER POETA NÃO É PRECISO SABER POESIA?

……………Ezra-Pound by WyndhamLewis

 

(Para a “briluz” sábia Aurora Bernardini Fornoni, nome-nume-lume “nel mezzo del cammin” desta dialógica odisseia no “grande tempo” do “intertexto infinito”)

(Para os mestres-amigos José Luiz Fiorin, Francisco Platão Savioli, José De Paula Ramos Jr., Paulo Martins, Paulo Franchetti e Amador Ribeiro Neto)

(Para os saudosos amigos-mestres Antônio Medina Rodrigues, Ivan Teixeira e Carlos Felipe Moisés)

“O cientista não espera ter o seu valor reconhecido antes de haver ‘descoberto’ alguma coisa. Começa por aprender o que já foi descoberto. Prossegue a partir desse ponto. Não se prevalece do fato de ser pessoalmente um indivíduo encantador. Não espera que seus amigos aplaudam os resultados de seu trabalho de principiante. Infelizmente, em poesia, os calouros não ficam confinados a uma sala de aula definida e identificável. Eles ‘circulam por aí’. Será de admirar que o público permaneça indiferente à poesia?” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.13).

 

  1. SABER OU NÃO SER: EIS A QUESTÃO

Para ser biólogo, é preciso saber as diferenças entre reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie; ou entre os reinos Monera, Protista, Fungi, Plantae/Metaphyta e Animalia/Metazoa; ou entre organismos unicelulares e pluricelulares, procariontes e eucariontes, autótrofos e heterótrofos? Para ser químico, é preciso saber as diferenças entre os elementos da tabela periódica, entre os compostos de átomos de carbono (e outros presentes em organismos vivos, animais ou vegetais – como hidrogênio e oxigênio) e os compostos de ácidos, bases, sais e óxidos, entre Química Orgânica e Química Inorgânica, enfim? Para ser físico, é preciso saber as diferenças entre as áreas da Mecânica, Termologia, Óptica, Acústica e Eletricidade; ou as distinções entre movimento uniforme, uniformemente variado e circular; ou as definições de fenômenos elétricos e magnéticos; ou os conceitos de calor, temperatura e equilíbrio térmico; ou quais são efetivamente as contribuições da Teoria da Relatividade e da Física Quântica? Para ser matemático, é preciso saber as diferenças entre números naturais, inteiros, racionais, irracionais, reais e complexos; ou entre Aritmética, Álgebra e Geometria; ou entre raiz quadrada e raiz de três, equação de primeiro e de segundo grau? Para ser historiador, é preciso saber as diferenças entre Paleolítico e Neolítico, Guerras Púnicas e Guerras Médicas, Idade Média e Renascimento, Absolutismo e Revolução Francesa, Comuna de Paris e Revolução Russa, Bonapartismo e Fascismo? Para ser advogado, é preciso saber as diferenças entre direito material e formal, público e privado; ou entre Direito do Consumidor e Direito Comercial, Direito Tributário e Direito Empresarial, Direito Constitucional e Direito Administrativo; ou entre denúncia e sentença, inquérito e processo, ação civil e penal, mandado de segurança e habeas corpus; ou entre doutrina e jurisprudência, validade e eficácia, legalidade e legitimidade? Para ser jornalista, é preciso saber as diferenças entre gêneros opinativos e informativos, entre editorial e notícia, entre artigo de opinião e texto de divulgação científica, entre crônica e reportagem; ou quais são as particularidades dos textos produzidos em meios impressos, eletrônicos e virtuais? Para ser filósofo, é preciso saber as diferenças entre o pensamento dos pré-socráticos e a teoria platônica, isto é, entre a filosofia da natureza e o atomismo de Demócrito, de um lado, e o idealismo da Academia, de outro; ou quais são as críticas de Aristóteles à “Teoria das Formas” de seu mestre, discípulo de Sócrates; ou o que há em comum entre os conceitos de “Espírito Absoluto” de Hegel, de “Razão Pura” de Kant e de “Mundo das Ideias” de Platão? Para ser psicanalista, é preciso saber as diferenças entre as dimensões consciente, pré-consciente e inconsciente do aparelho psíquico, entre recalcamento e sublimação, entre resistência e transferência, entre narcisismo e complexo de édipo, entre a tristeza e a depressão, entre delírio e alucinação, entre neurose obsessiva e histeria, entre bipolaridade e esquizofrenia? Para ser linguista, é preciso saber as diferenças entre língua e fala, paradigma e sintagma, diacronia e sincronia, significante e significado; ou quais são os objetos de estudo da Fonética, da Morfologia, da Sintaxe e da Semântica; ou as definições de mudança e variação linguística; ou que os termos enunciado e enunciação não são sinônimos; ou que gêneros discursivos e tipos textuais são categorias distintas?

Embora não se possa cobrar de um leigo que saiba que há oito planetas no Sistema Solar, nem por isso seria um especialista se soubesse que o primeiro é Mercúrio, seguido de Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno; e que Plutão foi excluído porque não conduz a própria órbita – sujeita, pois, à interferência de outros corpos celestes. Aliás, um astrólogo também não precisaria necessariamente saber – para fazer um “mapa astral” – que são denominados de “corpos celestes” quaisquer objetos do Sistema Solar, sejam estrelas, planetas, asteroides, cometas, meteoroides ou satélites naturais. Já um astrônomo não poderia desconhecer a especialização de sentido dos termos, definindo “estrelas” como todos os corpos celestes de luz própria, propriedade de que carecem os “planetas”. Fazendo jus à sua formação científica, se lhe perguntassem a diferença entre asteroides e cometas, responderia que aqueles são corpos rochosos compostos de minerais e metais; e estes são formados de gelo e poeira, que vaporizam aproximando-se do Sol, cujo efeito visual é a emblemática cauda luminosa. O conhecimento astrológico não é pré-requisito para explicar que os meteoroides são resultantes da colisão de corpos maiores, como o choque entre asteroides e cometas. Mas é condição obrigatória a quem estudou Astrologia não só precisar isso, mas também saber que os meteoros nada mais são do que os meteoroides ao entrar em grande velocidade e alta temperatura na atmosfera, produzindo o rastro luminoso que os torna conhecidos, popularmente, como “estrelas cadentes”. Já no caso do “céu da boca” (aproveitando metaforicamente a referência cosmogônica para passar a outro campo de conhecimento), ninguém precisaria ser dentista para saber que os adultos têm 32 dentes, nem que são classificados como incisivos, caninos, pré-molares e molares. Não se exigiria de leigo, evidentemente, que soubesse quais são suas funções (cortar os alimentos ou triturá-los), nem que há quatro incisivos na arcada superior e quatro na inferior, dois caninos num maxilar e dois no outro, bem como quatro pré-molares e seis molares, respectivamente, em cima e embaixo. Tampouco deveria saber que, além de coroa, raiz e esmalte (todo paciente já ouviu ao menos esses termos, certamente) fazem parte da estrutura de todo dente, também, a polpa e a dentina. Quem se formou em Odontologia, em contrapartida, não poderia jamais ignorar que os caninos e os incisivos têm uma raiz, como os pré-molares inferiores e os segundos superiores, diferentemente dos primeiros superiores, com duas; e que só os molares possuem três raízes. Enfim, um profissional que não soubesse diagnosticar se uma dor de dente seria provocada por uma simples cárie ou se esta, em estado avançado, já teria infeccionado a polpa, requerendo, pois, tratamento de canal, seria tão imperito – guardadas as devidas des/proporções entre os d/efeitos – quanto um médico que atendesse um paciente com fortes dores no ombro esquerdo e lhe desse uma injeção de cortisona, julgando ser bursite o que era sintoma de infarto (aliás, erro tão grosseiro que custaria a vida – não é demais lembrar – do jornalista Paulo Francis).

Haveria de ter qualquer credibilidade quem se diz historiador sem nunca ter lido uma linha de Heródoto ou de Tucídides, nem uma página de Jacques Le Goff ou um ensaio de Hobsbawm? Ou um linguista que não houvesse estudado, para começar, o “Curso de Linguística Geral”, de Saussure, passando pelos “Prolegômenos a uma teoria da linguagem”, de Hjelmslev, “Problemas de Linguística Geral”, de Benveniste, e “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, de Bakhtin? Ou que um físico ou um astrônomo não soubesse não por que – porque isso é muito elementar – o geocentrismo de Ptolomeu fora superado pelo heliocentrismo de Copérnico, mas em que medida este modelo foi provado por Galileu, desenvolvido por Kepler e complementado por Newton? Poderia se intitular biólogo quem não leu, sequer por fontes indiretas, os fundamentos teóricos do sistema de classificação de Lineu ou as linhas metodológicas da genética de Mendel, e nunca abriu – supondo que tenha, ao menos, a obra fundadora de Darwin na estante – “A Origem das Espécies”? Com que autoridade alguém poderia se vangloriar de ser teólogo – não bastando para tanto, é claro, conhecer a Bíblia de cor e salteado – sem ter lido, de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, respectivamente, “Confissões” e “Suma Teológica”? Seria possível que um cineasta não tenha visto “O Encouraçado Potemkin” e “Outubro”, de Eisenstein, “O Nascimento de uma Nação” e “Intolerância”, de Griffith, “O Cidadão Kane” e “Otelo”, de Orson Welles, “A Doce Vida” e “E La Nave Va”, de Fellini, “Os Sete Samurais” e “Dersu Uzala”, de Kurosawa, “O Discreto Charme da Burguesia” e “O Anjo Exterminador”, de Buñuel? Ou que um crítico de cinema não conheça a fundo, por exemplo, a estética do “Expressionismo Alemão” de Fritz Lang e Murnau, do “Neo-realismo italiano” de Visconti e De Sica, ou da “Nouvelle Vague” de Godard e Truffaut? Não soaria tão inacreditável quanto um dramaturgo que não tivesse lido “Édipo Rei” e “Antígona”, de Sófocles, “Hamlet” e “Macbeth”, de Shakespeare, “A Escola de Mulheres” e “O Misantropo”, de Molière, “A Ópera dos Três Vinténs” e “Mãe Coragem”, de Brecht, ou “Esperando Godot” e “Fim de Jogo”, de Beckett? Não pareceria tão impensável quanto um diretor teatral que não houvesse estudado “A Preparação do Ator”, de Stanislavski, e “Sobre o método das ações físicas”, de Grotowski? Tão incrível quanto um crítico que ignorasse, sob as identidades estéticas entre os ícones do “Teatro do Absurdo”, as singularidades de Ionesco, Beckett, Artaud, Arrabal e Jodorowsky, ou por que a obra do autor de “O Teatro e Seu Duplo”, enfim, seria destacada como “Teatro da Crueldade”? Com que propriedade alguém poderia se apresentar como psicanalista sem ter lido, de Freud, sequer “A interpretação dos sonhos” e “Além do princípio de prazer”, para não dizer também, de Jung, “Os arquétipos e o inconsciente coletivo” e “O eu e o inconsciente”, ou um dos “Seminários”, ao menos, de Lacan? Não haveria de ser leitura básica de qualquer um que se pretenda jurista, por exemplo, “O Príncipe”, de Maquiavel, “Leviatã”, de Hobbes, “O Espírito das Leis”, de Montesquieu, “Do Contrato Social”, de Rousseau, “Dos Delitos e das Penas”, de Beccaria, “Princípios da Filosofia do Direito”, de Hegel, e “Teoria Pura do Direito”, de Kelsen?

 

  1. NÃO SABER É NÃO SER?

É providencial, a esta altura, que seja feita a ressalva de que não seria preciso, certamente, ter sido tão exaustivo nos exemplos, mencionando tantos campos epistêmicos, nem tantos “experts” de cada um, tampouco, de cada um, tantas obras: bastaria um ou dois, no máximo, para ilustrar o tema já problematizado na pergunta retórica do título; a tese já tão explícita na epígrafe. Em todo caso, nesta era acéfala em que é preciso desenhar o “óbvio ululante” (ah, Nelson Rodrigues, multiplicam-se como cogumelos os “idiotas da objetividade), em que é necessário pôr legenda nas imagens mais evidentes, em que os termos mais básicos requerem detalhadas notas explicativas, os conceitos mais elementares exigem bem didáticos glossários, talvez não tenha mesmo pecado pelo excesso. Ainda assim, partindo do pressuposto de que são inúmeros os energúmenos que não leem o que está escrito, ou que interpretam o que não está dito (não porque estivesse implícito, vale esclarecer), não há dúvida de que muitos terão muitas dúvidas sobre o escopo deste artigo: nesse trágico quadro de indigência cultural, logo, nenhuma prudência haveria de ser de fato exagerada. Posto isso, enfim, para focalizar o objeto que justifica os longos percursos digressivos preparatórios, eis a pergunta retórica que não quer calar: para ser poeta, é preciso saber o que é verso, o que é métrica, o que é estrofe, o que é rima e o que é ritmo? Sendo mais específico, que um verso pode ser classificado, conforme o número de sílabas poéticas, em monossílabo, dissílabo, trissílabo, tetrassílabo, pentassílabo (ou redondilha menor), hexassílabo, heptassílabo (ou redondilha maior), octossílabo, eneassílabo, decassílabo (ou heroico), hendecassílabo, dodecassílabo (ou alexandrino) ou bárbaro (com mais de 12 sílabas), bem como que é chamado de “versos livres” aqueles que não têm número regular de sílabas? Aliás, para tanto, precisaria saber o que é metrificação (ou versificação), e que a contagem do número de sílabas é até a última tônica, segundo o “sistema moderno” (isto é, o modelo francês, vigente após a reforma promovida, em 1851, pelo “Tratado de Versificação Portuguesa”, do romântico luso António Feliciano de Castilho); diferentemente do “sistema antigo” (da poesia grega e latina), em que se contavam todas as sílabas do verso? Para proceder à escansão, seria preciso saber também, sob o risco de não dividir corretamente as sílabas poéticas, expedientes como a diérese, a sinérese, a elisão, a sinalefa e a crase, já que esses recursos técnicos as distinguem das sílabas gramaticais, determinando, portanto, a unidade métrica do poema? Ou será que esse saber tão específico seria necessário apenas a um teórico da Literatura, a quem caberia certamente explicar que se denomina “diérese” à separação das vogais de um ditongo, como ocorre, por exemplo, em “saudade” (em que a palavra trissílaba ganha uma sílaba, com a separação das vogais do ditongo “au”); e que na “sinérese”, em contrapartida, unem-se duas vogais de um hiato, como na palavra “poeta” (ligando-se as vogais “o” e “e” num ditongo artificial, logo, a trissílaba se torna dissílaba)? Bem como que, em se tratando da “sinalefa”, duas vogais de palavras diferentes se unem pela transformação da vogal tônica da primeira em átona, conforme se dá na construção bilaquiana “fatigado eu” (o “o”, convertido em “u”, se liga ao “e”, formando assim a sílaba “dueu”); e que, na “elisão”, elimina-se a última vogal da precedente, para compor com a da seguinte uma única sílaba, como em “fatigada eu” (formando, logo, a sílaba “deu”); já no caso da “crase”, por fim, ligam-se duas vogais idênticas de ambas as palavras, como se verifica “a alma” (em que desaparece uma sílaba, pela ligação do artigo “a” com a vogal “a” do substantivo paroxítono dissílabo)?

Será que não só para ser acadêmico, mas também para ser crítico literário é que seria preciso saber os pré-requisitos da “arte poética”? Para ser bardo, então, não seria necessário conhecer o que todo leitor especializado, a rigor, não deve desconhecer? Por exemplo, que uma estrofe, de acordo com o número de versos, classifica-se como monóstico, dístico (ou parelha), terceto, quarteto (ou quadra), quintilha (quinteto ou pentástico), sextilha (sexteto ou hexástico), septilha (hepteto ou heptástico), oitava (ou octástico), nona, décima ou irregular (com onze ou mais versos)? Quanto aos tipos de rima, será que um poeta precisa realmente saber que “rima consoante” é aquela em que há igualdade sonora entre a última última tônica de um e de outro verso (como em “néscio” e “beócio”), diferentemente da “rima toante”, na qual a coincidência sonora é só entre as respectivas vogais de ambas as palavras (como em “cúmulo” e “estúpido”)? Ou que a rima entre palavras de mesma classe gramatical é chamada de “pobre” (como entre os adjetivos “ignorante” e “iniciante”), sendo denominada de “rima rica” a que ocorre entre palavras de distintas classificações morfológicas (como entre a forma verbal “construa” e o adjetivo “pura”)? Seria demais exigir de um artífice do verso saber que há diferentes tipos de rimas, como as alternadas ou cruzadas (estruturadas no esquema “ABAB”), as emparelhadas ou paralelas (simbolizadas como “AABB”) e as opostas ou interpoladas (representadas como “ABBA”): e que “versos brancos” são aqueles em que não há rima? Para ser poeta também seria preciso ter lido – para começo de conversa – obras clássicas como “Ilíada” e “Odisseia”, de Homero, “Eneida”, de Virgílio, “Odes”, de Horácio e “Metamorfoses”, de Ovídio, além de “A Divina Comédia”, de Dante, e “Os Lusíadas”, de Camões, bem como – ao menos, alguns deles – “Os Cantos”, de Pound, e – alguns poemas dele, ao menos – “The Waste Land”, de Eliot? Será que seria mesmo preciso, supondo que tenha lido ao menos “O Corvo”, de Poe, “dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcançados no último instante, para os inúmeros relances de ideias que não chegam à maturidade da visão completa, para as imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações; numa palavra, para as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos casos, constituem a característica do ‘histrião’ literário.” (POE, Edgar Allan. “A filosofia da composição”. In. “Poemas e ensaios”. São Paulo: Globo, 2009, p.114-115)? Aliás, para não dizer que não falei da epígrafe, em cujo excerto Pound falou e disse exatamente que um cientista “começa por aprender o que já foi descoberto”, e então prossegue a partir desse ponto”, e por que, partindo desse princípio (nos dois sentidos), comecei o parágrafo inicial focalizando exatamente – a princípio, em sentido “literal”; para futuro uso, contudo, “figurado” – o biólogo, o químico, o físico e o matemático, isso tudo tem exatamente tudo a ver, no fundo, com isto que o poeta – Poe põe os pingos nos “is” – pontuou (a propósito, partindo do mesmo princípio – também metafórico – da “precisão” científica): “É meu desígnio tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição [do poema “O Corvo”] se refere ao acaso, ou à intuição, que o trabalho caminhou passo a passo, até completar-se, com a precisão e a sequência rígida de um problema matemático.” (Idem, p.115).

 

  1. SABER A FILOSOFIA DA COMPOSIÇÃO PARA PODER COMPOR

Convém abrir um breve parêntese só para não deixar de dizer que ele não falou e disse isso por acaso, ou melhor, que o poeta não teria partido do princípio “matemático” em sentido meramente metafórico, como pretexto para ilustrar a tese da importância do pleno domínio da técnica na construção estética. Prova de que qualquer semelhança analógica não seria mera coincidência comparativa, vale dizer que o brilhante bardo tratou de problemas propriamente científicos em outro texto, tão extenso quanto exemplar de seu saber enciclopédico. Refiro-me às mais de cem páginas de “Eureka – ensaio sobre o universo material”, em cujas linhas o “filósofo da composição” parte da atomística do pré-socrático, passando pelo “reino nebuloso da metafísica” das “mônadas” de Leibniz, para então chegar às formulações de Kepler; ponto de partida, por sua vez, para então defender os “princípios” (em ambos os sentidos) da física de Newton. Como se não pudesse soar ousadia irresponsável a réplica, partindo não de um filósofo ou de um físico, nem de um astrônomo ou de um matemático, mas de quem, embora poeta, não era – aliás, longe de sê-lo – leigo, antes de contestar a conclusão dos astrônomos Nichol e Laplace, deixa explícito que concorda (nem seria preciso, porque – tão primária – nem poderia dela discordar) com a premissa aforismático-epistemológica enunciada pelo primeiro da tal dupla especialista: “Ora, é absolutamente verdadeiro que ‘os derradeiros princípios, na comum compreensão das palavras, sempre comportam a simplicidade dos axiomas geométricos’.” (POE, Edgar Allan. In. “Poemas e ensaios”. São Paulo: Globo, 2009, p.246). Confesso – seria desonesto se, não o fazendo, pudesse passar a mínima impressão de que poderia me pronunciar sobre tais problemas, tão específicos e complexos – que não sou sequer principiante nesses temas conexos entre tantos campos de conhecimento. De certa forma, portanto, dizer que Edgar Allan Poe se atreve a entrar no mérito teórico, inclusive, do Cálculo Diferencial, é não só para falar de seu imenso saber, mas também da minha enorme insipiência nas ciências exatas – sobretudo – nesse esfíngico assunto. Isso implica que jamais poderia, por exemplo, dizer – senão para falar, logo, que não poderia dizê-lo jamais – isto: “Qualquer outra ciência, que não a Lógica, é a ciência de certas relações concretas. A Aritmética, por exemplo, é a ciência das relações do número; a Geometria, das relações de forma. As Matemáticas, em geral, das relações de quantidades em geral, de tudo quanto possa ser aumentado ou diminuído. A Lógica, porém, é a ciência da relação no abstrato, da relação absoluta, da relação considerada exclusivamente em si mesma. Um axioma, em qualquer outra ciência particular que não a Lógica, é assim simplesmente uma proposição que anuncia certas relações concretas que parecem demasiado evidentes para ser discutidas, como quando dizemos, por exemplo, que o todo é maior do que suas partes; é assim ainda o princípio do ‘axioma’ lógico, por outras palavras, de um axioma em abstrato, e simplesmente a ‘evidência da relação’. Ora, é claro não só que o que é evidente a um espírito pode não ser evidente a outro, mas o que é evidente a um espírito, numa época, pode não ser mais evidente ao mesmo espírito, em outra época.” (Idem, pp. 263-264).

À guisa de ressalva, devo dizer que, se não serve de desculpa para o perdão da digressão (quem dera rima fosse solução!), que lhe sirva ao menos de atenuante: atando as pontas entre as metáforas, pois, dos desvios digressivos dos parágrafos pregressos também. Para não incorrer no mesmo suposto “deslize” discursivo (que poderia servir aos críticos como prova agravante), é prudente retornar logo ao ponto de partida, retomando o princípio da “filosofia da composição”: ou seja, o trecho em que o poeta parte do princípio “matemático” metafórico (por isso, entre aspas) dos problemas pressupostos na produção poética. Em outros termos, sendo bem direto e reto, exatamente aquele em que ele responde – como se não fosse mesmo, infelizmente, imprescindível – à pergunta retórica, esclarecendo por que, para ser poeta, é preciso saber “definitivamente o ritmo, o metro, a extensão e o arranjo geral”, enfim, da obra. Quanto ao número – maior ou menor – de versos, por exemplo, o rigoroso autor sublinha que “a extensão de um poema deve ser calculada, para conservar relação matemática com seu mérito; em outras palavras, com a emoção ou elevação; ou ainda, em outros termos, com o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz de produzir”. Para fundamentar a afirmação, evidencia a premissa (como se dissesse que a obviedade dispensaria, evidentemente, explicação): “Pois é claro que a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto com uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente, para a produção de qualquer efeito”. Considerando inevitáveis as notas explicativas, não só a muitos dos não muitos leitores contemporâneos, mas também a muitos – entre tantos – poetas “profissionais” não pouco “principiantes”, se é verdade que “nenhum poeta pode permitir-se dispensar ‘qualquer coisa’ que possa auxiliar seu intento”, disso decorre (Poe jamais pensaria que até isso – neste nosso “improvável” futuro obtuso que lhe provaria o contrário – seria preciso explicitar) que nenhum poeta pode não se permitir dispensar o desnecessário. Entre o imprescindível e o dispensável, em síntese, eis a questão: no final das contas, “resta ver se há, na extensão, qualquer vantagem que contrabalance a perda da unidade”. (POE, Edgar Allan. “A filosofia da composição”. In. “Poemas e ensaios”. São Paulo: Globo, 2009, p.116). No contexto atual de estupidez hiperbólica, seria imprudente concluir o parágrafo aí, sem falar – superestimando nosso tal “poeta” contemporâneo, por pressupor que a didática tão primária pudesse de fato soar prepotente, passando-lhe a impressão, pois, de subestimar sua inteligência – que o criador-pensador quis exatamente dizer que, se 54 dos 108 versos do poema (não seria desdém sequer “desenhar” aqui os números), por exemplo, fossem desnecessários para produzir o “grau de verdadeiro efeito poético”, a conclusão é que “O Corvo” deveria, logicamente, ter sua extensão reduzida à metade.

Após esclarecer esse tópico da estrutura da composição (no ensaio, “a consideração inicial foi a da extensão”), e de defender sua concepção do conceito estético de “Belo” (não entraremos nesse mérito, cuja complexidade exigiria um texto específico), passou, brevemente, ao ponto crítico decorrente: “Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha seguinte questão se referia ao ‘tom’ de sua mais alta manifestação (…), esse tom é o da ‘tristeza’ (…). A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos”. Na sequência, “estando assim determinadas a extensão, a província e o tom, entreguei-me à indução normal, a fim de obter algum efeito artístico agudo que me pudesse servir de nota-chave na construção do poema, algum eixo sobre o qual toda a estrutura devesse girar.” (Idem, p.118). A um acadêmico das letras, crítico literário, leitor erudito ou poeta ilustrado, obviamente, não seria preciso falar – dizê-lo seria deselegantemente depreciativo, como se pusesse em dúvida seu saber especializado – que essa tal “nota-chave” estrutural, no caso, é o refrão. Aos não poucos – entre os poucos – pouco instruídos leitores, e aos muitos – entre os muitos – não pouco despreparados poetas, contudo, não seria excessivo – supondo que se pudesse dizer quase tudo ainda seria pouco – citar o exato excerto justificativo: “Como é comumente usado, o refrão poético, ou estribilho, não só se limita ao verso lírico, mas depende, para impressionar, da força da monotonia, tanto no som, como na ideia. O prazer somente se extrai pelo sentido de identidade, de repetição (…). Suscitou-me, então, a questão do caráter da palavra (…). Não cabia dúvida de que tal fecho, para ter força, devia ser sonoro e suscetível de ênfase prolongada, e tais considerações inevitavelmente me levaram ao ‘o’ prolongado, como a mais sonora vogal, em conexão com o ‘r’, como a consoante mais aproveitável. Ficando assim determinado o som do refrão, tornou-se necessário escolher uma palavra que encerrasse esse som e, ao mesmo tempo, se relacionasse o mais possível com a melancolia predeterminada como o tom do poema. Em tal busca, teria sido absolutamente impossível que escapasse (…) ‘never more’ (…).” (Idem, p.119). A propósito, se o “poeta” de hoje fosse como aquele “cientista” poundiano da epígrafe (que “começa por aprender o que já foi descoberto”; e “prossegue a partir desse ponto”), sabendo aquilo tudo, saberia que isso tem tudo a ver – nem precisaria dizer, pois, quem disse depois – com a definição da arte poética de Valéry: poderia até ter sido assinada por Poe, vale dizer, a síntese aforismática de que a criação poética é “a hesitação entre o som e o sentido”. Nem precisaria dizer que, antes de ser poeta, a rigor, é preciso ser leitor; precisaria saber, logo, o que todo rigoroso leitor – que não precisaria ser poeta – saberia, se lhe dissesse que a alusão traduz as necessárias “correspondências” entre o plano do conteúdo e o plano da expressão: ou seja, que, na obra poética, eles “se confundem/ numa tenebrosa e profunda unidade”. Não só não seria preciso falar que foi Baudelaire quem disse isso, mas também que o poeta francês foi o “intradutor” pioneiro – e mais ilustre – do célebre cerebral bardo americano: em cuja estética, tão “vasta como a noite e a claridade”, das “flores do mal” – na versão em versos próprios do anfitrião do trágico “corvo” nas letras europeias – “os perfumes, as cores e os sons correspondem”.

Tudo isso para falar que, se não fosse preciso saber isso para ser poeta, não seria preciso dizer que precisamente o que falou Baudelaire tem a ver com o que disse Valéry, e falou e disse Poe propriamente sobre as “correspondances” entre tom e som, perfazendo a unidade indissolúvel de todo texto poético que se preze. Em outros termos do teorema metafórico, se o poema não fosse um “problema matemático”, ou as partes do “sistema poético” não fossem regidas – em outra alusão “científica” – pela “lei da gravitação” estética (traduzindo em versos, analogicamente, o que Newton acrescentaria à “terceira lei” de Kepler), o traço semântico do “fechamento”, recorrente no quarto do insone “eu-lírico”, no enclausuramento dentro do claustrofóbico breu noturno e no tom melancólico das asas negras do corvo, não teria equivalente – como sua mais exata tradução – no plano da expressão: como a vogal “o”, fechada e alongada como o canto doloroso da ave de mau agouro, e a consoante “r”, rascante e persistente como o mortal vento glacial, soprando na janela da alma desolada. Sem mais, enfim, para não prolongar essas digressões hermenêuticas e passar aos aspectos da propriedade rítmica e da adequação métrica, a lição também é clara àqueles que de fato frequentaram as “salas de aula” da “arte da poesia” (para não dizer que não falei – de novo – o que Pound também já falou e disse, reprovando os velhos “bardos” bastardos que, paradoxal e impunemente, “circulam por aí”). Ou seja, para não dizer que, para ser poeta, não seria preciso saber isto nem aquilo, o supremo sábio insubmisso assinalou exatamente – na sequência do mesmo exímio ensaio – o que também haveria de ser requisito obrigatório ao exercício do ofício poético: “Admitindo-se que haja pequena possibilidade de variedade no ‘ritmo’, permanece claro, porém, que as variedades possíveis do metro (…) são absolutamente infinitas, e contudo, ‘durante séculos, nenhum homem, em verso, jamais fez ou jamais pareceu pensar em fazer uma coisa original’. A verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força muito comum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente.” (Idem, p.122).

 

  1. ATANDO OS PONTOS: DE POE A POUND

Abrindo outro breve (nem tanto, porquanto tão “longa é a arte”) parêntese, para não dizer que só o “filósofo da composição” falou, ou que só disseram também (além de Poe) Baudelaire e Valéry, também Pound falou e disse isso e aquilo. Isto é, partindo do princípio metafórico (já no trecho em epígrafe) científico, defendeu a tese do rigor estético, da precisão artística, da consciência estrutural, levando à conclusão de que todo poeta – como qualquer profissional digno de respeito – deve conhecer não só os instrumentos técnicos, mas também as produções mais bem acabadas de seus pares ímpares, que os manejaram com tal destreza, evidentemente, que atingiram a excelência em tal tão difícil ofício. Tive o cuidado de selecionar e transcrever, assim, estes excertos mais ilustrativos de seu imprescindível ensaio “O Artista Sério”:

“As artes, a literatura, a poesia são uma ciência, tal como a química. Seu assunto é o homem, a humanidade e o indivíduo. O assunto da química é a matéria considerada quanto à sua composição. As artes nos fornecem uma grande percentagem de dados duradouros e inatacáveis, referentes à natureza do homem (…) considerado como criatura que pensa e sente (…). Com as artes aprendemos também de que maneira o homem se assemelha a alguns outros animais e de que maneira difere deles. Aprendemos que certos homens estão mais próximos de certos animais que de outros homens de diferente composição (…). O artista sério se encontra habitualmente, ou com frequência, tão distante do ‘agrum vulgus’ quanto o cientista sério. Ninguém ouviu falar dos matemáticos abstratos que descobriram as determinantes de que se valeu Marconi em seus cálculos do telégrafo sem fio (…). Os homens deixaram de procurar conquistar o mundo e de adquirir um saber universal (…). Entre pessoas que pensam e que sentem, o mau artista é desprezado tal como desprezaríamos um médico negligente ou um cientista superficial e inexato (…). Em meio ao nevoeiro e à escuridão exterior, não se tomam medidas para distinguir o artista sério do que não o é. Como o artista falto de seriedade constitui o tipo mais comum, existindo em número muito maior que o sério, e levando o falso artista uma vantagem temporária e aparente ao obter as recompensas que caberia ao verdadeiro, é natural que o artista não sério faça todo o possível por confundir as linhas de demarcação. Sempre que se tenta demonstrar a diferença entre trabalho sério e não sério, dizem-nos que se trata de ‘uma discussão puramente técnica’. E fica-se nisso (…). A pedra de toque de uma arte é sua precisão. Tal precisão é de vários e complicados tipos (…).” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, pp.58, 64-65).

Partindo do pressuposto de que as ponderações de Pound são as “de um artista mais tarimbado buscando ajudar artista mais jovem”, oferecendo-lhe “conselhos que representam frutos da experiência”, reli com lupa e escolhi criteriosamente, pois, uma série de notas críticas do texto que abre “A Arte da Poesia”. Sendo seu objetivo fornecer “pontos de partida” para não só “despertar a atenção de um leitor passivo”, mas também contribuir para a educação do aprendiz do nobre ofício, o título “Retrospectiva”, bem como particularmente os subtítulos “Linguagem” e “Ritmo e Rima”, enfim, não podiam ser mais – tão autoexplicativos já – didaticamente precisos. Aproveitando para atar as pontas entre a leitura e a escrita, “em profunda unidade” (para não dizer que não falei das “flores” de Baudelaire) – como se fosse preciso provar que, para ser escritor, é preciso ser leitor -, “il miglior fabbro” reitera a necessidade de dominar os recursos técnicos da arte poética, cujo aprendizado obrigatoriamente parte do estudo atento das obras dos melhores artífices. Com a força da argúcia poundiana, em síntese, não só se refletem as premissas estéticas da “filosofia da composição”, mas também se iluminam os demais pontos críticos deste inadiável – já tão estrategicamente postergado pelos medíocres hegemônicos – debate cultural. Para (re)começar, então, a “aula magna” aos tão preguiçosos quanto pretensiosos “diluidores” que fugiram da escola, pulo duas linhas – dando-lhe (também porque a prédica é longa) o devido destaque –  passo a palavra ao memorável “mestre inventor” (aos poucos leitores perspicazes e poetas ilustrados, aliás, não é preciso explicar as aspas – a tragicômica trupe iletrada hegemônica, entretanto, não entende o trocadilho porque é a piada). Aliás, pulo não só mais duas linhas, para que prossigam seus ensinamentos nos excertos certeiros sob o subtítulo “Credo”, mas também outras duas na sequência, para encerrar a tríade com os providenciais trechos do ensaio estrategicamente intitulado “Como Ler”:

“Não reproduza em versos medíocres o que já foi dito em boa prosa. Não imagine que uma pessoa inteligente se deixará iludir se você tentar esquivar-se aos obstáculos da indescritivelmente difícil arte da boa prosa subdividindo sua composição em linhas mais ou menos longas. O que cansa os entendidos de hoje cansará o público de amanhã. Não imagine que a arte poética seja mais simples que a arte da música, ou que você poderá satisfazer aos entendidos antes de haver consagrado à arte do verso uma soma de esforços pelo menos equivalente aos dedicados à arte da música por um professor comum de piano. Deixe-se influenciar pelo maior número possível de grandes artistas, mas tenha a honestidade de reconhecer sua dívida, ou de procurar disfarçá-la. Não permita que a palavra ‘influência’ signifique apenas que você imita um vocabulário decorativo peculiar a um ou dois poetas que por acaso admire (…).

Que o candidato impregne o espírito com as mais belas cadências que possa descobrir (…), por exemplo: fórmulas mágicas saxônicas, canções folclóricas das Hébridas, versos de Dante e poemas de Shakespeare – desde que consiga dissociar o vocabulário da cadência. Que escalpele friamente os poemas de Goethe, analisando os valores de seus componentes sonoros, sílabas longas e breves, acentuadas e não acentuadas, em vogais e consoantes. Não é imprescindível que um poema se baseie na musicalidade, mas, caso isso aconteça, tal música deve ser capaz de deleitar o especialista. Que o neófito identifique assonância e aliteração, rima imediata e retardada, simples e polifônica, tal como se espera de um músico que conheça harmonia e contraponto, assim como todas as minúcias de seu ofício. Nunca será demais o tempo consagrado a esses assuntos, mesmo que o artista raramente deles necessite (…). Em suma, comporte-se como um músico, um bom músico, ao lidar com essa face de sua arte que encontra na música paralelismos exatos. Prevalecem leis idênticas (…). Naturalmente, sua estrutura rítmica não deverá destruir a forma de suas palavras, nem a sonoridade natural ou significado delas (…). Uma rima deve trazer consigo um leve elemento de surpresa, se é que se destina a provocar certo prazer; não precisa ser curiosa ou estranha, mas, quando for usada, deve ser bem usada (…). Considere o caráter preciso da apresentação de Dante, num confronto com a retórica de Milton. Leia Wordsworth na medida em que ele não lhe pareça insuportavelmente chato. Se você estiver em busca da essência da questão, vá a Safo, a Catulo, a Villon, a Heine quando ele está de veia, ao Gautier não excessivamente frígido (…). A boa prosa não lhe fará mal algum e consegue-se boa disciplina ao tentar escrevê-la.” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.11-14).

“Penso que existe um conteúdo ‘fluido’, assim como um conteúdo ‘sólido’; que certos poemas podem ter uma forma, tal como as árvores a têm, enquanto a de outros seria como a da água despejada num vaso (…). ‘Acreditando que a única coisa de valor seja aquela em que se emprega toda arte’ [Dante], julgo que o artista deveria dominar todas as formas e sistemas de métrica conhecidos, e eu tenho me aplicado com certa perseverança a consegui-lo, investigando particularmente os períodos em que os sistemas tiveram origem ou chegaram à maturidade (…). Penso que somente ao fim de prolongada luta chegará a poesia a atingir tal grau de desenvolvimento (…). Vivo a sustentar que foram necessários dois séculos de Provença e um de Toscana para desenvolver os meios para a obra-prima de Dante; que o preparo dos instrumentos de Shakespeare exigiu os latinistas da Renascença, a Plêiade, e mais a sua própria era de linguagem pintada. É tremendamente importante que a grande poesia seja escrita (…). ‘A vida é tão curta e tão demorado o ofício de aprender’. É tolice começar um homem o seu trabalho em bases por demais estreitas; é lamentável que a obra de um homem não revele progresso contínuo e requinte cada vez maior, do princípio ao fim (…). No que respeita a ‘Cada homem é o seu próprio poeta’, quanto mais cada indivíduo souber sobre poesia, tanto melhor. Acredito que possa escrever poesia quem o queira; a maioria o faz. Acho que todo homem deve conhecer a música o suficiente para tocar ‘God bless our home’ numa sanfona, mas não acredito que todo indivíduo possa dar concertos e publicar seus pecadilhos musicais. O domínio de qualquer arte é trabalho para uma vida inteira (…). É indiscutível que o caos atual persistirá até a Arte da poesia ter sido assimilada pelo amador, até haver uma compreensão generalizada do fato de que a poesia é uma arte e não um passatempo; um grande conhecimento de técnica, da técnica superficial e da técnica de conteúdo, para que os amadores deixem de procurar sobrepor-se aos mestres. Se determinada coisa foi dita, de uma vez por todas, na Atlântida ou na Arcádia, 450 anos antes de Cristo, ou 1290 anos depois, não cabe a nós modernos sair por aí a redizê-la ou a obscurecer a memória dos mortos, repetindo a mesma coisa com menos talento e convicção (…). Cada época tem seus próprios talentos (…), mas só algumas os convertem em algo durável. (…) Quanto à poesia (…) que espero ver escrita no decorrer da próxima década (…), creio que ela será o oposto da conversa fiada (…).” (Idem, p.17-20).

“E poderíamos presumivelmente aplicar ao estudo da Literatura um pouco do bom senso que costumamos aplicar ao da Física ou Biologia. Em poesia, há procedimentos simples e descobertas conhecidas, claramente marcadas, como afirmei em diversos pontos dos meus volumes desorganizados e fragmentários: em cada era, um ou dois homens de gênio descobrem alguma coisa e a expressam. Talvez em apenas uma ou duas linhas, ou numa qualidade qualquer de uma cadência, e daí por diante, duas dúzias ou duas centenas, dois milheiros, ou mesmo mais, de seguidores a repetem, a diluem e a modificam (…). A prática particular da composição literária tem sido permitida desde ‘tempos imemoriais’, como o tricô, o crochê, etc. Serve para entreter o praticante, e enquanto este a guardar para si, ‘elle ne nuit pas aux autres’, não transgride a definição de liberdade (…). Parece-me bastante possível sustentar que a função da literatura como força geratriz digna de prêmio consiste precisamente em incitar a humanidade a continuar a viver, em aliviar as tensões da mente, em nutri-la, e nutri-la, digo-o claramente, com a ‘nutrição de impulsos’. Essa concepção talvez inquiete os amantes da ordem. Assim como muitas vezes os inquieta a boa literatura. Consideram-na perigosa, caótica, subversiva. Recorrem a todas as piadas degradantes, imbecis, para domá-la. Procuram criar um atoleiro, um marasmo, uma enorme podridão, em vez de uma ebulição sadia e ativa. E o fazem por estupidez puramente simiesca e suína, por incapacidade de compreender a função das letras (…). E essa função não é a de coagir, ou persuadir emocionalmente, ou forçar as pessoas a aceitarem ou a deixarem de aceitar um grupo ou meia dúzia de grupos de opiniões, que se contrapõem a outro grupo ou a outra meia dúzia de grupos de opiniões. A literatura tem a ver com a clareza e vigor de ‘todo e qualquer’ pensamento e opinião. Tem a ver com a manutenção da própria limpeza dos instrumentos, com a higidez da própria matéria do pensamento em si mesmo (…). Para as finalidades do pensamento, é tão importante manter a eficiência da linguagem quanto, em cirurgia, manter os bacilos do tétano longe das ataduras do doente. Ao iniciar uma pessoa em literatura, seria aconselhável fazê-la examinar as obras nas quais a linguagem é usada com eficiência, idear um sistema de obter acesso direto e pronto a essas obras, a despeito das cortinas de fumaça levantadas por críticos semi-informados e semipensantes. Chegar a elas, a despeito da massa de matéria morta que essas pessoas amontoaram e mantiveram a seu redor, na proporção de um barril de serragem para cada meio cacho de uvas.” (Idem, pp.30, 32-35).

 

  1. É PRECISO LER OS ETERNOS PARA SER MODERNO

Embora extensos, os excertos dos três ensaios problematizam, com notável acuidade crítica, todos os pressupostos imprescindíveis à formação do poeta: desde à construção de um amplo repertório cultural, por meio da leitura de grandes autores e obras-primas, até o amplo domínio dos mais diversos recursos técnicos de produção literária. Para se tornar, em primeiro lugar, um leitor competente, ele deve “impregnar o espírito com as mais belas cadências que possa descobrir”, dos mais distintos tempos históricos, espaços geográficos e gêneros discursivos: de “fórmulas mágicas saxônicas” a “canções folclóricas das Hébridas” (arquipélago na costa oeste da Escócia); da literatura italiana medieval de Dante (1265-1321) ao teatro renascentista britânico de William Shakespeare (1564-1616), da “Plêiade” grega de Homero (928 a.C. – 898 a.C.) e Safo de Lesbos (630-580 a.C.) à lírica latina de Catulo (87 ou 84 a.C. – 57 ou 54 a.C.); dos versos medievais do precursor francês dos “malditos” François Villon (1431-1463) às obras românticas alemãs de Wolfgang Goethe (1749-1832) e Heinrich Heine (1797-1856); da épica clássica inglesa de John Milton (1608-1674) à estética parnasiana francesa de Theóphile Gautier (1811-1872). Para então se tornar poeta, é certo, também precisa “dominar todas as formas e sistemas de métrica conhecidos (…), investigando particularmente os períodos em que os sistemas tiveram origem ou chegaram à maturidade”: afinal, “para conhecer alguma coisa sobre a eficiência relativa de diversas obras, devemos ter algum conhecimento do máximo já alcançado por vários autores”. Em termos mais diretos, para se habilitar ao ofício – tendo clareza da “arquitetura”, compreensão da “forma do todo” -, é necessário estudar a fundo, evidentemente, estruturas rítmicas tão específicas, por exemplo, quanto as dos hexâmetros da poesia épica (grega e latina) e os iambos da comédia clássica, ou os hendecassílabos da “terza rima” dantesca, os decassílabos (“pentâmetro iâmbico”) dos sonetos shakespearianos e os alexandrinos – além dos “dez pés” heroicos – dos neoclássicos quartetos e tercetos parnasianos. A propósito das relações dialéticas entre a leitura e a escrita, vem bem a calhar a lembrança deste insuspeitável endosso de Proust (como se fosse preciso provar que nenhuma criação estética é fruto da “abiogênese”): “O que é preciso, portanto, é uma intervenção que, vinda de um outro, se produza no fundo de nós mesmos, é o estímulo de um outro espírito, mas recebido no seio da solidão (…). Seja porque (…) a exaltação que acompanha certas leituras tem uma influência propícia sobre o trabalho pessoal, cita-se mais de um escritor que amava ler uma bela página antes de se pôr a trabalhar. Emerson raramente começava a escrever sem antes reler algumas páginas de Platão. E Dante não é o único poeta que Virgílio teria conduzido às portas do paraíso.” (PROUST, Marcel. “Sobre a leitura”. Porto Alegre: L&PM, 2016, p.34-35). Para fechar o parágrafo com chave de ou(t)ro, enfim, é a mesma premissa de que parte o indefectível crítico literário George Steiner: “A memória é, naturalmente, o ponto crucial. A capacidade de reagir ao texto, a compreensão e a resposta crítica (…). A capacidade de citar de memória as Escrituras, de recitar de cor longos trechos de Homero, Virgílio, Horácio ou Ovídio, de ter sempre uma citação apropriada de Shakespeare, Milton (…) gerou uma tessitura compartilhada de ecos, de identificações e reciprocidades intelectuais e emocionais (…). A grande maioria de nós já não sabe mais identificar – e muito menos citar (…). Os interstícios do nosso saber não comportam ecos, pois estão entulhados de trivialidades estridentes. Não espere que um estudante, ainda que relativamente bem preparado, reaja (…), que lhe diga o que é uma écloga, que reconheça uma sequer das alusões de Horácio, ou os ecos de Virgílio (…).” (STEINER, George. “Nenhuma paixão desperdiçada”. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.26-27).

Ainda que Steiner não tivesse dito – ou que não tivesse falado que ele disse, nem dito o que ele falou -, não seria preciso dizer que a resposta já está implícita – evidentemente – na pergunta retórica: ou seja, não só um teórico das letras ou um crítico literário, é claro, precisa saber quem foi Homero, Virgílio, Horácio, Ovídio, Shakespeare e Milton, mas também todo leitor especializado (que não precisaria ser poeta, veja bem), como qualquer poeta precisaria ser. Se é verdade que um químico precisa saber o que é “cálculo estequiométrico”, do mesmo modo que um físico precisa saber o que significa “grandeza vetorial”, bem como um matemático precisa saber o que caracteriza uma “equação irracional”, não é mentira que nenhum deles precisaria saber – como requisito para o exercício profissional – as diferenças entre “angiospermas” e “gimnospermas”, ou entre “neurose” e “histeria”, ou entre “idealismo” e “materialismo”. Em contrapartida, ainda que não seja preciso saber quem foi Epicuro ou Kant para ser biólogo, nem as distinções entre a “lei da herança dos caracteres adquiridos” de Lamarck e a teoria evolucionista de Darwin para ser astrônomo, um filósofo que não soubesse o que é “metafísica” e “empirismo”, enfim, seria como um cardiologista que não soubesse distinguir “ventrículo” e “aurícula”: tão incompetente – ele, eles – quanto um historiador que não soubesse diferenciar “nazismo” e “stalinismo”, ou um geógrafo que não soubesse que “golfo” não é sinônimo de “baía”, ou um linguista que confundisse “paradigma” e “sintagma”. Um antropólogo não poderia não saber quem foi Malinowski e Lévi-Strauss, como não poderia um maestro não saber quem foi Mozart e Bach, ou um pintor ignorar as diferenças entre Michelangelo e Rembrandt: seriam tão incompetentes quanto um economista que desconhecesse as teorias de Adam Smith e de Keynes. Para ser geólogo não é preciso saber que “sinapse” é a conexão neuronal,  nem é preciso saber, para ser neurologista, que “jurássico” é um “período” que precede o “cretáceo”, no fim da “era mesozoica”: se um geólogo não soubesse que estes precedem o “terciário” e “quaternário” da “cenozoica”, contudo, seria tão incompetente quanto um neurologista que não soubesse que os impulsos nervosos recebidos pelo “axônio” são transmitidos de célula a célula pelos “dendritos”. Para ser poeta não seria preciso saber nada disso/daquilo; bem como para ser químico, físico, matemático, analista, filósofo, historiador, geógrafo, antropólogo, pintor, economista, geólogo ou neurologista, logicamente, não seria preciso saber o que é “redondilha menor” e “heptassílabo”, ou quem foi Safo ou Ovídio. Todavia, para ser poeta, não só é preciso saber quem foi Virgílio e Horácio, mas também que “écloga” é um clássico gênero poético pastoril, de cuja idílica fonte latina beberia, por exemplo, a tão bucólica literatura árcade.

Faça-se a devida ressalva poundiana, sobretudo a esta altura (sobre os ombros de gigantes, vendo anões), que, “obviamente, não é fácil ser um grande poeta”; aliás, “se fosse, muita gente mais o teria sido”. Para não dizer que não falei que esse problema não é só de hoje, foi ele mesmo quem já dissera – vale dizer (“nada de novo sob o sol” da redundância, diria Leminski) – que “em período algum da história esteve o mundo livre de pessoas que vagamente desejaram tornar-se grandes poetas, e não poucos empenharam-se conscienciosamente em consegui-lo”. A propósito do que seria/é verdadeiramente “grande”, Ezra cantou Dante – em “O artista sério” – como metonímia de “poeta maior”, desafiando/desafinando o descarado coro indecoroso dos inúmeros nanicos diletantes: “Quero dizer que tais poetas nasceram na hora exata, e que lhes foi dado juntar, consertar e harmonizar os resultados do trabalho de muitos homens. Até essa faculdade de combinação faz parte de sua genialidade. Os homens dos quais Dante tomou algo emprestado são lembrados tanto por isso como por suas próprias composições. Dante deu de si, ao mesmo tempo; nenhum mero compilador ou classificador de descobertas alheias recebe o nome de ‘poeta maior’ por mais de uma temporada. Se Dante não houvesse feito muito mais do que ir buscar rimas em Arnaut Daniel e teologia em Tomás de Aquino (…).” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.66). Para não dizer que não falei também – trocando Dante por Shakespeare – que foi exatamente isso que Bakhtin já falou e disse (afinal, “não se faz um Hamlet sem quebrar ovos”, diria Lacan), eis a questão: “Tudo o que pertence apenas ao presente morre com ele. A vida das grandes obras nas épocas futuras e distantes (…) parece um paradoxo. No processo de sua vida ‘post mortem’ elas se enriquecem com novos significados, novos sentidos; é como se essas obras superassem o que foram na época de sua criação. Podemos dizer que nem o próprio Shakespeare nem os seus contemporâneos conheciam o ‘grande Shakespeare’ que hoje conhecemos (…). Outrora, Bielínski já dizia que cada época descobre algo de novo nas grandes obras do passado. (…) Os tesouros dos sentidos, introduzidos por Shakespeare em sua obra, foram criados e reunidos por séculos e até milênios: estavam escondidos na linguagem, e não só na literária como também em camadas da linguagem popular que antes de Shakespeare ainda não haviam penetrado na literatura, nos diversos gêneros e formas de comunicação verbalizada (…), nos enredos que remontam com suas raízes à Antiguidade pré-histórica e, por último, nas formas de pensamento.” (BAKHTIN, Mikhail. “Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas”. São Paulo: Editora 34, 2017, p.14-15).

 

  1. MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM: MAIS DO MESMO É MENOS

Para tentar “atar as pontas” – diria “Dom Casmurro” – do fim ao início – “Brás Cubas” diria -, convém voltar ao começo do texto, partindo do princípio de que no princípio era a pergunta retórica do título: “Para ser poeta não precisa saber poesia?”. A analogia da epígrafe não deixaria sombra de dúvida – em princípio – sobre o que já não parecia ser – a princípio – senão evidente: ou seja, que um poeta não poderia ser a não ser como um “cientista”, que não o é se não “começa por aprender o que já foi descoberto”. O “não” da pergunta é que é, sim, a aporia irônica do trágico problema: se é certo que, para ser poeta, é preciso sim saber poesia, é fato que está implícito que hoje – como se já não estivesse tão claro – todo mundo pode ser poeta, apesar de não saber ler nem escrever poesia. Houve um tempo em que a literatura pressupunha – em maior ou menor grau, nunca menos que o mínimo – repertório cultural; e, entre os gêneros literários (como o romance, a novela e o conto, por exemplo), a poesia era arte de – para – poucos e raros: ou seja, não só havia bem menos bardos do que prosadores, mas também muito menos leitores de poemas do que de quaisquer outras páginas cujas linhas – mais curtas ou longas, pouco importa – não fossem subdivididas em versos. Já no quadro atual, paradoxalmente, há muito mais poetas do que romancistas e contistas, o que não implica – atenção! – que o número de leitores tenha aumentado na mesma proporção: o que aumentou em relação diretamente proporcional, para ser mais exato, é a debilidade estética – a precariedade cultural – nas duas pontas do processo. Em outros termos do teorema literário, há uma desproporção entre a quantidade de livros despejados no mercado editorial e a qualidade da escrita e da leitura. Conforme a providencial analogia do enciclopédico “Estagirita”, essa relação inversamente proporcional contraria o princípio valorativo elementar de que “o mais raro é preferível ao que é abundante; por exemplo, o ouro é preferível ao ferro” (ARISTÓTELES, “Arte Retórica e Arte Poética”. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d, p.52). Aproveitando – diante de tanto “ouro de tolo” – a luminosa metáfora aristotélica, para dizer que Edgar Allan Poe também falou e disse que “nem tudo o que reluz é ouro”, eis sua análise do problema: “A multiplicação dos livros, em todos os ramos (…), é um dos flagelos de nossa época. É, mesmo, um dos obstáculos mais sérios à aquisição de conhecimentos exatos. O leitor encontra seu caminho obstruído por uma multidão de materiais e só tateando é que, de vez em quando, encontra alguns restos úteis, misturados por acaso aos demais.” (POE, Edgar Allan. “De Marginália – Excertos”. In. “Poemas e ensaios”. São Paulo: Globo, 2009, p.188).

Levando em conta que concordo não só com o conteúdo e o tom das críticas, mas também compartilho da preocupação didática dos autores citados, convém tentar explicar as tais relações entre quantidade e qualidade (de obras e leitores, de criação e de leitura). Em primeiro lugar, não é demais explicitar as alusões comuns à ciência matemática, partindo das últimas referências a Aristóteles (“o raro é preferível ao abundante”) e a Edgar Allan Poe (“a multiplicação dos livros é um dos flagelos da nossa época”), para retomar então este excerto de outro ensaio do “filósofo da composição”: “A Aritmética, por exemplo, é a ciência das relações do número; a Geometria, das relações de forma. As Matemáticas, em geral, das relações de quantidades em geral, de tudo quanto possa ser aumentado ou diminuído.” (POE, Edgar Allan. “Eureka – ensaio sobre o universo material e espiritual”. In. “Poemas e ensaios”. São Paulo: Globo, 2009, p.263). Em seguida, a constatação de Steiner de que “a grande maioria de nós já não sabe mais identificar – e muito menos citar”, “os interstícios do nosso saber não comportam ecos, pois estão entulhados de trivialidades estridentes”, a que acrescento esta conclusão lógica: “O fólio, a biblioteca particular (…), as artes de exercitar a memória pertencerão, cada vez mais, a umas poucas pessoas muito especializadas.” (STEINER, George. “Nenhuma paixão desperdiçada”. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.28). Do ensaio “O Artista Sério”, de Pound, destaco esta passagem complementar ao balanço desse quadro de progressiva indigência intelectual: “Como o artista falto de seriedade constitui o tipo mais comum, existindo em número muito maior que o sério, e levando o falso artista uma vantagem temporária e aparente ao obter as recompensas que caberia ao verdadeiro, é natural que o artista não sério faça todo o possível por confundir as linhas de demarcação.” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.65). Posto isso, enfim, para analisar as causas que explicariam a “multiplicação dos livros” e a baixa qualidade estética recorro à análise lapidar de Walter Benjamin, bem como a uma nota do clássico ensaio “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, em que o filósofo cita uma análise do escritor Aldous Huxley (chamo a atenção dos leitores ao recurso metodológico ao instrumental matemático para diagnosticar o aumento da desproporção entre a quantidade e a qualidade). Aproveitando o gancho, por último segue um trecho do prefácio de Huxley a “Admirável Mundo Novo” (seu mais conhecido romance):

“Durante séculos as coisas se deram de tal modo na literatura que a um pequeno número de escritores opunha-se um número milhares de vezes maior de leitores (…). Com a expansão crescente da imprensa (…), uma porção cada vez maior da comunidade leitora – a princípio ocasionalmente – ingressava na comunidade escritora (…), e hoje as coisas estão de tal modo que mal se pode encontrar um único europeu incluso no processo de trabalho que não tenha de algum modo tido em alguma parte a oportunidade de publicar uma experiência profissional, uma reclamação, uma reportagem ou algo do tipo. Com isso, a diferença entre o autor e o público está a ponto de perder o seu caráter fundamental.” (BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Porto Alegre: L&PM, 2017, p.82).

“Os avanços técnicos (…) levaram à vulgaridade (…), a reprodutibilidade técnica e a prensa rotativa possibilitaram uma multiplicação incalculável de escritos e imagens. A formação escolar generalizada e os salários relativamente elevados formaram um público muito grande capaz de ler e de se abastecer de material literário e imagético. Para fornecê-lo, estabeleceu-se uma indústria significativa. O talento artístico, porém, é algo bastante raro; disso segue (…) que a todo tempo e em toda parte a porção preponderante da produção artística tenha sido medíocre. Hoje, porém, a porcentagem de lixo no conjunto da produção artística está maior do que nunca (…). Enfrentamos aqui um problema aritmético simples. No decorrer do século passado, a população da Europa Ocidental pouco mais que dobrou. Estimo, porém, que o material literário e imagético tenha crescido no mínimo na proporção de 1 para 20, talvez até para 50 ou 100. Se uma população de ‘x’ milhões possui ‘n’ talentos artísticos, uma população de ‘2x’ milhões terá provavelmente ‘2n’ talentos artísticos. A situação deixa-se resumir do seguinte modo: para cada página impressa contendo material literário e imagético há cem anos são impressas hoje vinte, se não cem páginas. Se, por outro lado, existia um talento artístico há cem anos, existem hoje em seu lugar dois. Eu concedo que, devido à formação escolar generalizada, um grande número de talentos virtuais que antes não teriam chegado a desenvolver os seus dons podem hoje tornar-se produtivos. Estabeleçamos, pois (…), que hoje correspondam três ou mesmo quatro talentos artísticos a cada talento artístico de outrora. Mesmo assim, continua indubitável que o consumo de material literário e imagético tenha ultrapassado de longe a produção natural de escritores e desenhistas dotados (…). Disso resulta, pois, que em todas as artes, falando tanto absoluta como relativamente, a produção de lixo é maior do que antes; e assim deve permanecer enquanto as pessoas seguirem, como atualmente, a exercer um consumo desproporcional de materiais literários, imagéticos e sonoros.” (BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Porto Alegre: L&PM, 2017, p.114-115).

“A arte possui também sua moralidade, e muitas das regras desta são iguais, ou pelo menos análogas, às da ética comum. O remorso, por exemplo, é tão indesejável com relação à nossa arte de má qualidade quanto com relação ao nosso mau comportamento. A má qualidade deve ser identificada, reconhecida e, se possível, evitada no futuro (…). Por ter dito isso em diversos livros recentes (…), ouvi de um eminente crítico acadêmico a observação de que eu sou um triste sintoma do fracasso de uma classe intelectual em tempo de crise.” (HUXLEY, Aldous. “Admirável Mundo Novo”.  São Paulo: Círculo do Livro, 1983, p.7-8).

Dando continuidade ao percurso analítico, conforme a tradução/tradição crítica de Pound, o “atoleiro”, o “marasmo”, a “enorme podridão”, a “estupidez puramente simiesca e suína” é fruto podre da inequívoca “incapacidade de compreender a função das letras”. Ou seja, sem indulgentes atenuantes eufemísticas que lhes massageasse o ego (já tão descabidamente dilatado), poupando produtores e consumidores – de textos literários, sobretudo – da desconfortável sensação de “ofensa narcísica” (para não dizer que não falei que Freud explica também), o “antena da raça” falou e disse – com todas as letras – que “um homem necessita ler para ‘conhecer o seu rumo’, para formar uma opinião correta de qualquer texto literário que lhe possa surgir à frente”. A propósito dos despropósitos, o fato é que não haveria mesmo de ser hoje – em que pese ainda pudesse provocar, àquela época não tão decrépita, certa (e certamente tão indigesta) surpresa – “de espantar que as pessoas, os escritores profissionais em particular, consistam em deixá-los [os livros fundamentais] ignorados e continuem suspensos no caos a emitir as opiniões mais imbecis” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.40). Não há dúvida de que a premissa de que “o artista sério é científico”(como já dissera também o “filósofo da composição”) está correta; bem como a ilustração analógica de que deve proceder – precedendo, pois, a produção propriamente dita – conforme um “bom biólogo”, que “fará um número razoável de observações antes de tirar uma conclusão” (Idem, p.63). Só para não dizer que não falei que – no início do terceiro daqueles extensos excertos transcritos dos três ensaios sobre “a arte da poesia” – Ezra já dissera que “poderíamos presumivelmente aplicar ao estudo da Literatura um pouco do bom senso que costumamos aplicar ao da Física ou Biologia”, poderia falar também que está certo, consequentemente, isto que diria “il miglior fabbro” – três páginas adiante – sobre o exercício legítimo do ofício: “Não é menos verdade que só o médico competente pode formular certos diagnósticos ou discernir a enfermidade por detrás da aparência de vigor.” (Idem, p.66). Para que nenhum dos iletrados das letras continue fazendo de conta que não compreendeu, como se não lhes coubesse a tal vexatória carapuça crítica, eis a síntese de seu raciocínio preciso, de acordo com a alusão científica metafórica: “Entre pessoas que pensam e que sentem, o mau artista é desprezado, tal como desprezaríamos um médico negligente ou um cientista superficial e inexato”; “Aquela técnica ‘árida, chata, pedante’, que todo mau artista injuria”, enfim, “é apenas parte da técnica; é ritmo, cadência, e o arranjo de sons.” (Idem, pp.66, 69).

 

  1. PARA SER É PRECISO SABER: FREUD EXPLICA

Retomando o pressuposto – tão elementar – de que a leitura precede a escrita, bem como a premissa – tão inequívoca – de que é preciso ler e reler muitas páginas antes de escrever e reescrever poucas linhas, seria desnecessário dizer – tão óbvio – que isso implica que nenhuma criação estética é obra do acaso, fruto de “geração espontânea”. Seria insólito se fosse preciso voltar à Antiguidade, aliás, para negar a tese – tão insustentável – da “abiogênese”: a propósito de tal despropósito, é como se fosse mesmo preciso argumentar por que – Freud explica – “a opinião de Aristóteles de que os insetos se desenvolvem a partir de restos [do esterco, por exemplo], sustentada ainda hoje pelo povo ignorante, era um erro; e, do mesmo modo, a opinião de uma geração anterior de médicos de que a ‘tabes dorsalis’ [comprometimento da coordenação motora resultante da afecção degenerativa da medula] era consequência de excessos sexuais.” (FREUD, Sigmund. “O futuro de uma ilusão”. Porto Alegre: L&PM, 2019, p.86). Por falar no monumental mestre vienense, e para não dizer que deixei de falar de seu notável saber enciclopédico como exemplar lição aos inúmeros semi-intelectuais contemporâneos, abro um parêntese não só para sublinhar que, embora tenha cursado Medicina (o que vem bem a calhar, aliás, com a alusão poundiana ao saber médico) e se especializado em Neurologia, era ávido leitor de obras canônicas dos mais distintos gêneros discursivos e das mais diversas esferas de conhecimento. Em Filosofia, só para citar alguns exemplos, conhecia “A República” e “O Banquete”, de Platão, “Ética a Nicômaco” e “Arte Retórica”, de Aristóteles, “O Mundo como Vontade e Representação” e “Dores do Mundo”, de Schopenhauer, “Além do Bem e do Mal” e “A Genealogia da Moral”, de Nietzsche: sem falar das linhas centrais do pensamento pré-socrático de Heráclito, da metafísica de Kant, do idealismo de Hegel, do materialismo de Feuerbach, da fenomenologia de Merleau-Ponty ou do existencialismo de Sartre. Em Antropologia, leu “A origem da civilização”, de Lubbock, “A sociedade antiga”, de Morgan, “A origem da adoração de animais”, de Spencer, “Elementos de etnopsicologia”, de Wundt, “Totemismo e exogamia”, de Frazer, entre tantas outras, de tantos outros etnólogos: de cujas teses – divergentes ou complementares – sobre os costumes, as crenças e as instituições dos chamados povos “primitivos ou selvagens”, vale lembrar, resultaria o exímio ensaio “Totem e Tabu” (1913). Em Pintura, era amante sobretudo da grande arte renascentista italiana, conforme comprova a obra-prima “Leonardo da Vinci e uma lembrança” (1909): em seu sempre tão autocrítico julgamento, confessaria que fora a “única coisa verdadeiramente bonita que jamais escrevi”). Não escaparia a seu arguto olhar, por exemplo, que a enigmática ambiguidade do metonímico sorriso da “Monalisa” não só seria o mesmo de Ana e Maria (a avó e a mãe do “Filho”, respectivamente) na tela “Sant’Anna Metterza” (de Masaccio e Masolino de Panicale), mas também recorrente na maioria dos retratos que pintaria após “La Gioconda”. Não seria preciso ilustrar mais sua ilustração pictórica (tão redundante, claro, quanto o trocadilho), lembrando também que ele lembrou que não só esquecera que o autor dos afrescos sobre o “Juízo Final” na Basílica de Orvieto é Signorelli, mas também que só lhe viriam à mente – esforçando-se em vão para trazer seu nome à memória – os dos pintores Botticelli e Boltraffio: a evocação desse episódio lhe serviria para ilustrar a tese de que todo “esquecimento” é motivado pelo bloqueio “inconsciente” de conteúdos indesejados.

Poderia prosseguir, enfim, sem dizer que – como apreciador também da arte escultórica – não fugiria ao exame microscópico de seus olhos clínicos de Argos as sutis diferenças entre as representações de Moisés no Antigo Testamento e na estátua de Michelangelo: não seria preciso acrescentar, pois, que a análise do sintomático contraste entre a cólera impulsiva de um e o equilíbrio racional de outro, diagnosticado após criterioso cotejo crítico entre o retrato esculpido nas “Escrituras” e a imagem imortalizada em mármore na Igreja San Pietro in Vincoli, serviria de emblemática base à sublime síntese ensaística de “O homem Moisés e a religião monoteísta” (1939). Não poderia prosseguir, contudo, sem dizer que o Teatro (não seria mais apropriado – não por exigência gramatical – grafá-lo em inicial maiúscula) foi uma das maiores fontes de suas reflexões sobre os grandes enigmas da mente. No primeiro parágrafo do pouco conhecido artigo (mesmo entre os pares de divã) “Personagens Psicopáticos no Teatro” (1905 ou 1906), aliás, fez alusão ao conceito aristotélico de catarse (apreendido em sua leitura atenta da “Arte Poética”): “Se o objetivo de um drama teatral é despertar ‘medo e compaixão’, gerar uma ‘purificação dos afetos’, como se supõe desde Aristóteles, então podemos descrever tal intenção de modo mais minucioso, dizendo que se trata de abrir fontes de prazer ou fruição em nossa vida afetiva.” Páginas adiante, sem nomear o célebre autor que sucedeu Ésquilo, usou duas peças de Sófocles para ilustrar seu diagnóstico das afecções mentais em foco: “Mas o indivíduo conhece os sofrimentos psíquicos, essencialmente, no contexto das circunstâncias em que são adquiridos, e por isso o drama necessita de uma ação da qual se originam tais sofrimentos, e começa a introduzindo esse evento. É uma aparente exceção que algumas peças apresentem o sofrimento psíquico já estabelecido, como o ‘Ájax’ e o ‘Filoctetes’, pois no drama grego, sendo o material bastante conhecido, a cortina sempre se levanta já no meio da peça, por assim dizer.” (FREUD, Sigmund. “Obras Completas, volume 6: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria – “O Caso Dora” – e outros textos (1901-1905)”. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp.362, 365).

Vale lembrar que o amante confesso das tramas dramatúrgicas também fez coro com Eurípedes, na “escuta” da trágica voz – sem meias palavras – da consciência de culpa de “Medeia”: “Viver é ter desgostos”. Se o “princípio da realidade”, a propósito, servisse de obstáculo aos impulsos agressivos da icônica personagem – sintoma do imperioso desejo frustrado de proteção, ferida narcísica aberta pelo desprezo do “outro” -, “Thanatos” não teria triunfado sobre “Eros”. Em outros termos psicanaliticamente mais precisos, no pêndulo patêmico entre o “prazer” e o “desprazer”, em busca do equilíbrio perdido na balança da “economia libidinal”, o “instinto de conservação” teria se sobreposto à “pulsão de morte”: sob a regência da razão, controlando as forças pulsionais coléricas, pois, Medeia não mataria os filhos para se vingar de Jasão. Uma das causas do desprazer, da angústia, produzindo “O mal-estar da cultura” (1930), é a relação hostil entre os seres humanos. Para ilustrar a tese de que o império “inconsciente” exigiria a satisfação plena dos impulsos libidinais, e que o adulto se comportaria, assim, como uma criança narcísica (que aspira à impossível felicidade absoluta), o pai da psicanálise – recorrendo novamente ao mestre grego – engrossa o coro trágico de “Orestes”: “A grande felicidade não é durável entre os mortais”. Freud bebeu na mesma fonte originária das tragédias gregas, também, para formular – a partir da releitura de “Édipo Rei”, de Sófocles – um dos conceitos centrais da teoria psicanalítica: o “complexo de Édipo”. Aliás, para justificar nosso desvio digressivo, fazendo a ponte com as referências de Pound, Steiner e Bakhtin à obra de Shakespeare, encontrou outra representação do dilema edípico estrutural do psiquismo humano na peça “Hamlet”, conforme se lê, por exemplo, nestas linhas do mesmo artigo: “No neurótico, a repressão está sempre a ponto de falhar, é instável e continuamente requer novo dispêndio, que é poupado mediante o reconhecimento. Apenas nele existe essa luta que pode ser objeto do drama, mas mesmo nele o dramaturgo não produzirá somente ‘fruição’ da liberação, mas também ‘resistência’ a ela. O primeiro desses dramas modernos é ‘Hamlet’. Seu tema é como uma pessoa até então normal se torna neurótica devido à natureza especial da tarefa com que se defronta, uma pessoa na qual um impulso até então reprimido com sucesso procura se impor (…). Em ‘Hamlet’, o conflito se acha tão escondido que coube a mim percebê-lo primeiramente (…). A tarefa do dramaturgo seria nos colocar na mesma doença, o que sucede melhor quando seguimos tal desenvolvimento junto com o doente. Isso será particularmente necessário ali onde a repressão não existe já em nós, ou seja, tem de ser primeiramente produzida, o que representa um passo além de ‘Hamlet’ no emprego da neurose no palco.” (Idem, p.367-368). Para não estender mais a importância do repertório dramatúrgico na construção de seu revolucionário modelo científico, nem falarei de suas leituras de outros “deuses” da história do Teatro, como Molière e Ibsen, para citar só mais dois.

Considerando que o objetivo deste artigo é a problematização da grave crise cultural contemporânea, que se reflete na baixa qualidade das obras literárias em geral (e do precário repertório dos leitores), particularmente no caso da arte poética, não poderia deixar de falar da relevância desses gêneros estéticos na formação intelectual do patriarca da ciência psicanalítica. Vêm bem a calhar, a propósito, estas palavras da pesquisadora Betty Bernardo Fuks na didática apresentação (intitulada “O legado de Freud”) de “O homem Moisés e a religião monoteísta”: “Freud levou às últimas consequências a descoberta do inconsciente, o que lhe permitiu construir um complexo instrumental teórico sobre a cultura (…). Cumpre, então, alertar que ‘Moisés’ não é apenas um texto antropológico, sociológico, filosófico ou psicológico. Trata-se do testamento de Freud, escrito às vésperas de sua morte às futuras gerações de analistas. Num primeiro momento, conforme as cartas endereçadas a Arnold Zweig, privilegiado interlocutor freudiano durante sua escrita testamentária, a obra recebeu um título bastante ‘sui generis’, ‘O homem Moisés, um romance histórico’. A ideia não chega a causar espanto, levando-se em consideração que Freud muitas vezes se apresentava como um cientista sob a jurisdição de poetas e escritores, aqueles que ‘conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas que nossa sabedoria escolar ainda não pode imaginar’ (…). O que se observa é que Freud continua utilizando o estilo literário-histórico (…).” (FREUD, Sigmund. “O homem Moisés e a religião monoteísta”. Porto Alegre: L&PM, 2018, p.23-24). Prova de sua enciclopédica erudição – não é demais registrar, também nos campos teológico e linguístico – são os comentários sobre a “fundamentação etimológica” do nome do fundador do judaísmo, sublinhando que é “etimologia popular”, na verdade, o que diz o capítulo 2 do “Êxodo”, para defender a polêmica hipótese de que a origem onomástica “provém do vocabulário egípcio” (Idem, p.36). Depois de recorrer a seus conhecimentos historiográficos, apresentando como argumento informações de Heródoto (sob o epíteto de “pai da história”), enfim, citou o “poeta judeu” (o adjetivo é do autor) Heinrich Heine: o mesmo mestre romântico alemão que citara – bem como a Goethe e Schiller – nas páginas de “O futuro de uma ilusão” (1927) e de “O mal-estar na cultura” (nomes também já evocados – vale lembrar – naqueles excertos de Pound).

Na imensa galeria de escritores lidos pelo ilustre intelectual vienense, têm vez as vozes dos franceses Voltaire e Stendhal, dos russos Tolstói e Dostoiévski, do tcheco Kafka e do espanhol Cervantes, além – evidentemente, entre tantos outros autores de seu “Paideuma” (termo poundiano) – do primevo bardo grego Homero (cujo nome também foi destacado – convém recordar – por Pound e Steiner). No ensaio “Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte” (1915), ilustrou o desejo de imortalidade com versos do “Canto XI” da “Odisseia” (focalizando o encontro de Ulisses com Aquiles no Hades – “Reino dos Mortos”), de que transcrevo apenas estes: “(…) ‘Não tentes reconciliar-me com a morte, ó glorioso Ulisses./ Eu preferiria estar na terra como servo de outro, até de homem sem terra e sem grande sustento,/ do que reinar aqui sobre todos os mortos’.” Logo após, evocou esta “vigorosa e amarga paródia” de Heine: “O menor vivente filisteu/ Numa aldeia à beira do Neckar é mais feliz/ do que eu, o Pélida, o herói defunto,/ O príncipe-espectro do ínfero mundo.” (FREUD, Sigmund. “Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916)”. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.238-239). Só para corroborar seu profundo conhecimento da literatura clássica (da mitologia e da dramaturgia também, como já comentamos), destaco este trecho de seu último ensaio: “No tempo em que se preparava entre os judeus o retorno da religião de Moisés, o povo grego se achava na posse de um patrimônio rico de lendas genealógicas e mitos heroicos. No século IX ou VIII a.C., acredita-se, surgiram as duas epopeias homéricas, que tomaram seu material desse grupo de lendas. Com nossas compreensões psicológicas atuais, poderíamos (…) ter levantado esta pergunta: de onde os gregos tomaram todo o material que Homero e os grandes dramaturgos áticos elaboraram em suas obras-primas? (…) As epopeias nacionais de outros povos, como os alemães, os indianos e os finlandeses, também se tornaram conhecidas. Cabe aos historiadores da literatura investigar se seu surgimento permite supor as mesmas condições que no caso dos gregos (…)”. Acrescento ainda – para recordar por que acentuei a necessidade de que nossos escritores sejam, sobretudo, leitores das obras canônicas – estes excertos certeiros: “Gerou admiração o fato de a epopeia como gênero artístico ter se extinguido em épocas posteriores. Talvez a explicação se encontre no fato de a condição para ela não mais ter se produzido (…). As maiores façanhas de nossos dias não foram capazes de inspirar uma epopeia, mas já Alexandre, o Grande, tinha direito à queixa de que não encontraria um Homero (…). Quase se poderia dizer que quanto mais se tornou indefinida a tradição tanto mais utilizável ela se torna para o poeta.” (FREUD, Sigmund. “O homem Moisés e a religião monoteísta”. Porto Alegre: L&PM, 2018, p.117-119). Para concluir o já tão extenso parágrafo, justificando a pertinência do desvio digressivo com mais uma providencial ponte entre os autores citados em comum, Freud também escreveu o prefácio a um aclamado estudo da psicanalista Marie Bonaparte sobre Edgar Allan Poe.

Para não dizer que Poe, Pound, Bakhtin e Steiner estariam sendo muito rigorosos, exigindo muitas leituras – além das especificamente literárias, obviamente – como requisito obrigatório para escrever, para ser “artista sério” em poesia, não poderia deixar de comparar esses pressupostos com os da formação básica – condição “sine qua non” – para ser analista, conforme enfaticamente Freud explicou. Aliás, para não dizer que estaria sendo muito exigente também, foi justamente num texto (cujo título, sintomaticamente, é “A questão da análise leiga”) em que ele discordara da obrigatoriedade de ser diplomado em Medicina para exercer o ofício psicanalítico. O que não implica que estaria implícito, evidentemente (o paradoxo é irônico, veja bem) que não pudesse ser médico, mas que também este – sem poder se valer do título, pois, para se autorizar – só poderia “praticar a análise” legitimado pela efetiva aquisição dos “conhecimentos necessários”. Em sua perspectiva, se é fato que alguém – mesmo sem o saber médico (a repetição, enfática, é didaticamente prudente) – “não é mais um leigo no campo da psicanálise”, é porque aprendeu, em longo e rigoroso processo de formação (tão específica quanto abrangente) a “arte” de interpretar o discurso do outro (entre reflexos e refrações especulares de discursos – de – “outros”). Indo direto ao ponto, transcrevo a seguir o argumento de Freud em defesa da especificidade epistemológica da psicanálise (cujo modelo teórico é resultante da interface – conforme sempre insistiu – de diversos campos de conhecimento), deixando bem claro, pois, o que é preciso saber, de fato, para ser analista: “Se – o que pode parecer fantástico hoje em dia – alguém tivesse de fundar uma faculdade de psicanálise, nesta teria de ser ensinado muito mais do que já é lecionado pela escola de medicina: juntamente com a psicologia profunda, que continua sempre como a principal disciplina, haveria uma introdução à biologia, o máximo possível de ciência da vida sexual e familiarização com a sintomatologia da psiquiatria. Por outro lado, a instrução analítica abrangeria ramos de conhecimentos distantes da medicina e que o médico não encontra em sua clínica: a história da civilização, a mitologia, a psicologia da religião e a ciência da literatura” (MAJOR, René e TALAGRAND, Chantal. “Freud”. Porto Alegre: L&PM, 2007, p.210-211).

Não bastasse, todavia, já ter sido necessário explicar o “óbvio ululante” (na precisa expressão do sarcástico Nelson Rodrigues), estando bem certo do indigesto diagnóstico da grave “estupidez orgânica” (na síntese, ainda mais cáustica, do impaciente Pound), haveria o mestre vienense de fazer ainda a paráfrase didática, repetindo ao tão beócio quanto prepotente público oponente – com impávida paciência pedagógica – a tão elementar premissa do “corte epistêmico” (diria Louis Althusser) que singulariza e institucionaliza, pois, o saber psicanalítico. Em outras palavras, enfim, eis os mesmos tão primários – pré-requisitos, logicamente, imprescindíveis à habilitação profissional – princípios constitutivos desse campo de conhecimento (a propósito, só seria preciso pedir perdão pelo pleonasmo caso não fosse preciso repetir, como se fosse novidade, o evidente – evidentemente, se também não usassem jaleco os asnos; ou, ao menos, não fossem tantos os quadrúpedes vestidos de branco): “Um esquema de formação para analistas ainda tem de ser criado. Deve ele abranger elementos das ciências mentais, da psicologia, da história e do estudo da evolução. É fácil fazer face a essa sugestão replicando que as escolas analíticas dessa natureza não existem, e que eu estou simplesmente estabelecendo um ideal. Um ideal, sem dúvida. Mas um ideal que pode e deve ser concretizado. E em nossos institutos de formação, apesar de todas as suas insuficiências próprias de seus verdes anos, essa concretização já teve início.” (MAJOR, René e TALAGRAND, Chantal. “Freud”. Porto Alegre: L&PM, 2007, p.212). Vem bem a calhar o recurso à reiteração do conteúdo sob outra forma de expressão, aliás, para que fique mais inequívoco ainda (ou, supondo que já esteja, se não tão nítido aos que têm “olhos de ver” e não veem” – diria o enxadrista barroco Vieira -, ao menos menos obscuro, claro) o teor da contestação freudiana. Para ser analista, seria inadmissível ignorar, pois, que a singularidade da ciência psicanalítica (isso é tão elementar que constrange ter de reiterar) é resultante de sua complexa natureza interdisciplinar, conjugando o conhecimento particular da constituição do aparelho psíquico com conceitos herdados de outras ciências biológicas e humanas. Por isso, sem meias palavras, Freud acusou de “charlatão” qualquer profissional que “efetua um tratamento sem possuir o conhecimento e a capacidade necessários para tanto”. O alvo, no contexto, era aquele que supunha ser suficiente ter “um diploma oficial que prove que ele é médico”: não à toa, conforme sentenciou com a necessária dureza, “os médicos formam um contingente preponderante de charlatões na análise”; “eles com frequência praticam o tratamento analítico sem o terem aprendido e sem compreendê-lo.” (MAJOR, René e TALAGRAND, Chantal. “Freud”. Porto Alegre: L&PM, 2007, p.208). Do mesmo modo, obviamente, que também deveria ser denunciada como “charlatanismo” a prática da medicina por um leigo: afinal, evocando a conclusão poundiana (a partir das mesmas premissas necessárias legitimantes/autorizantes), “não é menos verdade que só um médico (…) pode formular diagnósticos e discernir a enfermidade” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.66).

A propósito, não poderia deixar de dizer – não me perdoaria se perdesse a deixa – que o arguto “antena da raça” ataria as duas pontas entre os saberes, no exímio ensaio intitulado “Ulisses”.  Indo direto ao ponto, nesse indignado protesto contra as abjetas objeções “oficiais” à publicação da obra-prima de Joyce nos Estados Unidos, ao destacar que fora liberado o célebre monólogo interior de “Molly”, fez a sintomática ressalva: “Suas meditações finais não são censuradas (reverências à psicanálise fazem-se necessárias nesta altura). O ‘censor’ no sentido freudiano foi removido”. Algumas linhas depois, citou estrategicamente outra voz engrossando o coro dos descontentes (em que se ouve também – tão nítido, não passaria despercebido – o grito crítico do “filósofo da composição”): “Agora que o romance se desenvolveu, agora que se tornou a grande forma literária (…) a investigação social, para análise e pesquisa psicológica, exigindo estudos e impondo a seu criador os encargos da ciência (…), deve ou não o romancista escrever com a precisão e, por conseguinte, com a liberdade do sábio, do historiador, do físico?”. Pouco adiante, com a irônica impiedade crítica e a típica precisão cirúrgica, fez este c(l)ínico acréscimo ao diagnóstico da ignorância crônica: “A análise de fezes, no hospital da esquina, não é censurada. Ninguém, salvo um presbiteriano, contestaria a utilidade de sua exatidão. Uma grande obra-prima literária é feita para inteligências tão sérias quanto as que se consagram à ciência da medicina”. Estendendo  a outros campos de conhecimento o percurso analógico (não porque a “exaustividade” seja premissa metodológica necessária para a validação de hipóteses científicas, o que não era – é claro – o caso; mas porque o nível intelectual do interlocutor era “limítrofe”), Pound concluiu a sequência argumentativa – não seria essa ainda, vale dizer, a réplica derradeira aos censores néscios – nos seguintes termos: “O antropólogo e o sociólogo têm direito a documentos igualmente exatos, a relatórios e generalizações igualmente [precisos], que raramente obtêm, considerando-se a complexidade do assunto, e as superstições correntes.” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.137-138).

 

  1. A FORMAÇÃO DO LEITOR PRECEDE A DO ESCRITOR: ESCREVEU, NÃO LEU, O PAU COMEU

Dando continuidade à discussão sobre os problemas estéticos contemporâneos (razão central deste longo ensaio), recordo – sem entrar no mérito específico para não perder o foco – que publiquei três réplicas a uma infausta resenha de um ilustre acadêmico e crítico literário (com espaço na grande imprensa) sobre um livro de poesia (de um outro crítico), apontando exatamente o “charlatanismo” do arrogante autor. Só para exemplificar, em linhas bem gerais, apontei-lhe uma série de equívocos primários, desde o descumprimento dos requisitos formais que caracterizam o gênero discursivo (a resenha parecia uma “coluna social”, elogiando o poeta sem comentar um poema sequer) até graves erros conceituais ao ironizar o materialismo histórico e dialético (provas de sua vexatória ignorância na teoria marxista), sem falar dos deslizes gramaticais e das falhas de estrutura textual (problemas de “coesão” e “coerência”). O que interessa ao citar esse episódio é que serve de ilustração à indigência intelectual também na esfera da crítica literária: o professor não se dignou a responder às minhas objeções, traço sintomático do esvaziamento do debate sobre a cultura, em geral, e a literatura, em particular. É bem apropriada ao caso, aliás, esta observação sarcástica de Pound, pouco antes de concluir seu protesto contra a censura à obra de Joyce no moralista e desinformado circuito editorial norte-americano: “Não estou apresentando este fato como um calmante para os estetas que pretendem sejam todos os autores fundamentalmente inúteis. Nós somos governados por palavras, as leis são gravadas em palavras, e a literatura é o único meio de manter vivas e precisas essas palavras. O espécime de fungo apresentado (…) mostra o que acontece à linguagem quando cai na mão de especialistas analfabetos.” (Idem, p.139).

Posto isso, retomo a referência de Freud aos “institutos de formação”, criados exatamente com a finalidade de tornar todo aspirante “qualificado e legitimado a exercer seu direito à psicanálise”. Convém deixar bem claro – prevenindo muito prováveis inferências equivocadas dos detratores de plantão – que não estou me servindo da alusão como argumento em defesa de “institutos de formação” de escritores. Seria absurdo se o propusesse como condição obrigatória para produzir, publicar ou criticar uma obra: bastaria dizer, desautorizando-me, que nenhum romancista, contista ou poeta, por exemplo, jamais precisou de diploma para se qualificar e legitimar-se como autor ou crítico literário. Minha intenção, muito pelo contrário, é usar isso como gancho analógico para problematizar uma dinâmica muito mais sutil: a proliferação dos tais “cursos de escrita criativa”. A sutileza a que me refiro é que, ao mesmo tempo que não implicam obrigatoriedade, acabam também criando – o trocadilho vem bem a calhar – a ilusão – ainda que não intencionalmente – de que seria necessário fazê-los para se tornar escritor. Por prudência, devo chamar a atenção para o “também”, precavendo-me da acusação de que teria dito que os cursos é que criariam a necessidade: se não houvesse qualquer demanda, evidentemente, não haveria oferta – ou seria uma arriscada aposta, partindo do zero – de curso. Não custa (não o curso, que não é gratuito) repetir o que bem disse Pound sobre isso: “Obviamente, não é fácil ser um grande poeta. Se fosse, muita gente mais o teria sido. Em período algum da História esteve o mundo livre de pessoas que vagamente desejaram tornar-se grandes poetas, e não poucos empenharam-se conscienciosamente em consegui-lo.” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.66).

A existência de um curso, não há dúvida, parte já de uma demanda: havendo mercado, para fazer jus à máxima de que “a propaganda é a alma do negócio”, é que eles viram moda (o milagre da multiplicação dos cursos, na verdade, é obra do astuto “deus do marketing”). Para ilustrar o oportunismo, justificando por que não errei ao dizer que também criam a “ilusão” da necessidade e da satisfação do desejo de se tornar escritor, lembro que, em 2021, sem citar o nome de um dos mais prolíficos “poetas-professores”, publiquei uma série de posts tratando-o pelo irônico epíteto de “Le Little Petit Poucet Poète”. Só para se ter uma pequena dimensão (não perderia, claro, o trocadilho) do problema (“bem abaixo da crítica”, diria Marx, reforçando o trocadilho), o notável “bardocente” chegou ao cúmulo de anunciar um de seus “cursos” – muito esperto, ele é bem ativo, claro, nas redes sociais – com o atraente chamariz de publicação dos “melhores poemas” dos matriculados numa conhecida revista de cultura e literatura. Supondo que não fosse já condenável, sob a perspectiva ética, tentar atrair os candidatos com tal expediente, a promessa “premial” jamais poderia ser feita, também, do ponto de vista estético: afinal, que garantia poderia haver de um saldo “poético” qualitativo de uma turma – considerando, ao menos, que ela já existisse – cujas habilidades literárias só seria possível aferir, logicamente, depois de uma análise rigorosa (a partir de critérios de avaliação bem definidos) das efetivas produções textuais?

É certo que minhas ressalvas aos tais “cursos de escrita criativa”, devo esclarecer, foram despertadas, de cara, por razões de ordem quantitativa: não haveria de achar “normal”, certamente, o fato de que o número de cursos e “formandos” virem se multiplicando em progressão geométrica; se esse fenômeno fosse mera obra do acaso, ou não fosse danoso também, não justificaria, pois, a necessidade de um diagnóstico de sua causalidade. A propósito, não é demais trazer à memória, como endosso autorizado, que Nietzsche (em seu bombástico “Crepúsculo dos Ídolos”) já havia apontado tanto a “frequentação excessiva” (no nosso caso, de todo tipo de curso preparatório de escritores), que “visa tornar um grande número [de alunos] aproveitável”, quanto “a pressa indecorosa” de se formar (“como se alguma coisa se perdesse se o jovem não estivesse ‘pronto’ aos 23 anos”), como trágicos sintomas da decadência educacional (observação não só válida, vale dizer, àquele contexto específico da Alemanha em fins do século XIX). Como decorrência, então, meus questionamentos são também de ordem qualitativa: seja porque não basta ser escritor – não obstante também possa sê-lo – para se autorizar professor, seja pela ausência de um programa com os objetivos das aulas dispostos em progressão didática, para atingir um resultado claramente definido. É exatamente o caso, aliás, daquele tal curso do tal ilustre “Le Little Petit Poucet Poète”, signo metonímico (“metomínimo”, só para não perder o sintomático trocadilho) desse surto “pedagógico” epidêmico. Evocando novamente o impiedoso pensador alemão (com quem aprendo “como se filosofa com o martelo”), seria imprescindível repetir – para quem sabe assim cair em si – esta lição ao grandioso “Petit” (para seus pares professorais também não olvidarem que no princípio, afinal, são os princípios): “O sistema inteiro (…) perdeu o principal: o fim, bem como os meios para alcançar o fim. Esqueceu-se de que a educação, a própria ‘formação’, é o fim (…), que para se alcançar esse fim se necessita de ‘educadores’ (…). São necessários educadores que sejam ‘eles próprios educados’, espíritos superiores (…), culturas amadurecidas.” (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. “Crepúsculo dos Ídolos”. Porto Alegre: L&PM, 2019, p.70).

Aliás, não haveria de causar estranhamento ao leitor, a tal altura desta odisseia crítica, que eu faça minhas estas providenciais palavras do mais poético dos filósofos: “Para não renegar minha índole, que é ‘afirmativa’ e apenas indireta, involuntariamente, tem relação com o protesto e a crítica, apresento de imediato as três tarefas para as quais se precisa de educadores. Deve-se aprender a ver, deve-se aprender a pensar, deve-se aprender a falar e a escrever: nos três casos, a meta é uma cultura nobre.” (Idem, p.72). Não só me renova o ânimo iconoclástico ler essas linhas, que se atam tão solidamente às minhas, mas que orientam também o traçado argumentativo, resgatando os pressupostos metodológicos que justificam as minhas sérias objeções aos “cursos de escrita criativa”. Não seria demais alertar, após tantos desvios digressivos, que estou me reportando ao princípio elementar de que a formação do leitor, logicamente, sempre precede a do escritor: conforme já repeti de mil e uma maneiras, sempre atento ao imperativo didático, nada se cria a partir do nada (já dissera Lavoisier, lembra?); não é uma particularidade da criação artística, pois, que não seja fruto da “abiogênese”. Sendo impossível a “geração espontânea” de obras literárias, logo, não poderia haver outra maneira de aprender a escrever senão lendo e relendo muito: não só, obviamente, muita literatura, mas de tudo um pouco de cultura geral também (antes, aprender a ver e a pensar; só então, a escrever). Esforçando-me para ser ainda mais claro, a premissa metodológica em que se fundamenta minha crítica, basicamente, é o absurdo de haver curso de escrita – mesmo que estejam contemplados os requisitos obrigatórios de qualificação do professor e de elaboração programática – sem que este seja precedido de um curso de leitura (obedecendo, é certo, às mesmas exigências). Indo ao ponto crítico da questão, enfim, faço minhas (com o perdão desta e da pregressa presunção) as providenciais palavras de George Steiner:

“Carrego comigo um sonho de ‘escolas de leitura criativa’ (…). Precisaríamos aprender a decompor as frases em seus elementos constituintes e analisar gramaticalmente nosso texto, pois, como Roman Jakobson já nos ensinou, não terá acesso à gramática da poesia, aos nervos e aos tendões do poema, aquele que não enxergar a poesia da gramática (…). Uma turma de ‘leitura criativa’ mover-se-ia passo a passo. Começaria pela quase dislexia dos hábitos atuais de leitura. Teria a ambição de atingir o nível de competência bem-informada que as pessoas eruditas da Europa e dos Estados Unidos possuíam, digamos, no final do século dezenove.” (STEINER, George. “Nenhuma paixão desperdiçada”. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.30-31).

Abro um breve parêntese para dizer que, crendo muito pouco provável (para não dizer, mais que improvável, impossível, parecendo confiante demais) que as paráfrases pedagógicas pudessem provocar, nos leitores experientes, a impressão de subestimá-los; a ausência de legendas didáticas, em contrapartida, certamente provocaria, nos não poucos não muito perspicazes, a muito desagrável impressão de – soando não pouco prepotente – desprezá-los.  Não só não custa, mas não seria nem um pouco improvável que seria muito custoso também, pois, não dizer que o que está dito na síntese de Steiner é exatamente o que eu disse. Ou seja, em primeiro lugar, que as “escolas de leitura criativa” são imprescindíveis como etapa preparatória para os cursos preparatórios de “escribas criativos” (parafraseando Barthes, afinal, “escrevente” e “escritor” – ou reprodutores e produtores – são categorias) diferentes na hierarquia das letras). Em segundo lugar, para aprender a ler, é fundamental conhecer a gramática da língua (dominar os instrumentos de produção de sentidos, como pressuposto para interpretá-los) e a da língua da poesia. Devo fazer a devida ressalva, esclarecendo que não quis dizer (muitos parágrafos atrás, pouco após os iniciais) que é preciso saber a “nomenclatura oficial” dos tipos de versos (segundo o número de sílabas poéticas), de estrofes (conforme o número de versos), de rimas (de acordo com a ordem dos sons similares nas estrofes), de recursos métricos (de elisão ou de fusão de vogais, de separação de ditongos ou de união de hiatos), etc. O que não quer dizer, devo fazer a ressalva também, que – embora ignorando seus nomes técnicos – não seja preciso identificar os instrumentos de fabricação dos objetos estéticos. Em terceiro lugar, então, depois de dizer o que é preciso saber para saber ler, Steiner diz o que é preciso fazer para fazer o outro aprender a ler: é aí que começa, finalmente, o trabalho hercúleo do professor, programando – com a cautelosa paciência e o devido rigor didático – o “passo a passo” do processo de formação do leitor competente.

 

  1. É PRECISO SABER LER PARA PODER ESCREVER

Como prefiro sempre o excesso – por via das dúvidas (as minhas acerca das certezas dos outros) – à falta de informações, não consideraria desnecessário – desconsiderando, portanto, a régia regra de Bilac “A um poeta” (sintomático título) – “lembrar os andaimes do edifício”, mostrando as tramas da construção: ou seja, não seria desnecessária a metalinguagem “para o público dar uma olhadela” – sob a perspectiva pedagógica, pois, de Poe – “por trás dos bastidores”. A fim de traduzir a noção de lenta duração nos “anos de aprendizagem” (aspas para Goethe), escolhi o excerto acima de Steiner, focalizando o movimento contínuo desacelerado “passo a passo”, começando “pela quase dislexia dos hábitos atuais de leitura”; também trechos de ensaios de Pound de que destaco agora as sínteses de que “a vida é tão curta e tão demorado o ofício de aprender” (evocando o célebre aforismo de Hipócrates popularizado por Sêneca – “Vita brevis, ars longa”), “o domínio de qualquer arte é trabalho para uma vida inteira”, “até haver a compreensão de que a poesia é uma arte e não um passatempo”, “para conhecer alguma coisa sobre a eficiência relativa de diversas obras, devemos ter o conhecimento do máximo já alcançado por vários autores”; por fim, aquela crítica nietzscheana sublinhando que “por toda parte reina uma pressa indecorosa”. Aproveitando o ensejo, convém acrescentar a esse diálogo interdiscursivo a sequência da lição do filósofo: “Uma aplicação de ter aprendido a ver: na condição de ‘aprendiz’, a pessoa terá, sobretudo, se tornado lenta, desconfiada, resistente. Será com uma calma hostil, de início, que deixará o estranho, o ‘novo’ de qualquer espécie, se aproximar – ela recolherá sua mão. Manter todas as portas abertas, ficar deitado servilmente de bruços diante de qualquer pequeno fato, estar sempre pronto a se colocar, a se lançar, em outras pessoas e outras coisas; em resumo, a famosa ‘objetividade’ moderna é mau gosto, é ‘não nobre’ por excelência. Aprender a pensar: não se tem mais noção disso em nossas escolas (…). Leia-se (…): nem sequer a mais remota lembrança de que para pensar se necessita de uma técnica, de um plano de ensino, de uma vontade de alcançar a mestria – de que pensar deve ser aprendido como se aprende a dançar, como uma espécie de dança (…).” (Idem, p.73).

A propósito dessa analogia, certamente terá vindo à memória do leitor erudito que Pound também recorreu a ela, na icônica definição da “logopeia” (uma das três “espécies de poesia”, em sua classificação – as outras seriam a “fanopeia” e a “melopeia”) como “a dança do intelecto entre as palavras”. Sem entrar no mérito de sua axiologia ternária da arte poética, vem bem a calhar com a nossa defesa da necessidade de um “curso de leitura”, como antídoto contra a falta de repertório cultural (que se reflete na baixa qualidade estética da produção literária contemporânea, bem como na resistência dos escritores ao debate), outro célebre termo do léxico poundiano. Refiro-me a “paideuma”, denominação que condensa o conceito de “ordenação do conhecimento”, de conjunto de obras canônicas, de seleção de autores fundamentais: como Homero, Safo, Catulo, Arnaut Daniel, Dante, Villon, John Donne, Goethe, Gautier, etc. Empreguei esse termo, aliás, no início de um dos parágrafos em que me servi de Freud como exemplo metonímico de saber enciclopédico, citando inclusive alguns desses nomes na “imensa galeria de escritores lidos pelo ilustre intelectual vienense”. O que vem aqui ao caso, enfim, é que compartilhei no Facebook exatamente esses parágrafos, para ter uma pequena amostragem da recepção deste artigo, recebendo então a seguinte crítica (que não me causaria surpresa, vale dizer, se não partisse justamente de um poeta merecedor de minha admiração, cujo nome devo omitir para preservá-lo): “Quem neste mundo, incluindo eruditos e polímatas, poderá dizer que não é um ignorante em muitos assuntos e áreas de conhecimento? A formação intelectual de cada um é diferente da dos outros. Meu paideuma não é o seu paideuma”. Não iria transcrever também minha resposta, obviamente, se não tivesse relação direta com o objeto em debate: “Caro amigo, não importa que os nossos sejam diferentes. O fato é que ambos temos ‘paideuma’. É disso que se trata. Você é um raro interlocutor ilustrado, um dos não muitos poetas que conhecem o ofício, com quem tenho sempre o prazer de trocar, de aprender. O alvo são os amadores, os tantos com tanta pressa de publicar e se credenciar que, evidentemente, não haveriam de ter tempo sequer para as leituras mais básicas”. Não poderia esperar dele, selando nosso acordo de princípios, senão este lúcido comentário: “Reconheço que há muita obra medíocre entre poetas, que desconhecem o fato elementar de que poesia é arte, e que arte é técnica, que se aprende com os mestres”.

Repensando a questão do tal “cânone” literário, estimulado por esse tão precioso diálogo com o amigo poeta, para tentar explicar melhor o que haveria de ser de fato necessário em uma “escola de leitura criativa” – de acordo com “a ambição [de Steiner] de atingir o nível de competência bem-informada que as pessoas eruditas da Europa e dos Estados Unidos possuíam, digamos, no final do século dezenove” -, passo a palavra a quem cunhou o termo “paideuma” (afinal, foi exatamente este a gênese de nossa breve polêmica no Facebook):

“Em minha universidade, encontrei vários homens interessados (ou desinteressados) por suas matérias, mas creio que nenhum com uma visão global da literatura ou com alguma ideia da relação entre a parte que ele próprio ensinava e outra parte qualquer (…). Os que tinham alguma aptidão natural para compreender os seus autores e transmitir uma sensação geral de bem-estar em presença de obras-primas literárias permaneceram obscuramente em seus postos menos elevados (…). Para tranquilizar o leitor menos sofisticado, permitam-me dizer desde logo que não desejo perturbá-lo obrigando-o a ler mais livros, mas sim permitir que leia menos com melhores resultados. (Estou disposto a discutir esse ponto, em particular, com o comércio de livros.) Têm-me acusado de pretender obrigar as pessoas a ler todos os clássicos; o que não é verdade. Têm-me acusado de desejar propor um ‘substituto portátil do Museu Britânico’, o que eu admitiria instantaneamente se fosse possível. Não é…

(…) O que se pretende é um conhecimento em termos mais definidos. Erra quem imaginar que a leitura extensiva produzirá automaticamente esse conhecimento ou compreensão (…). Um indivíduo poderá aprender mais música trabalhando uma fuga de Bach até conseguir decompô-la e recompô-la do que tocando dezenas de álbuns heterogêneos. Pode-se dizer que por vinte e sete anos meditei sobre este assunto em particular, e li ou reli grande número de livros e que, embora o assunto nunca esteja inteiramente fora de meu espírito, ainda não sei nem metade do que há para saber [com relação apenas à melopeia]. Existem, por outro lado, uns poucos livros que ainda conservo sobre a minha mesa e muitos outros que jamais voltarei a abrir. Mas são muito poucos os livros que um homem necessita ler para ‘conhecer o seu rumo’, para formar uma opinião correta de qualquer texto literário que lhe possa surgir à frente. A lista, na verdade, é tão curta que é de espantar que as pessoas, os escritores profissionais em particular, consistam em deixá-los ignorados e continuem suspensos no caos a emitir as opiniões mais imbecis.” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, pp.26-27, 39-40).

 

  1. COM QUANTAS LEITURAS SE FAZ UM ESCRITOR?

Considerando que, nesta espiral de vozes intertextuais, entre tantos autores citados, ninguém mereceu espaço maior que Pound, ninguém melhor do que ele, na qualidade de grande leitor e poeta, como a mais perfeita tradução de nossa linha argumentativa básica – afinal, não pode haver escrita de qualidade sem leitura de qualidade. Partindo do excerto acima, o crítico, ponderando sobre a relação entre quantidade e qualidade, no caso do “leitor não sofisticado”, conclui corretamente que é melhor ler pouco, mas bem, do que ler muito sem compreender o que se lê: ou seja, fazendo uma leitura rasa, superficial, sem se ater às questões centrais do texto. Um dos apontamentos que fizemos – retomando-o em vários parágrafos – foi a relação inversamente proporcional entre a quantidade e a qualidade das obras literárias contemporâneas (particularmente as de poesia), sendo uma das causas do fenômeno o baixíssimo repertório cultural dos escritores, que é reflexo, por sua vez, da pouca leitura. A conclusão, pois, é que se deveria escrever muito menos e ler muito mais, com muito mais qualidade. No caso específico do “leitor menos sofisticado”, repetimos que o raciocínio de Pound está certíssimo: menos é mais. Entretanto, uma vez adquirindo competência interpretativa, é preciso ler sempre mais: sob pena de que jamais nenhum deles venha a ter “ouvidos de ouvir” (citando novamente o Padre Vieira), por exemplo, “Os Cantos” herméticos do próprio “miglior fabbro”. Indo direto ao ponto crítico, se é verdade que, entre esse tipo de leitor “semiletrado” tão prototípico não são tão ínfimos assim os “candidatos” a escritor, ou ainda pior – ainda que muito poucos -, os que, se sentindo autorizados, não só escrevem prosa e/ou poesia, mas também se atrevem a publicar suas bizarrices. Num e noutro caso, o fato é que a imensa maioria permanecerá na trágica surdez da ignorância se não for, se não devidamente ainda (do contrário, na “quase dislexia dos hábitos atuais de leitura”, quem haveria ainda de não crer em milagre?), ao menos – “passo a passo” (conforme Steiner) – minimamente educada. Como não creio em graça celestial, nem haveria de ter vocação de evangelista – sobretudo a esta altura já tão “abaixo de toda crítica” – para “salvar almas” do breu dantesco da “divina comédia” da estupidez humana, o que estou querendo dizer é que ninguém melhor do que Pound para nos servir de Virgílio, para provar que sem mapa de leitura não se escapa – nem por milagre – deste inferno literário abaixo da linha do Equador (“abaixo do nível da crítica”, lembrando mais uma vez Marx). Quem crê sem ver, pois, que veja estes versos do poeta – só para começo de conversa – e me faça crer que se possa mesmo passar pelo “curso de escrita” e chegar fácil ao “paraíso criativo” da poesia sem que seja mesmo preciso atravessar – “nel mezzo del cammin” – os árduos “círculos” de muitas leituras:

“E pois com a nau no mar,

Assestamos a quilha contra as vagas

E frente ao mar divino içamos vela

No mastro sobre aquela nave escura,

Levamos as ovelhas a bordo e

Nossos corpos também no pranto aflito.

E ventos vindo pela popa nos

Impeliam adiante, velas cheias,

Por artifício de Circe

(…)

Assim no barco assentados

Cana do leme sacudido em vento

Então com vela tensa, pelo mar

Fomos até o término do dia.

Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano

Chegamos aos confins das águas mais profundas.

(…)

Por um denso nevoeiro, inacessível

Ao cintilar dos raios de sol, nem a

O luzir das estrelas estendido,

Nem quando torna o olhar do firmamento

Noite, a mais negra, sobre os homens fúnebres.

Refluindo o mar, chegamos ao local

Premeditado por Circe.

(…)

E então Tirésias tebano,

Levando o seu bastão de ouro, viu-me

E falou primeiro:

‘Uma segunda vez? Por quê? homem de maus fados,

Face aos mortos sem sol e este lugar sem gáudio?

Além do fosso! Eu vou sorver o sangue

Para profecia.’

E eu retrocedi,

E ele, vigor sanguíneo: ‘Odysseus

Deverá retornar por negros mares

Através dos rancores de Netuno,

Todos teus companheiros perderás.’

Depois veio Anticleia (…).” (POUND, Ezra. “Os Cantos” – Canto I. Tradução de José Lino Grünewald. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, pp. 21-23).

 

“Cesse tudo, Robert Browning,

somente pode haver um único ‘Sordello’.

Mas Sordello, e o meu Sordello?

Lo Sordels si fo di Mantovana.

So-shu sacudiu o mar.

Saltos de foca nos flocos espumados da ressaca

(…)

Sob o capuz de peles pretas, sinuosa filha do oceano;

E a onda corre pelo rego da praia:

(…)

E o pobre Homero cego, cego, como um morcego,

Ouvir, ouvir o agitar do mar,

Murmúrios, vozes de homens velhos:

‘(…) De novo entre as faces gregas,

Para que o mal não chegue a nós,

Mal e mal adiante;

E uma praga rogada sobre nossos filhos;

Move-se, (…)

retornar às vozes gregas’.

E pelos arredores da praia (…).

Sereno fulvo sol areia estirada,

(…)

Nave no meio do redemoinho,

(…)

Água cortante sob a quilha,

Ondas golpeando a popa,

águas escorrendo pela proa,

(…)

Rumor de bainhas etéreas, áridas formas no ‘aether’.

E a nau qual uma quilha no estaleiro (…).”

(Idem, Canto II, p.24-26).

Para não parecer que estou jogando os pobres poetas impúberes, impiedosamente, na brasa literária, não há problema se pedirem água aos tão experientes “bardocentes”. A propósito, antes de “perturbardos”, vou lhes dar de quebra a seguinte homérica dica, focalizando – atenção! – as “focas” do “Canto II”:

“Contei, por fim, com a misericórdia de uma deusa, Idoteia, filha de Proteu, o Velho do Mar. (…) Tendo ouvido essas generosas palavras, insisti: ‘Gostaria de saber com que armadilhas prender este Velho prodigioso (…).’ A resposta da distinta não tardou: ‘(…) Sempre que o sol alcança a metade de sua rota celeste, o Velho deixa seus domínios marítimos (…), e se dirige a uma caverna profunda, lugar de repouso. Focas, nascidas da Rainha do Mar, cercam-no, é seu rebanho (…). Te revelo todos os recursos do Velho (…). Passa primeiro em revista as focas. Conferidas nos dedos (…), elege um lugar para dormir. (…) Ao submergir no seio acolhedor, Idoteia enviou-nos as peles de quatro focas (…). As peles enganariam o Velho, pai dela. A deusa cavou covas ao longo da praia e nos aguardou sentada. Quando nos aproximamos, ela nos acomodou, um em cada cova, e nos cobriu com as peles. O cheiro nascido das ondas tonteava. (…) Caí sentado na areia aos coices do choro. Nas cavernas de mim mesmo eu pedia para morrer. Viver, ver a luz do sol, para quê? Exausto de rolar na areia em prantos, acudiu-me a orientação do Velho do Mar (…).” (HOMERO. “Odisseia v.1: Telemaquia”. Tradução Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2014, pp.111, 113, 115 e 119).

Não é preciso – ao menos não ainda – cair de quatro em prantos (como Menelau, cansado de enfrentar a fúria das ondas de Poseidon, na volta da Guerra de Troia), que acudo os desorientados – para não lhes parecer um impávido pedante – dando uma dica típica de guia, carregando-vos não sem sôfrego esforço, toscos bastardos nanicos diletantes, como se um só dedo mindinho fossem do gigante bardo Dante, já fardo bastante sobre os curvos ombros deste autocrítico que não disfarça, sabendo-se tão mínimo, sequer ser mísera sombra do grande vate Virgílio. Quem leu “A Divina Comédia”, aliás, entendeu a alusão analógica: o poeta latino foi o guia do italiano do “Inferno” – passando pelo “Purgatório” – às portas do “Paraíso” (fechadas para o velho mestre romano, todavia, porque era pagão). Sem mais, entrego-lhes de mão beijada estes excertos, escolhidos a dedo, da “Eneida” (quem a leu, tendo lido a “Odisseia”, sabe que qualquer semelhança entre as epopeias não é mera coincidência – mais à frente ponho legenda para os “leitores menos sofisticados”), a fim de ficar um pouco menos – ao menos – obscuro o “canto” poundiano inaugural:

“Ao largo os barcos, desaparece terra,

Céu daqui, mar dali. Bulcão cerúleo

Feia borrasca sobre nós carrega,

Treva e horror pelas águas estendendo.

O vento em brenhas escarcéus levanta,

Nos joga e espalha pelo vasto pego.

Tolda-se o dia, e pluviosa a noite

Nos rouba a luz polar; rasgadas nuvens

Trovejam, relampeiam. Flutuamos

Sem rumo à toa; Palinuro mesmo

Perde o tino, e confunde a noite e o dia.

Nem fulge estrela nas opacas horas,

E em cerração três dúbios sóis vagamos.

‘(…) Dize, eia, que perigo evitar urge?

Como superarei trabalhos tantos?’

Já do uso as reses mata (…)

E a profética boca desencerra:

‘Com mor auspício é fé que tu navegas,

Filho de Vênus tal baralha as sortes,

E as encadeia e liga o rei dos numes,

Por que sulque melhor ignotos mares,

E ancores a salvo em porto Ausônio

Vai do muito expender-te um pouco Heleno

Que o mais, sabê-lo as Parcas me proíbem,

Ou falar veda-me a Satúrnia Juno.

Primeiro, a Itália próxima, onde cuidas

Que aportas breve, ta separa e afasta

Com longas terras ínvia longa via.

N’água Sicana o remo vergar deves,

E o salso golfo Ausônio, o lago Averno,

E a ilha percorrer de Circe Eéia,

Antes que assento firme estabeleças.

Dou-te os sinais, conserva-os: quando achares

Cuidadoso à margem do secreto rio

(…)

Ali terás descanso, ali cidade.’

(…)

Rumo há de achar o fado e ouvir-te Apolo.

(…) Mas quando, além dos mares

Surta a frota e na praia erguidas aras,

Os votos cumpras, de purpúreo amicto

Vela a cabeça; a fim que hostil aspecto

Não turbe o agouro. Aos teus nos sacrifícios

Tal seja o rito, observa-o (…).”

(VIRGÍLIO. “Eneida” – Livro V. Tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2004, pp.121, 128-129).

Enquanto seus “mestres”, depois de convocados por vós – pupilos de pupilas dilatadas de desespero, em vã espera – fecham os “olhos de não ver”, como se, fingindo-se de surdos – se não cínicos, burros com “ouvidos [asininos] de não ouvir” -, fossem mesmo mudos. Como no começo era o “Canto I” do nosso teste de astúcia, e já na primeira pergunta (implícita) do nosso “quiz” literário sobre quem é quem – quer dizer, sobre quais vozes reverberam através de sua singular voz polifônica -, calaram trêmulos como se os versos, com cara de charada, soassem como uma espécie de “decifra-me ou te devoro” do esfíngico Ezra. Melhor mesmo seria, é claro, se o erudito “miglior fabbro”, entregasse o ouro/o jogo, mostrando o segredo da mágica dialógica a essa pueril trupe presunçosa das “letrinhas”, que faz que sabe o que faz e não faz nem sabe nada: na hora agá, quando cai a máscara – como agora, por exemplo – é que se mostra a descarada cara deslavada de pau dessa fajuta patota despoetizada. A propósito do despropósito, o Pound crítico poderia ter dito, sobre essa ignorância homérica dos – pretensos – “poetas” pósteros pequeninos (como “Le Little Petit Poucet Poète”) sobre a grandiosa obra do Ezra poeta, precisamente isto: “Essa diferença entre o que é sabido e o que é simplesmente simulado ou suposto, sempre me pareceu valer a pena descobrir. Obviamente, quanto mais limitado o campo, mais pormenorizada pode tornar-se a demarcação.” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.99). Eis o “quiz”, então, da questão: o campo se restringe a apenas alguns versos de só dois dos cento e vinte “cantos”; entre um e outro verso de um, entretanto, cabe – muito mais do que supõe a vã soberba insipiência – um universo. Como diria Haroldo de Campos, num relance de dados com “Os Cantos” nas “Galáxias” intertextuais, todo já-dito, no fundo, “regressa e retece”: “um livro de viagem onde a viagem seja o livro o ser do livro é a viagem por isso começo pois a viagem é o começo e volto e revolto pois na volta recomeço reconheço (…) há milumaestórias na mínima unha da estória por isso não conto por isso não canto” (CAMPOS, Haroldo de. “Galáxias”. São Paulo: Editora Ex Libris, 1984 – sem numeração de páginas). Poderia dizer numa nota só – à dose dupla condensada, aprendiz de poeta/aprendiz de professor – que não há “o grau zero da escritura” (aspas para o “já-dito” de Roland Barthes): crer nisso, aliás, seria reflexo da típica ilusão adâmica do princípio originário. Em outros termos, todo começo, na verdade, é sempre recomeço a partir de pontos diversos de partida, que não partem do início porque todo princípio, por princípio, é reinício de distintos pontos – de intersecção – na espiral do intertexto infinito. Para não dizer que não falei que o foi semiólogo francês, de novo (“nada de novo sob o sol”, foi Leminski que disse), que disse isso, foi também ele que falou e disse isto: “quanto mais cultura houver, maior será o prazer” da viagem por mil “mares” – sem o “nunca”, já que a viagem do livro de Camões, afinal, também não partiria jamais sem prévio mapa épico – “dantes navegados”.

 

  1. POR MILHARES DE MARES DANTES NAVEGADOS

Para não parecer “viagem” digressiva do articulista, pegando carona de graça na nau lusitana de Vasco da Gama, vale lembrar que “Os Lusíadas” refizeram a homérica rota de Ulisses. Sem esquecer que é a que fora refeita – embora sempre sendo outra (porque o barco e o bardo jamais navegam os mesmos mares, parafraseando Heráclito) – na dupla trip do herdeiro troiano do rescaldo do incendiário genocídio da tribo troiana pelos sádicos soldados gregos. Como se devorasse o “pai primordial” do exército inimigo para incorporar sua força, os seis primeiros livros da saga heroica de Eneias digerindo antropofagicamente a “Odisseia”; nos outros seis, pois, a fundação de Roma traduziu a satisfação compensatória imaginária do neurótico desejo recalcado de revanche pela humilhante “castração” simbólica – sofrida “ferida narcísica” jamais cicatrizada, Freud explica – exposta como troféu pelos tão prepotentes quanto cruéis gregos, cantando sádicos a já indigerível vexatória vitória nos versos épicos da “Ilíada”. Para quem ainda – a ver navios – não viu o que Pound tem a ver com essas ondas, convém mostrar o mapa da memória enciclopédica do velho almirante aos inexperientes marinheiros de primeira viagem poética, que perderam o curso de leitura na errônea rota em busca da utópica “terra prometida” da “escrita criativa”. Cruzando os “mares” que parecem “nunca dantes navegados” a quem nunca navegou senão em barquinhos de papel, para indicar a direção a quem não sabe nadar nem em banheira, como se acudisse criança rolando em lágrimas na areia, dou-lhes a orientação do “Velho do Mar” ao lendário rei da Lacedemônia (cuja mulher – a mítica Helena – teria fugido com Páris, razão da Guerra de Troia), como um ponto de apoio nas águas profundas das leituras (que não poderiam mesmo dar pé aos nanicos amadores). Quem dera, entre tantos “cantos” soprando vozes vorazes aos quatro ventos dialógicos, o próprio poeta, trocando de pele com o crítico – Pound com poder de Proteu – possa livrá-los do naufrágio anunciado, entre tantos livros não lidos, em que não precisamente ele meteu os leitores, mas a própria ignorância profunda deles. Quem há de salvar discípulos fiéis de “Le Little Petit Poucet Poète”, afinal, tão crédulos de que o oceano seja mesmo – segundo reza a cartilha “primeiros e únicos passos” de seu “curso de escrita criativa” – tão raso quanto um pires? Se o “metomínimo” mestre é mesmo maior do que lhes diz, seus pupilos certamente hão de acertar – sobretudo depois de Ezra lhes soprar a dica – o “quiz”, sabendo assim como se safar da água já acima do nariz. Havendo ainda dúvida, é certo, é só perguntar ao “poeta-professor”: sendo tão sábio quanto se crê e os néscios creem também, indubitavelmente, já tem – sem precisar de dica de autor – o gabarito na ponta da língua literária; aos que não tiveram a dádiva de tê-lo como guia de navegação, todavia, toda dica é sempre muito bem-vinda. Por via das dúvidas (em respeito aos tantos desgraçados bardos-bastardos náufragos na odisseia das letras), como são dois “cantos”, já de cara – sob os auspícios do autor – seguem estas duplas benditas dicas, seguidas ainda – para não lhes poupar ajuda – de mais uma minha, citando alguns versos do célebre épico lusitano:

“Dante e Browning despertaram tamanho interesse por Sordello que não seria demais apresentá-lo sucintamente, tal como ele aparece num manuscrito da biblioteca ambrosiana de Milão: ‘Lo Sordels si fo di Mantovana.’ Sordello era do território mantuano (…), e se deleitava com as ‘chançons’, aprendendo-as e compondo-as.” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.107).

“Camões não é uma força e sim um sintoma. Sua obra depende em alto grau dos acontecimentos e da índole do seu tempo; e nela podemos, por conseguinte, estudar com proveito essa índole (…). ‘Os Lusíadas’ são, de acordo com Hallam, a primeira tentativa bem sucedida na Europa moderna de construir um poema épico sobre o modelo antigo (…). Somos convidados a ouvir essa canção no estilo grandiloquente, fluente (…), porque fala de homens reais, cujos feitos superam todos os feitos fictícios de heróis fabulosos (…). A qualidade do espírito de Camões é retórica, mas sua dicção e técnica são admiráveis (…). ‘Os Lusíadas’ dificilmente poderão ser superados, creio eu (…). Ele é o Rubens do verso. Uma epopeia não pode ser escrita em oposição à índole de sua época (…). Embora Camões seja indiscutivelmente poeta, é lido pelo leitor de hoje como se fosse um prosador. ‘Os Lusíadas’ têm mais valor que um romance histórico: eles nos dão o tom do pensamento da época. Sob esse aspecto, são poesia épica (…). Os que apreciam as partes submarinas (…) também apreciarão provavelmente a parte do sexto canto de “Os Lusíadas’ que trata da visita de Baco a Netuno:

‘No mais interno fundo das profundas

Cavernas altas onde o mar se esconde,

Lá onde as ondas saem furibundas

Quando às iras do vento o mar responde.’

(…) Em suma, pois, ‘Os Lusíadas’ são admiráveis como retenção sustida de uma maneira tida por grandiosa. Camões foi um mestre da sonoridade e da linguagem, um homem de grande força e um esplêndido retórico; da arte da poesia, a parte suscetível de ser ensinada, ele a aprendeu (…) Abandonado numa costa áspera e cercada de rochas, inserido num ambiente desinteressante e numa época sombria, Camões teria exibido uma mediocridade correspondente.” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, pp.142-143, 147-148).

“Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

Cale-se de Alexandre e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,

A quem Neptuno e Marte obedeceram.

Cesse tudo o que a Musa antigua canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.” (CAMÕES, Luís Vaz. “Os Lusíadas” – Canto I. Edição do século XIX, sem dados bibliográficos).

Se aqueles que têm “olhos de ver” ainda não viram, não custa ajudar os pobres poetas a abrir as pálpebras, crendo que uma nota explicativa possa lhes fazer notar – pleonasticamente – aos que têm “ouvidos de ouvir” e ainda não ouviram o óbvio reiterado nos dois trechos analíticos antes desses versos. Para começo – ou recomeço – de conversa, no começo do “Canto I”, o princípio do “recomeço” (conforme aquela evocação “galáctica” de Haroldo de Campos – não se esqueçam) já está pressuposto no conectivo aditivo “e”, bem como, logo após, na conjunção conclusiva “pois”. Ou seja, já no primeiro verso do primeiro dos cento e vinte “cantos”, as duas palavras – o trocadilho, enfático, explicita a dica – cantam o jogo, soprando a resposta: “E pois com a nau no mar”, portanto, implica que o começo, na verdade, se soma a algo anterior, do mesmo modo que “pois” – equivalente a “logo” – pressupõe um processo que fundamenta o fecho. Isto é, se há “e” logo no início, logo está implícito que, na verdade, no princípio era antes; vindo logo depois, o “pois” não deixa dúvida de que não poderia haver conclusão senão a partir de dadas premissas – que não poderiam ser, logicamente, posteriores. Em outras palavras, pois, no início, o “recomeço” é o princípio de que o ponto de partida, afinal, só pode partir de um ponto – ou de outros – de chegada: quer dizer, todo dizer é sempre, explícita ou implicitamente, continuidade de um já-dito; nada começa do nada, de um “grau zero” fundador. Embora haja muitos discursos simulando a “origem” – não é demais fazer a ressalva – para dissimular que, não sendo jamais originários, não podem ser também, é óbvio, totalmente originais. Não precisaria dizer que dizer isso (para não perder a deixa do trocadilho) não é nenhuma novidade, mesmo que não houvesse já dito – parágrafos após o princípio – o que Bakhtin já dissera sobre o princípio de que todo “dito” parte sempre de um “já-dito”: ou seja, que “as obras dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no ‘grande tempo’ (…)”; “uma obra não pode viver nos séculos futuros se de certo modo não reúne em si também os séculos passados (…)”; “no processo de sua vida ‘post mortem’ elas se enriquecem com novos significados, novos sentidos (…)” (BAKHTIN, Mikhail. “Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas”. São Paulo: Editora 34, 2017, p.14-15). Retomar essas sínteses do enciclopédico filósofo da linguagem e crítico literário, exatamente quando estamos fazendo a audição de outros “cantos” no coro intertextual de “Os Cantos”, não poderia ser mais apropriado: como grande leitor da tradição, afinal, o grande poeta a reescreve, renovando/potencializando o passado (no melhor sentido do conceito bakhtiniano de “grande tempo”).

 

  1. NAVEGANDO NA “ESPIRAL DE VOZES” DO “GRANDE TEMPO”: A BÚSSOLA DE BAKHTIN, BARTHES E STEINER

Antes de dar continuidade à leitura das releituras de Pound – cuja finalidade é apenas ilustrar a paráfrase expandida – que explicita a premissa – da tese da precedência da leitura sobre a escrita, ou seja, da necessidade de ensinar a ler para, só então, ensinar a escrever (seria assim justificável, respeitando a ordem dos fatores para não alterar o “produto”, um “curso de escrita criativa”), selecionei mais estes excertos certeiros do exegeta russo:

“A cocriação dos intérpretes. (…) O encontro com os grandes como algo que determina obriga e vincula é o momento supremo da compreensão (…). Chamo sentidos às respostas a perguntas (…). A índole responsiva do sentido. O sentido responde a certas perguntas. Aquilo que nada responde se afigura sem sentido para nós, afastado do diálogo (…). O sentido é potencialmente infinito, mas só pode atualizar-se em contato com outro sentido (do outro), ainda que seja com uma pergunta do discurso interior do sujeito da compreensão. Ele sempre deve contatar com outro sentido para revelar os novos elementos da sua perenidade (como a palavra revela o seu significado somente no contexto).

(…) A compreensão recíproca entre os séculos e milênios, povos, nações e culturas assegura a complexa unidade de toda a humanidade, de todas as culturas humanas (a complexa unidade da cultura humana), a complexa unidade da literatura da sociedade humana. Tudo isso se revela unicamente no nível do grande tempo. Cada imagem precisa ser entendida e avaliada no nível do grande tempo. A análise costuma desenvolver-se no espaço estreito do pequeno tempo, isto é, da atualidade do passado imediato e do futuro representável (…). Quanto a mim, em tudo eu ouço ‘vozes’ e relações dialógicas entre elas. Eu também interpreto dialogicamente o princípio de complementaridade (…). Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Mesmo os sentidos ‘do passado’, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, jamais podem ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre hão de mudar (renovando-se) no processo do futuro desenvolvimento do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em um novo contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação.” (BAKHTIN, Mikhail. “Notas Sobre literatura, cultura e ciências humanas”. São Paulo: Editora 34, 2017, pp.36, 41, 74, 78-79).

Seria imprudente – antes, negligente – prosseguir desprezando – deixando, portanto, de lado – tantas deixas: ou seja, não aproveitar, se não o máximo possível, sequer o mínimo imprescindível de tudo o trecho tem a dar – “de bandeja” – à progressão argumentativa. Em outros termos, aproveitando que Dante já foi muito citado, aqui e ali, por muitos – não citados ou citados por outros citados por mim – e mesmo por mim (propriamente falando, metonímica e diretamente dizendo, de “Dante”), o que quero dizer é que “gastar” citações – como se, não faltando, as pudesse esbanjar – no fundo (do “poço” perdulário do interdiscurso e do intertexto), seria como o prototípico “pródigo” do “quarto ciŕculo” do “Inferno”. Ou, na antípoda complementar, poupando tão inestimáveis informações ao leitor, pecasse então pela “avareza”, cujo castigo eterno seria carregar um pesado saco de barras de ouro de um extremo a outro (variação figurativa da mítica tragédia de Sísifo). Posto isso, valorizando os inestimáveis “imensos tesouros dos sentidos” do tão rico erudito teórico russo (reuso suas palavras entre aspas, já renovadas nas páginas de minha lavra, para falar o que ele disse sobre Shakespeare para falar dele – o anafórico, apesar do duplo referente, no contexto não haveria de ser ambíguo), não devendo ostentar aos pobres néscios o áureo saber acumulado tampouco jogar pérolas a porcos, não poderia negligenciar aos aprendizes de boa-fé das (pré-medievais pós-modernas – acintoso oxímoro!) corporações de ofício de escrita “recreativa” a legenda metalinguística. Ou seja, o eminente enunciador não se propõe à análise de uma obra ou autor específico, como é o caso dos dois poundianos excertos, mas do próprio “texto”; o texto bakhtiniano não é mero pretexto para falar dos outros; o “texto” – no singular, sempre “plural” – é o próprio objeto de sua reflexão: o que quer dizer, de certa forma, que nele esboça – por assim dizer – os “andaimes do edifício” criativo. Só para não dizer, aliás, que não falei que foi Olavo Bilac quem disse isso, e também não disse que a mesma metáfora arquitetônica, na boca de Mikhail Bakhtin, era outra, eis o “já-dito” na ponta polifônica de sua sábia língua sibilina dialógica de mestre de obras (sem duplo hífen nem dupla aspas, tampouco adjetivo depois, pois – para ser duplo o sentido):

“Aqui se obtêm novos portadores do sentido (…); a cultura não é criada a partir de elementos mortos, pois, como já dissemos, nas mãos do construtor até um simples tijolo traduz alguma coisa com forma própria. Por isso, as novas descobertas de portadores materiais do sentido introduzem corretivos nas nossas concepções de sentido e podem até exigir a sua reconstrução substancial (…). A ‘interpretação criadora’ não renuncia a si mesma, ao seu lugar no tempo, à sua cultura, e nada esquece. A grande causa para a interpretação é a ‘distância’ do intérprete – no tempo, no espaço, na cultura – em relação àquilo que ele pretende interpretar de forma criadora (…). No campo da cultura, a distância é a alavanca mais poderosa da interpretação. A cultura do outro só se revela com plenitude e profundidade (mas não em toda a plenitude, porque virão outras culturas que a verão e a compreenderão ainda mais) aos olhos de ‘outra’ cultura.” (Idem, pp.18-19 e 35).

O que interessa, sobretudo, de ambos os excertos do pensador soviético, como endosso autorizado à tese de que a formação do leitor é imperativa (condição necessária, mas não suficiente) para a criação literária, é a definição da leitura como “cocriação dos intérpretes”, da “interpretação criadora” como “índole responsiva do sentido”. Isso implica, em sua perspectiva precisa, que se deve “compreender o texto tal qual o próprio autor o compreendia”, tendo claro que “não se pode entender a interpretação como passagem da linguagem do outro para a minha”: afinal, “a interpretação pode e deve ser melhor”. Não é demais sublinhar, aliás, a distinção bakhtiniana fundamental entre os verbos “compreender” e “interpretar”, alertando que não são – conforme crê o raso senso comum – “sinônimos perfeitos”: para que o “mutismo” da leitura passiva se transforme em “diálogo”, pois, a compreensão deve preceder a interpretação (substantivos derivados dos respectivos verbos, no percurso de aquisição de competência do leitor – sem cuja “índole responsiva”, logicamente, não poderia haver “cocriação”). Para tanto, a análise crítica não pode se circunscrever aos exíguos limites do “pequeno tempo”, uma vez que “o encontro com os grandes” – sem o qual não se pode atingir jamais o “momento supremo da compreensão” – só é possível numa ordem de grandeza tão incomensurável quanto o “universo infinito” aos olhos de Argos de Einstein. Aproveitando a metáfora física (para não dizer que já não falei da analogia astronômica), na curta duração e no estreito foco do pequeno tempo-espaço (para não falar que não disse também que Poe já falou e disse isso), é certo que não caberia o “desenvolvimento do diálogo” entre as teorias de Copérnico, Galileu, Kepler, Newton e Einstein. A propósito, só no útero dialógico do “grande tempo” bakhtiniano (no “silêncio da gestação das eras”, já dissera Goethe) é que se poderia parir, por exemplo, a física moderna, cujo pai – de língua de fora – faria coro aqui com o linguista: “Eu ouço ‘vozes’ e relações dialógicas entre elas (…), também interpreto dialogicamente o princípio de complementaridade”. Como o diálogo analógico entre essas duas ordens de grandeza, embora de “universos” (a polissemia é providencial) bem diversos de saber, não seria possível se não houvesse ponto de intersecção, aos poucos e raros que não precisam de lentes telescópicas porque “têm olhos de ver e veem”, enfim, seria dispensável demonstrar em que medida o “grande tempo” – guardadas as devidas proporções comparativas – teria a ver com a “teoria da relatividade”. Aos incipientes ou insipientes (as homônimas homófonas são sintomáticas) leitores “não sofisticados” (para não dizer que não falei mais de Pound, a caracterização eufemística é dele), entretanto, este didático trecho do tradutor Paulo Bezerra, no posfácio às “Notas” (tão notáveis e tão pouco notadas), é nota explicativa imprescindível a fim de que não “viajem” (desnecessária ela seria, bem como as aspas, se não houvesse a bordo das letras uma enorme horda de “desnorteados”; uma trôpega trupe tropical de “semiletrados” tripulantes desgovernados na frágil nau sub-literária): “Nessa concepção de poética histórica, o presente é uma continuidade do passado e início do futuro (…), o que permite um enfoque prospectivo da própria leitura (…) que se pode resumir nesta forma sucinta: [a obra] relê o passado à luz do presente na perspectiva do futuro.” (Idem, p.88).

Aos que “têm ouvidos de ouvir e não ouvem” (ecos intertextuais de Santo Agostinho reverberando no “Sermão de Santo Antônio aos Peixes” do Padre Vieira), convém dar-lhes um pouco mais de base teórica ainda, para retomar “Os Cantos” de Pound – como exemplo de criação poética resultante do “encontro com os grandes” (Homero, Virgílio, Dante, Camões, etc.) no “grande tempo” – com alguns pressupostos críticos elementares, ao menos, bem definidos. Para não dizer que o uso da figura metonímica “auditiva” do orador barroco, então, foi só para falar novamente que não dá para “olvidar” tão gritante absurdo (trocadilhos sintomáticos) descuido dos “semiletrados” das letras com a “educação dos sentidos” (aspas para Marx), justifico que o recurso retórico figurativo também serve aqui – sobretudo – para amplificar o coro discursivo do crítico russo: “Eu ouço ‘vozes’ e relações dialógicas entre elas (…), também interpreto dialogicamente o princípio de complementaridade”. A propósito, a esta altura, é como se ouvisse mais vozes dissonantes engrossando o descarado coro desafinado dos descontentes (a vociferar impropérios contra os desvios digressivos deste homérico artigo), replicando que o “prolixo” crítico bem poderia aproveitar a deixa analógica para voltar à audição dos “cantos”. Sem perder a paciência – de Jó – imprescindível ao penoso ofício pedagógico, sem esperar também, contudo, que me perdoem os mal-acostumados à “pressa indecorosa” (valha-me o martelo de Nietzsche para abrir suas cabeças ocas) dos cursos supletivos de “escrita criativa”, esclareço à classe de desclassificados (aliás, não poderia perder a classe jamais, logicamente, quem nunca a teve) que estamos partindo não propriamente de outro, mas do mesmo princípio dialógico que rege – sob a batuta erudita de Pound – os “cantos” (aos quatro cantos). Qualquer diferença, assim, é meramente de gêneros de discurso: as obras de Homero, Virgílio, Sordello, Dante, Camões ou Ezra, por exemplo, pertencem ao campo da “literatura”; os ensaios de Pound, Barthes, Steiner e Bakhtin, em contrapartida, se inscrevem nos domínios da “teoria” ou da “crítica literária”. O que por ora importa pôr à mostra, sob as variações de forma e conteúdo à superfície textual, no fundo, são as semelhanças metodológicas profundas de leitura. Com “olhos de ver” e “ouvidos de ouvir” bem abertos, pois, vejamos estes reflexos/ecos bakhtinianos especulares na “espiral de vozes” de Barthes e Steiner (leitor sofisticadíssimo cujos excertos foram escolhidos a dedo, de dois ensaios, como espécie de resumo da ópera-bufa contemporânea, de moral da história que se repete como farsa literária pós-moderna):

“O próprio autor e os seus contemporâneos veem (…) e avaliam antes de tudo aquilo que está mais próximo do seu dia de hoje. O próprio autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos posteriores o libertam dessa prisão, e a ciência da literatura tem a incumbência de ajudá-lo nessa libertação (…). O culto da fraqueza (…), os imbecis e idiotas, uma florzinha, tudo o que é pequeno (…). O empobrecimento dos tons na literatura universal (…). O ânimo burocrático (…). A fraqueza intelectual, a tolice, a banalidade (…). O sentido é potencialmente infinito, mas só pode atualizar-se em contato com outro sentido (do outro), ainda que seja com uma pergunta do discurso interior do sujeito da compreensão. Ele sempre deve contatar com outro sentido para revelar os novos elementos da sua perenidade (…). A compreensão recíproca entre os séculos e milênios, povos, nações e culturas assegura a complexa unidade de toda a humanidade, de todas as culturas humanas (a complexa unidade da cultura humana), a complexa unidade da literatura da sociedade humana. (BAKHTIN, Mikhail. “Notas Sobre literatura, cultura e ciências humanas”. São Paulo: Editora 34, 2017, pp.16, 34, 41, 74).

“Saboreio o reino das fórmulas, a inversão das origens, a desenvoltura que faz com que o texto anterior provenha do texto ulterior (…). E é bem isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito – (…): o livro faz o sentido, o sentido faz a vida. (…) Para escapar à alienação da sociedade presente, só existe este meio: ‘fuga para frente’: toda linguagem antiga é imediatamente comprometida, e toda linguagem se torna antiga desde que é repetida (…). A forma bastarda da cultura de massa é a repetição vergonhosa: repetem-se os conteúdos, os esquemas ideológicos, a obliteração das contradições, mas variam-se as formas superficiais: há sempre livros, emissões, filmes novos, ocorrências diversas, mas é sempre o mesmo sentido (…). O estereótipo é a palavra repetida, fora de toda magia, de toda entusiasmo, como se fosse natural, como se por milagre essa palavra que retorna fosse a cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitação: palavra sem-cerimônia, que pretende a consistência e ignora sua própria insistência.”(BARTHES, Roland. “O prazer do texto”. São Paulo: Perspectiva, 1977, pp.49, 55-58).

“Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total (…). É assumir responsabilidade pelo texto (…): é um processo de exames que testam a compreensão do essencial apreendido. Essa palavra pode ser usada para sintetizar estágios complexos de leitura (…). A memória é, naturalmente, o ponto crucial. A capacidade de reagir ao texto, a compreensão e a resposta crítica à ‘auctoritas’ pertinentes ao ato clássico da leitura (…), como os homens cultos sabem textos de cor (…). A capacidade de citar de memória (…) longos trechos de Homero, Virgílio, Horácio ou Ovídio (…) gerou uma tessitura compartilhada de ecos, de identificações e reciprocidades intelectuais (…). O leitor clássico (…) situa o texto que está lendo em um espaço cheio de ressonâncias. Um eco responde a outro, a analogia é precisa e imediata, as correções e as emendas são justificadas por precedentes evocados com precisão. O leitor reage ao texto com toda a densidade articulada de seu próprio repertório de referências e associações (…).” (STEINER, George. “O leitor incomum”. In. “Nenhuma paixão desperdiçada”. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp.18, 26-28).

“O ato e a arte da leitura séria comportam dois movimentos principais do espírito: o da interpretação (hermenêutica) e o da valorização (crítica, do julgamento estético). Os dois são absolutamente inseparáveis. Interpretar é julgar. Nada se decifra, por mais filosófico, por mais textual no sentido estritamente técnico, sem que se empregue juízo de valor. Da mesma forma, nenhum juízo crítico, nenhum comentário estético pode deixar de ser interpretativo (…). Uma teoria crítica, uma estética, é uma declaração política de gosto. Procura sistematizar, tornar visivelmente aplicável e pedagógico, um conjunto de instruções articuladas, uma determinada inclinação da sensibilidade, um viés conservador ou radical de algum mestre da percepção ou de uma aliança de opiniões (…). A diferença entre a avaliação feita por um grande crítico e a que faz o tolo semialfabetizado encontra-se na abrangência das referências inferidas ou citadas, na lucidez e na capacidade de argumentação (o estilo do crítico) e no acréscimo acidental do crítico que é, ele mesmo, alguém que cria.” (STEINER, George. “Presenças verdadeiras”. In. “Nenhuma paixão desperdiçada”. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.37-38).

Não custa repetir aos desatentos que transcrevi – vários parágrafos antes destes excertos – alguns trechos de “Os Cantos” de Pound, fragmentos da “Odisseia” de Homero e versos da “Eneida” de Virgílio, bem como certos comentários de dois ensaios de Ezra, respectivamente, sobre o bardo provençal Sordello e o poeta lusitano Camões, citando ainda, para encerrar, oito versos do “Canto I” de “Os Lusíadas”. Entre uns e outros, seguiram-se breves parágrafos em que lancei algumas luzes sobre as obras, orientando a navegação dos leitores “menos sofisticados” no breu bravio dos oceanos dialógicos da longa tradição literária. Interrompi, entretanto, a interpretação (bem preliminar ainda, vale ratificar) para tratar – sob o foco metalinguístico – do próprio processo de interpretação. Convém recordar que o diagnóstico da falta de repertório cultural dos prosadores e poetas “subtropicais” contemporâneos – cujos sintomas são a baixa qualidade estética das produções (em relação inversamente proporcional, conforme problematizei, com a elevada quantidade de publicações) e a sistemática recusa a qualquer debate (não só sobre questões específicas de literatura) – é que forneceu não só a base argumentativa de minhas críticas tanto à proliferação dos “cursos de escrita criativa” quanto à ausência de programa, de metodologia e de competência pedagógica, mas também da defesa da necessidade de “escolas de leitura criativa” (segundo sonhara George Steiner), consequentemente, como etapa preparatória para a formação de escritores. Posto isso, os vários excertos ensaísticos de crítica literária, interrompendo a crítica propriamente dita das obras, não se justificariam como antídoto contra a cegueira autocrítica dos escribas “semiletrados”, obviamente, se não lhes pudessem servir de lentes de aumento para ler nas entrelinhas os pressupostos de qualquer criação – de fato – literária (não de uma “criação literária qualquer”, vejam bem). Aliás, evoco novamente Nietzsche só para os de memória de curto alcance não esquecerem que, na “aritmética das letras” (em minha expressão), a ordem dos fatores altera o produto: em outros termos, para poder “aprender a falar e a escrever”, é preciso “aprender a pensar”; para poder “aprender a pensar”, por sua vez, “deve-se aprender a ver”. Se é preciso “aprender a ver”, assim, como premissa para pensar, é preciso dizer também que é preciso aprender que “aprender a ver” é ver, por princípio, sob diversas perspectivas, sob vários focos, sob distintos pontos de vista (no mais amplo “tempo-espaço” – em sentido lato). Indo direto ao ponto crítico, enfim, o que quero dizer é que os trechos de Bakhtin, Barthes e Steiner cumprem dois propósitos pedagógicos básicos – em níveis “desiguais e combinados” (segundo a lei dialética formalizada por Leon Trotsky) no percurso argumentativo: no plano metalinguístico, trata-se de leituras sobre a própria “leitura”; no plano propriamente “interpretativo”, cujo objeto de análise é a obra literária (no caso em tela), servem de ilustrações didáticas do conceito de “leitor competente”.

 

  1. APRENDER A LER É COMPREENDER E INTERPRETAR

Assim, sem carecer cuidar de que pudessem acusar pela “falta” o artigo, carece não descuidar, contudo, de que possam ainda condenar pelo “excesso” o crítico (afinal, se não ser “avaro”, para ser absolvido, fosse bastante, não haveria de ser sentenciado o “pródigo”, certamente, ao quarto círculo do “Inferno” de Dante): sendo tão “vicioso” um quanto outro extremo, então, a questão – eis a “justa medida” da informação – é o meio-termo. Se que cada excerto vale mesmo quanto pesa (ao  menos, aqui), e o articulista não só não poupa mas também não gasta (não aqui, ao menos), portanto, nem mais nem menos (bem aquém, é claro, do que tenho) do que o necessário, é hora – para que sirva de prova – de pôr isso à mostra. Isto é, melhor do que ilustrar com trechos de obras literárias – por ora – os pressupostos sobre a leitura sob a perspectiva dos três ensaístas, é usar os próprios fragmentos metalinguísticos como exemplos práticos de validade dos princípios “teóricos” (entre aspas porque não propriamente formalizados, em “stricto sensu” científico) implicados na formação – no processo de aquisição de competência interpretativa – do “leitor criativo”. Embora mais receoso das digressões explicativas serem excessivas, como sempre, não menos preocupado (levando em conta que “a situação está bem abaixo da crítica”, bem atento ao profundo agravamento do diagnóstico de Marx) de que – ainda assim – sejam insuficientes as legendas didáticas, a prudência pedagógica reivindica uma breve revisão dos pressupostos da “prova”. Ou seja, para “aprender a ler”, é preciso ter olhos abertos para gêneros diversos, como textos de história, de mitologia, de arte, de literatura (romances, novelas, contos, crônicas, poemas), etc. Para “aprender a ler”, é preciso identificar as propriedades qualificantes do gênero discursivo (conforme sistematizou Bakhtin, a “estrutura composicional”, o “estilo” e o “tema”): o que implica que não se lê um artigo de opinião do mesmo modo que um ensaio acadêmico, um inquérito policial da mesma maneira que uma biografia, ou uma peça de teatro tal qual uma crítica literária. Para “aprender a ler”, é preciso “aprender a ver”, isto é, a perceber as relações interdiscursivas (os eixos temáticos) entre os mais diversos textos, identificando em que medida há acordo ou polêmica entre o universo valorativo dos respectivos autores. É preciso ter ampla gama de leituras, ainda, para que seja possível “enxergar” também as sutis relações intertextuais (paráfrases, paródias, estilizações…), sobretudo em se tratando de obras tão distantes no tempo e no espaço quanto distintas quanto ao gênero. Em síntese, quanto mais amplo, geral e irrestrito for seu repertório, é certo, mais condições materiais e espirituais terá o “intérprete” para (uma vez percebidos os rastros disseminados nas “milumapáginas onde o fim é o começo” – “xadrez de estrelas” nas “Galáxias” de Haroldo – não raro sem marcas enunciativas a sinalizar o sinuoso percurso da “heterogeneidade” dos discursos) localizar os pontos de partida e chegada no mapa dialógico dos grandes mestres. Antes de prosseguir “viagem”, aproveitando as reiterações das metáforas marítimas – por todos “Os Cantos”, todos os “cantos” – desta odisseia textual, devo saudar o aprendiz de leitor que ao menos se lembrou dessa nossa citação do poeta pós-concreto “neobarroco”. Mais mérito ainda terá, provando mesmo não ser mais propriamente marinheiro de primeira viagem, se atravessar – sobretudo já partindo da dica de que parto “dos Campos” cujo princípio do “recomeço” era “escrever sobre escrever é o futuro do escrever” – esta minha paródia preparatória para os três trechos críticos sobre a leitura ilustrativos da leitura crítica posta em prática: ler sobre “escrever sobre ler” e escrever sobre ler para escrever, enfim, é “sub/sobre/screver” a leitura da leitura presente da futura escritura passada.

Recomeço pulando a linha para mesmo os menos desavisados não embarcarem nesse canto das sereias poéticas e perderem o norte dos excertos das leituras sobre a “leitura”: agora não mais só como conceitos, mas – sobretudo – exemplos práticos da própria leitura como “índole responsiva do sentido”. A propósito, partindo do aparente desvio do período paródico ao fim do parágrafo pregresso, Bakhtin partiu do princípio de que só “se obtêm novos portadores do sentido” porque “a cultura não é criada a partir de elementos mortos”: ao mesmo tempo que “o próprio autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade” – prova de verdade da dialética “lei do desenvolvimento desigual e combinado” (aspas aqui para Trotsky) -, “os tempos posteriores o libertam dessa prisão”. Sem a típica passividade estereotipada da estrutura “pergunta-resposta” dos cantos litúrgicos, a voz de Barthes se faz ouvir no coro como “cocriação dos intérpretes”: ratificando a “teoria da relatividade” discursiva, o “grande tempo” dialógico “faz com que o texto anterior provenha do texto ulterior”. Em outros termos, eis o xis da equação (“criativa” não é mero – como se zero fosse o substantivo – adjetivo): para de fato – não só de direito – “escapar à alienação da sociedade presente, só existe este meio: fuga para frente” (aspas para Barthes). Se Mikhail dissera que “o sentido é potencialmente infinito, mas só pode atualizar-se com outro”, Roland endossou – quase “ipsis litteris – o dito, dando a letra: “é bem isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito”; “o livro faz o sentido, o sentido faz a vida”; “toda linguagem antiga é imediatamente comprometida, e toda linguagem se torna antiga desde que é repetida”. Para não haver dúvida de que isso implica que “a compreensão recíproca entre os séculos e milênios, povos, nações e culturas” é que “assegura a complexa unidade”, logicamente, “da literatura da sociedade humana”, fazendo suas as palavras inaugurais do teórico russo, o “já-dito” – também pelo semiólogo francês – fora reescrito pelo erudito crítico franco-britânico. Vale dizer, aliás, que sendo improvável que um leitor mais informado ignorasse quem foi Barthes, e muito pouco provável que desconhecesse Bakhtin, não seria pouco possível que – ainda que não propriamente impossível já ter ouvido, ao menos, seu nome – dissesse que foi um ou outro, mas não Steiner que, em uníssono, teria dito exatamente isto: “O leitor clássico situa o texto que está lendo em um espaço cheio de ressonâncias; “Um eco responde a outro, a analogia é precisa; “O leitor reage ao texto com toda a densidade articulada de seu próprio repertório de referências e associações”. Pelo “princípio da reciprocidade” (para não dizer que não falei mais das metáforas matemáticas do enigmático teorema dialógico do discurso literário), enfim, se foi Mikhail Bakhtin quem disse que “a compreensão recíproca” é a efetiva “interpretação criadora” – que “não renuncia a si mesma, ao seu lugar no tempo, à sua cultura, e nada esquece” -, quem falou e disse de novo isto (para os que “têm ouvidos de ouvir e não ouvem” ouvirem bem) foi Steiner: “Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total; “É assumir responsabilidade pelo texto”; “é um processo de exames que testam a compreensão do essencial apreendido”.

Isso quer dizer que, sendo preciso “aprender a pensar” para poder “aprender a falar e escrever”, e não se podendo “aprender a pensar” sem “aprender a ver”, em síntese, é preciso ouvir “vozes” e “relações dialógicas entre elas”. No fundo, só aprende a ler mesmo quem aprende – ouvindo claramente – a ver vozes no escuro: quer dizer, quem não passou pelas pedras “nel mezzo del cammin”, aprendendo a se guiar “in una selva oscura” (ah, Dante, quanto diletante!), certamente não sabe mesmo o que quer dizer – mesmo que soubesse, na melhor das hipóteses, que foi Bakhtin quem disse – “interpreto dialogicamente o princípio de complementaridade”. A obtusa resistência (Freud explica) à dura travessia da “educação dos sentidos”, em busca de milagrosos atalhos por curtos “cursos de escrita criativa” (a tal “pressa indecorosa” criticada por Nietzsche), é “o culto à fraqueza” dos “imbecis e os idiotas”, erguendo preces com asininos cascos a “tudo o que é pequeno”. Se foi o linguista soviético quem diagnosticou a “fraqueza intelectual, a tolice, a banalidade” como sintomas do “ânimo burocrático”, que provoca o progressivo “empobrecimento dos tons da literatura universal” (agravado pela endêmica preguiça macunaímica na atmosfera subdesenvolvida da subcultura subtropical), foi o crítico franco-britânico quem assinou embaixo: “A diferença entre a avaliação feita por um grande crítico e a que faz o tolo semialfabetizado encontra-se na abrangência das referências inferidas ou citadas, na lucidez e na capacidade de argumentação (o estilo do crítico) e no acréscimo acidental do crítico que é, ele mesmo, alguém que cria.” E foi o semiólogo francês que ratificou, nesta “espiral de vozes” autorizadas, o sintomático quadro degradante contemporâneo da “repetição vergonhosa”: em que, paradoxalmente, “há sempre livros, emissões, filmes novos, ocorrências diversas, mas é sempre o mesmo sentido” (como Benjamin e Huxley – para não dizer que Poe já não falara antes – falaram e disseram também). Atando mais um nó na rede de citações, para fechar o parágrafo, recordo ainda o retorno do “Zaratustra” da filosofia pelas mãos hábeis de Barthes: “Nietzsche fez o reparo de que a ‘verdade’ não era outra coisa senão a solidificação de antigas metáforas. Pois bem, de acordo com isso, o estereótipo é a via atual da ‘verdade’ (…), como se por milagre essa palavra que retorna fosse a cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitação.”

Como usei bastante neste artigo, também, metáforas e metonímias visuais, sempre pontuando a necessidade da “educação dos sentidos” para apreender os sentidos (sintomática polissemia) dos textos, vem bem a calhar a distinção terminológica barthesiana entre “studium” e “punctum” (na obra “A Câmara Clara”, em que o erudito semiólogo “reflete” sobre diferentes perspectivas de leitura da imagem fotográfica). Sem me estender, esclareço – em linhas bem sumárias – os dois conceitos operacionais hermenêuticos: “studium” se refere ao olhar compartilhado, ao conhecimento comum do entorno cultural, do contexto histórico, do universo valorativo, do imaginário coletivo, que confere sentido ao “referente”, enfim. O “punctum”, em contrapartida, é o que singulariza o olhar, que personaliza a interpretação; “é aquilo que eu acrescento à fotografia”, recriando-a, pelas lentes “subjetivas” (estas aspas são minhas; aquelas, dele): um modo de ler/ver inalienável e intransferível, pois. Se isso nos serve aqui de método, enfim, é para dizer – com outras palavras, repetindo a lição – que, nos “anos de aprendizagem” (já dei o crédito ao empréstimo do título do romance de Goethe) do leitor, o “studium” é pressuposto para o “punctum”: valendo-nos da analogia, aquele seria – guardadas as devidas medidas – o que Bakhtin chamou de “compreensão”; este, o que definiu propriamente como “interpretação”. Em síntese, só o “punctum” da leitura é que seria, de fato, índice da “índole responsiva do sentido”; portanto, signo da “cocriação dos intérpretes”. Posto isso, então, para que fica mais ululante o óbvio, aponto-lhes os vários traços semânticos recorrentes nas três leituras sobre a “leitura”, a começar pelo verbo irregular (de segunda conjugação) “ler”: definido na dialética da “pergunta-resposta” (substantivos usados pelo russo e pelo franco-britânico, implícito no excerto do francês); portanto, na relação “recíproca” entre os dois termos – autor e leitor – da equação literária (só em Barthes não é explícito o adjetivo “recíproca”, empregado por Bakhtin, nem o substantivo “reciprocidade”, que aparece – inclusive no plural – no primeiro trecho de Steiner). Os verbos “compreender” e “interpretar” – ou os substantivos derivados “compreensão” e “interpretação” – também não estão explícitos na citação de “O Prazer do Texto”: em contrapartida, Roland e Mikhail põem à mostra os termos polares do eixo temporal, isto, é as noções de “anterioridade” e “posterioridade”, articulando “passado” e “presente” (na perspectiva do “futuro” – “fuga para frente”), “antigo” e “contemporâneo”, “repetição” e “novidade” (reiterar o “estereótipo” ou “escapar à alienação” – eis a questão). Em síntese, em ambos, o substantivo “infinito” serve de síntese aos conceitos correlatos de abertura dialógica e inacabamento de princípio (caberiam aspas, duplas, ainda que não me lembre se essas expressões são exatamente de Julia Kristeva – o que me parece bem provável, a propósito, porque foi a prestigiada pensadora quem introduziu o linguista soviético nos círculos acadêmicos e literários franceses).

Por fim, sublinho ainda a avaliação comum bem negativa da “performance” (em acepção semiótica, também) dos sujeitos da narrativa literária, nos “papéis temáticos” (na terminologia do semioticista Greimas) tanto de “leitor” (inclusive, mais grave ainda, o “especializado”, o “crítico” de ofício)  quanto de “autor”. Na sentença condenatória bakhtiniana, por exemplo, o substantivo “empobrecimento” caracteriza o quadro estético “regressivo”, traduzindo o processo gradativo decrescente de valores culturais, responsabilizando pelas vultosas “perdas” protagonistas e coadjuvantes, produtores e reprodutores, criadores e consumidores, desqualificados como “imbecis” e “idiotas” que veem maior – no espelho de circo das letras miúdas – “tudo o que é pequeno” (veja bem a reiteração do traço de rebaixamento cognitivo na sequência de adjetivos depreciativos). Seu julgamento “substantivo” (aspas duplas para os dois sentidos, realçando a etimologia da denominação morfológica) da “tolice”, da “banalidade” e da “fraqueza intelectual” (o adjetivo é sintomático), por sua vez, é corroborado pelo diagnóstico cáustico steineriano da “quase dislexia dos hábitos de leitura”, cujo substantivo – emprestado da terminologia médica, em uso figurado da patologia de linguagem – é marcado pelo traço da insuficiência de habilidade e competência interpretativa (ou seja, de “saber-fazer” para “poder-fazer” – entre aspas e com hífen, em acepção estrita greimasiana). A comparação com o passado também reitera a noção de “empobrecimento”, a ideia de “retrocesso”, de “perda” de preciosos valores culturais acumulados na longa tradição civilizatória do “homo sapiens” (como se soasse mesmo irônico o adjetivo designativo – na taxonomia biológica – da espécie humana): nessa marcha acelerada para trás, afinal, a “ambição” seria, na melhor (ou melhor, menos pior) das hipóteses, “atingir o nível de competência bem-informada que as pessoas eruditas da Europa e dos Estados Unidos possuíam, digamos, no final do século dezenove”. Os mesmos significados dos substantivo “tolice” e do adjetivo “pequeno”, na versão de Steiner, são traduzidos pelo adjetivo substantivado “tolo”, adjetivado como “semialfabetizado” (que Pound des/qualificou, duplicado em substantivo fastio enfático, de “semipensantes e “semiletrados”), e pelo adjetivo “grande” caracterizando o “crítico” (digno, de fato, do título), para fazer ver melhor (revelando a imagem invertida na “câmara escura” – metáfora óptica de Marx, para se somar, através do espelho da analogia fotográfica, à “câmara clara” de Barthes) quem é realmente muito menor/pior. Para concluir, a declaração de voto barthesiana ratifica o veredicto crítico, assinalando que os produtos estéticos contemporâneos são – conforme des/qualifica o adjetivo, marcando o traço de inautenticidade, de farsa – a “forma bastarda da cultura”; não bastasse o substantivo “repetição” já traduzir a ideia de  “cópia”, de reprodução de estereótipos (“a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, como já sentenciara Benjamin), o adjetivo a expõe ainda mais indisfarçavelmente “vergonhosa” aos olhos míopes da imensa maioria: tanto dos pares quanto dos críticos, tanto dos editores quanto dos leitores. A todos aqueles, como asseverou Steiner, que carecem da imprescindível “abrangência das referências”, da fundamental “lucidez” (de luz para ver), de “capacidade de argumentação” (para defender ou condenar pontos de vista estéticos).

 

  1. COM QUANTOS CANTOS SE FAZ UM CANTO?

Fazendo valer mais esta volta digressiva para retomar com muito mais propriedade o curso dos “cantos”, então, aproximo a “câmara” dos ouvidos do aprendiz de leitor, focalizando o “punctum” – em “primeiríssimo plano” – em que os “mares” intertextuais se cruzam nestes versos de Pound e Virgílio, bem como nos de Ezra e Homero, respectivamente (para, a seguir, comentá-los):

I –

“E ventos vindo pela popa nos/ Impeliam adiante, velas cheias,/(…)/ Assim no barco assentados/ Cana do leme sacudido em vento/ Então com vela tensa, pelo mar/ Fomos até o término do dia./ Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano/ Chegamos aos confins das águas mais profundas./(…)/ Por um denso nevoeiro, inacessível/ Ao cintilar dos raios de sol, nem a/ O luzir das estrelas estendido,/ Nem quando torna o olhar do firmamento/ Noite, a mais negra, sobre os homens fúnebres.”

II –

“Ao largo os barcos, desaparece terra,/ Céu daqui, mar dali. Bulcão cerúleo/ Feia borrasca sobre nós carrega,/ Treva e horror pelas águas estendendo./ O vento em brenhas escarcéus levanta,/ Nos joga e espalha pelo vasto pego./ Tolda-se o dia, e pluviosa a noite/ Nos rouba a luz polar; rasgadas nuvens/ Trovejam, relampeiam. Flutuamos/(…)/ Perde o tino, e confunde a noite e o dia./ Nem fulge estrela nas opacas horas,/ E em cerração três dúbios sóis vagamos.”

III –

“Saltos de foca nos flocos espumados da ressaca (…)/ Sob o capuz de peles pretas, sinuosa filha do oceano;/ E a onda corre pelo rego da praia:/ (…) E o pobre Homero cego, cego, como um morcego,/ Ouvir, ouvir o agitar do mar,/ Murmúrios, vozes de homens velhos:/ ‘(…) retornar às vozes gregas’. E pelos arredores da praia (…)./ Sereno fulvo sol areia estirada (…).”

IV –

“Contei, por fim, com a misericórdia de uma deusa, Idoteia, filha de Proteu, o Velho do Mar. (…) Ao submergir no seio acolhedor, Idoteia enviou-nos as peles de quatro focas (…). As peles enganariam o Velho, pai dela. A deusa cavou covas ao longo da praia e nos aguardou sentada. Quando nos aproximamos, ela nos acomodou, um em cada cova, e nos cobriu com as peles. O cheiro nascido das ondas tonteava. (…) Caí sentado na areia aos coices do choro. Nas cavernas de mim mesmo eu pedia para morrer. Viver, ver a luz do sol, para quê? Exausto de rolar na areia em prantos, acudiu-me a orientação do Velho do Mar (…).”

Atento sempre à prudência pedagógica, não é demais enfatizar que adotei o mesmo método (que orientou a progressão interpretativa dos trechos dos três ilustres leitores da “leitura”), editando didaticamente aqui também, para focalizar melhor as relações dialógicos, os excertos dos “cantos” de Pound e Virgílio, e os de Ezra e Homero: só para dizer com quantos “cantos” se faz um “Canto”. A propósito, aproveitando a paráfrase proverbial (a aliteração “bilabial” é só para não esquecer as pedras na travessia), que traz à memória – no dito popular original – a figura da “canoa”, só para não perder a “viagem” das recorrentes metáforas marítimas de desta odisseia intertextual (por tantos “mares dantes navegados”), não haveria de ser excesso de otimismo crer que – sobretudo a esta altura do périplo, ao menos algum avanço – alguns “marinheiros” já tenham notado esse mesmo percurso figurativo (com outro termo do mesmo campo semântico) logo no princípio do primeiro dos dois últimos trechos que citei (de dois ensaios) de George Steiner: “Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total”. O verbo “embarcar”, aliás, é formado pelo processo morfológico – tecnicamente falando – da “derivação parassintética”, em que o prefixo e o sufixo foram agregados simultaneamente à base “barco”, que nos transporta ao princípio da “viagem”: a bordo de Pound, “assim no barco assentados”; cujo verso refaz, “ao largo os barcos”, a trip épica de Virgílio, em busca da “rota” poética perdida (com um olho no passado, outro no futuro, e os dois pés no presente). Em ambos os bardos reiteram-se as figuras “climáticas” oponentes, materializando as forças contrárias à continuidade da “viagem” rumo ao objetivo final (linha de chegada que “coroa de louros” – grande prêmio da “imortalidade” – os heróis navegantes): os “ventos vindo pela popa”, do lado de cá; do lado de lá, o “vento em brenhas escarcéus levanta”. No “canto” de cá, “Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano/ Chegamos aos confins das águas mais profundas./(…)/ Por um denso nevoeiro, inacessível/ Ao cintilar dos raios de sol, nem a/ O luzir das estrelas estendido,/ Nem quando torna o olhar do firmamento/ Noite, a mais negra”. No “canto” especular de lá, “Tolda-se o dia, e pluviosa a noite/ Nos rouba a luz polar; rasgadas nuvens/ (…) Perde o tino, e confunde a noite e o dia./ Nem fulge estrela nas opacas horas,/ E em cerração três dúbios sóis vagamos.”

O poeta americano do século XX – veja/ouça bem – não fez qualquer menção explícita ao antigo poeta latino, sinalizando o trajeto intertextual no mapa do “grande tempo” dialógico: impossível “ver” a voz de Virgílio no coro de Pound, portanto, sem ter ouvido antes os “cantos” da “Eneida”. A memória literária, pois, é que permite identificar (como a mim, por exemplo, e a não muitos – ou muito poucos – leitores de “índole responsiva”), entre “massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos”, os timbres e tons de um/uns em outro/outros, atestando que “tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada”: como prova bakhtiniana de verdade, enfim, dos “determinados momentos” em que se atam as pontas  – tão distantes no tempo-espaço – de outrora e de agora, ligando o lado de lá e com o de cá, como ponte que assegura o “sucessivo desenvolvimento do diálogo”. Mesmo se o autor dá a deixa, como a dica metonímica do nome do autor pelo da obra no trecho III, primeiro é preciso reconhecer que Homero assume ali o papel de personagem, em cuja máscara se oculta – em ambígua condensação – tanto o herói “Odysseus” quanto o oráculo Tirésias, nomeados no “Canto I” e metamorfoseados em “morcego-cego” – como “duplos” de ponta-cabeça – no verso esfíngico do “Canto II”.  Aliás, vale lembrar que Pound faz alusão, aí, ao “Canto XII” da “Odisseia”, quando o herói, agarrado a um tronco após o naufrágio (castigo do deus Hélio, por terem os incautos marinheiros, devorado seu rebanho): “Agarro-me, de um salto, ao tronco da figueira. Imito no gesto o morcego. De nada me valem os pés, não tenho onde firmá-los.” (HOMERO. “Odisseia v.2: Regresso”. Tradução Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2014, p.237-238). Outro xis da questão, mesmo para quem leu a “Ilíada” e a “Odisseia”, é lembrar que a passagem do “capuz de peles pretas”, retomando metonimicamente (para acrescentar-lhe informação narrativa) a referência imagética aos “saltos de foca nos flocos espumados da ressaca”, está nas páginas não do triunfo dos gregos na Guerra de Troia, mas nas desventuras do regresso dos vitoriosos (postos à prova – para lembrar que a guerra só termina com a derradeira morte – na luta pela vida).  É preciso ver, então, sob o disfarce do “capuz”, a face do rei espartano Menelau, cuja fuga da esposa (Helena, rainha da Lacônia) com o príncipe Páris (filho do rei troiano Príamo e irmão de Heitor, que seria morto por Aquiles, ferindo-o também mortalmente no “calcanhar) daria início à Guerra. A memória aguçada do leitor enciclopédico, assim, levando-o ao “Canto IV” homérico (cujo excerto transcrevemos), reconstitui-lhe a história a que aludem os versos de Pound, quando o jovem Telêmaco, em busca do pai-herói perdido, após encontrar em Pilos o rei Nestor, dirige-se com Pisístrato (filho de Nereu) à Lacônia, para falar com Menelau. Este lhe contou que, no difícil regresso para casa, enfrentando a fúria de Poseidon (que os romanos chamariam de Netuno), precisava driblar seu ardiloso filho Proteu, o “Velho do Mar”, que tinha o dom da metamorfose (assumindo, logo, as mais diversas feições). A filha deste (Idoteia), por sua vez, auxilia o herói, não só lhe informando que o pai passava em revista as focas antes de repousar nas profundezas, mas fornecendo a ele e aos três sobreviventes da nau peles de foca, para enganarem o mestre maior dos disfarces e seguir viagem.

Antes de seguir nossa viagem intertextual, a propósito, convém dizer aos leitores “não sofisticados” que o mítico pastor das focas foi focalizado (não perderia, novamente, o trocadilho), também, numa das “Odes” do “Livro I” de Horácio, cujos versos iniciais – rememorando o “dilúvio” arcaico, muito antes do “bíblico” – fazem alusão aos estertores terminais de Troia, ardendo em chamas por castigo do irascível Cronida (epíteto de Zeus): “Já assaz enviou o Pai sobre a terra a neve/ e o funesto granizo e, lançando-se sobre as sagradas/ colinas com sua rubra destra, aterrorizou/ a nossa cidade,/ e inspirou nos povos o terror de que voltasse/ a terrível idade de Pirra, queixosa de novos portentos,/ quando Proteu levou todo o seu gado (…)/ assim que o mar galgou a terra.” (HORÁCIO. “Odes”. Edição bilíngue: tradução, introdução e notas de Pedro Braga Falcão. São Paulo: Editora 34, 2021, p.61). Além desta, urge acrescentar mais duas informações. A primeira é sobre o verso “So-shu sacudiu o mar”, esclarecendo-lhes que, sob este nome (subvertido/criado por Ezra) oculta-se o do poeta chinês Su-ma Hsiang-ju (179 a.C – 117 a.C), o qual os antigos acreditavam ter – qual o velho Proteu – o poder de se transformar. Um dos maiores poetas da China (ao lado de Du Fu, pertencente também à Dinastia Tang), Li Tai Po ou Li Bai (701 – 762 d.C), então, ironizando-o, dizia que o tal mestre (chamado de Shiba Shojo pelos japoneses) sabia fazer espuma, mas não ondas. Reza a lenda, aliás, que o pária (par de Páris) “So-shu” teria seduzido/sequestrado a esposa (espécie de Helena de olhos puxados) de um homem rico e poderoso (qual Menelau). A propósito, vem bem a calhar a evocação destes versos do “Canto IV” de Ezra: “Palácio em luz esfumaçada/ Troia, só destroços de muralhas fumegantes (…)”. Além da referência à cidade frígia incendiada pelos aqueus (outra denominação dos gregos, frequente nas tragédias de Sófocles, como “Filoctetes”, e de Eurípedes, como “As Troianas”), o erudito poeta parece fazer alusão a Li Bai nestes versos: “Lua crescente em águas azuladas,/ Ouroverde em águas rasas; um galo negro canta lá na escuma” (POUND, Ezra. “Os Cantos” – Canto I. Tradução de José Lino Grünewald. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p.31). Diz a lenda que o bardo maior, notório boêmio, teria morrido afogado nas águas do Grande Rio (“Yangtese”, ou Rio Amarelo), na tentativa de pegar o inebriante reflexo da lua no traiçoeiro espelho d’água. Para ampliar um pouco o tão precário repertório literário dos pares de “Le Little Petit Poucet Poète”, ofereço-lhes – à guisa de ilustração (nos dois sentidos) – estes proféticos versos: “Bom vinho em cálice de ouro (…)/ Quietos talheres copos: finda-se festim/ Com a espada o coração dispara: cuido à volta/ Rio Amarelo gela: não posso cruzá-lo/ (…)/ e então em sonho rumo ao sol ajeito o barco/ Difícil caminho     é difícil o caminho/ o mundo dá voltas      e hoje onde estou/ E quando a brisa traz bom tempo e acalma as ondas/ levanto vela às nuvens mares infinitos” (“Difícil é o caminho”. In. “Antologia da poesia clássica chinesa – Dinastia Tang”. Tradução, organização, notas e introdução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p.83). Com esses dados, fazem mais sentidos as reiterações e os acréscimos do “Canto III”, fazendo a ponte entre as águas chinesas e as gregas: “E So-shu sacudiu o mar, So-shu também,/ usando também a longa lua para desnaturar…/ sinuoso volteio de água,/ músculos de Posídon,/ (…)/ O vítreo luzir de vagas/ no investir das marés à luz do sol,/ palidez de Héspero/ como cinza da onda,/ onda cor de polpa de uva.” (“Os Cantos”, p.28).

Antes de dar a segunda informação, para prosseguir nossa odisseia por tantos “mares dantes navegados”, os ventos intertextuais sopram-me na memória outro poema de Li Bai, que tem mais ainda a ver com essas histórias (como se seu tragicamente poético afogamento já estivesse assinalado, de modo mais explícito, nestes versos). Aproveitando que já falei também de Haroldo de Campos, transcrevo, na sequência da primeira tradução, a versão (que me parece – em que pese minha absoluta ignorância em língua “ideogrâmica” – poeticamente superior) do indescritível transcriador:

 

“Em meio às flores a jarra de vinho

virar sozinho sem mais companhia

Erguer o copo à lua reluzente

e mais a sombra agora somos três

Contanto a lua não saiba beber

e em vão me devolva o corpo

por um momento seguem lua e sombra

Todo prazer é só uma primavera

Eu canto a lua flana tremulando

Danço e se soma a sombra redobrando-se

Despertos dividimos alegria

depois de ébrios cada qual um caminho

Até não mais, desfeitos nós se apartam

rever-se um dia pela Via Láctea.”

(“Bêbado sozinho sob a lua”. In. “Antologia da poesia clássica chinesa – Dinastia Tang”. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p.77)

“entre flores: uma jarra de vinho

solitário       bebendo sem convivas

erguer a copa à lua lunescente

lua e sombra     :     somos três agora

                  (mas a lua é sóbria

                   e em vão

                   a sombra me arremeda)

um instante       sombra e lua:    celebremos

a alegria            volátil primavera

               canto   e a lua   se evola

               danço  e a sombra  se alvoroça

despertos              o prazer nos unia

ébrios                    separamos os caminhos”

(CAMPOS, Haroldo de. “litaipoema: transa chim”. In. “A educação dos cinco sentidos”. São Paulo: Iluminuras, 2013, p.85)

Posto isso e aquilo, enfim, a segunda informação é sobre um verso, omitido nos excertos, em que é mencionada uma certa “filha de Lir”. Confessando que, desconhecendo a hermética referência do “Canto II”, só ao pesquisá-la é que descobriria ser o tal pai, na verdade, o deus celta do mar: o enciclopédico vate, pois, qual perversa Esfinge, propôs aos navegantes – como se testando sempre os limites de sua competência – outra charada. Para seguir em frente na árdua empreitada hermenêutica, é preciso saber que, sob outra forma (qual Proteu), disfarça-se a furiosa divindade grega oceânica. Prosseguindo, enfim, apresento-lhes os demais fragmentos – devidamente editados e em outra ordem – para facilitar a decifração dos “enigmas”: em primeiro lugar, os quatro versos iniciais do “Canto II” de Pound; em segundo, os dois primeiros e os dois últimos dos oitos transcritos do “Canto I” do épico camoniano; em terceiro e quarto, os excertos dos ensaios de Ezra, respectivamente, sobre Camões e sobre a poesia provençal. Posto isso, vejamos/viajemos de olhos bem abertos:

I –

“Cesse tudo, Robert Browning,

somente pode haver um único ‘Sordello’.

Mas Sordello, e o meu Sordello?

Lo Sordels si fo di Mantovana.”

II –

“Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

(…)

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.”

III –

“Os Lusíadas são (…) a primeira tentativa bem sucedida na Europa moderna de construir um poema épico sobre o modelo antigo (…). Os que apreciam as partes submarinas (…) também apreciarão provavelmente a parte do sexto canto de ‘Os Lusíadas’ que trata da visita de Baco a Netuno:

‘No mais interno fundo das profundas

Cavernas altas onde o mar se esconde,

Lá onde as ondas saem furibundas

Quando às iras do vento o mar responde.’

(…).”

IV –

“Dante e Browning despertaram tamanho interesse por Sordello que não seria demais apresentá-lo sucintamente, tal como ele aparece num manuscrito da biblioteca ambrosiana de Milão: ‘Lo Sordels si fo di Mantovana.’ Sordello era do território mantuano (…).”

Começo, conforme o habitual, pelo início: “Cesse tudo”. Relendo isso, conto-lhes que me veio à memória uma conversa – entre tantas – com um grande poeta, há cerca de dois anos, sobre duas traduções da “Odisseia”: a de Odorico Mendes e a de Donaldo Schüler. Sabendo que o ilustrado amigo fora muito amigo de Haroldo de Campos (que também traduziu, entre tantos autores, Homero), mostrei-lhe algumas criações lexicais do “bardo barbado” (como Haroldo se epitetou, ao autografar-me um livro lançado às vésperas de sua morte, em 2003) muito parecidas com certos neologismos das “transcriações” homéricas de Odorico e Donaldo. Como meu interlocutor protestava contra supostos excessos de tradutores da mesma escola da “intradução transcriativa”, cuja liberdade “irresponsável” resultaria – em sua inamovível perspectiva – na descaracterização dos textos originais, comentei que me incomodava bastante, de fato, uma versão do “Canto II” (de cujo tradutor, infelizmente, não consigo recordar agora o nome) na qual, em vez de “Cesse tudo”, consta “Já basta”. Não entendendo minha objeção, expliquei-lhe que, nesta infeliz versão, o tradutor não percebeu que “il miglior fabbro” do século XX evocou Camões, logo não verteu o verso restituindo-lhe a identidade originária (diferentemente de José Lino Grünewald, o exímio tradutor dos excertos aqui transcritos). Como ainda desconfiasse de minha nota crítica, uma vez que lhe parecia improvável que o “antena da raça” houvesse realmente citado o vate lusitano, li ao hesitante amigo, primeiro, os mesmos versos transcritos no trecho II, seguidos dos excertos do respectivo ensaio poundiano sobre o autor de “Os Lusíadas” (destacados no trecho III). Para concluir a réplica, disse-lhe que nada disso haveria de nos causar surpresa, evidentemente, uma vez que “Os Cantos” evocam também o “sábio grego” Homero e o latino Virgílio (em cuja “Eneida”, vale sublinhar, o herói é filho do troiano “Anquises”). Reconstituindo esse raro diálogo com o interlocutor literato, embora estando já esclarecido o ponto de partida, não poderia deixar de lhes sublinhar que não haveria de ser mera coincidência o bardo americano ter citado – nas páginas finais da mesma leitura crítica – exatamente estes versos do “Canto VI” da epopeia camoniana: “No mais interno fundo das profundas/ Cavernas altas onde o mar se esconde,/ Lá onde as ondas saem furibundas/ Quando às iras do vento o mar responde.” Além da referência a Netuno, nome romano do mesmo demoníaco deus grego Poseidon mencionado há pouco na interpretação do “Canto II” do “épico sem enredo” (nos termos de Hugh Kenner, entre as aspas do tradutor Grünewald), o rigoroso artífice do verso põe diante dos espectadores a mesma atmosfera adversa descrita por Homero, Virgílio e Pound, refletindo – e refratando – a tão prototípica intempestividade do mitológico senhor supremo oceânico (presente, por sua vez, também na épica trip da intrépida trupe ibérica de Vasco da Gama).

Embora tudo pareça tão claro, é preciso ainda, desgraçadamente, esclarecer: como no paradoxo sarcástico do “cínico” (em sentido filosófico) Diógenes, acendo a lanterna didática e ilumino a luz, a fim de fazer – quem sabe, quase um milagre – o cego néscio ver o “óbvio ululante” (lembrando a sábia máxima oriental lembrada por Barthes, diria que o lugar mais escuro é embaixo da lâmpada). Para que não haja “olvido” (aspas para ouvir o trocadilho), assim, é bem prudente apontar que os ventos de Virgílio sopraram também nos ouvidos do caolho Luís Vaz: “Lá onde as ondas saem furibundas/ Quando às iras do vento o mar responde” parecem reflexos de “Treva e horror pelas águas estendendo./ O vento em brenhas escarcéus levanta,/ Nos joga e espalha pelo vasto pego”. Do mesmo modo que, muitos séculos bem à frente, nos de Ezra os épicos ecos de Camões: se, de um lado, ouve-se que este grita “No mais interno fundo das profundas/ Cavernas altas onde o mar se esconde”; de outro, escuta-se que aquele responde “Chegamos aos confins das águas mais profundas”. Posto isso e aquilo, cuidando ainda que não se perca o fio da meada, não poderia perder, é claro, a ponte (para que até – ao menos, os menos – perdidos se encontrem “nel mezzo del cammin” do “grande tempo”) entre o poeta épico português e aquelas leituras com lupa dos três ilustres “leitores” de olhos de Argos. Sendo bem explícito, explico bem: os versos “Cesse tudo o que a Musa antiga canta,/ Que outro valor mais alto se alevanta” parecem ser mesmo a “mais perfeita tradução” (aspas para Caetano) da sábia assertiva barthesiana de que o único meio, no meio do caminho – se “toda linguagem antiga é imediatamente comprometida”, e “toda linguagem é antiga desde que é repetida” -, só poderia ser mesmo “fuga para frente”. Nessa perspectiva precisa é que “Os Lusíadas” seriam – conforme bem pontuou Pound – “a primeira tentativa bem sucedida na Europa moderna de construir um poema épico sobre o modelo antigo”. Segundo Bakhtin, logo, o poeta maior (só do século passado?) – grande leitor do “grande tempo” – é prova de verdade de que o espírito criador “sempre deve contatar com outro sentido para revelar os novos elementos da sua perenidade”: o que significa que a autêntica grande obra, efetivamente, atesta a “compreensão recíproca entre os séculos e milênios, povos, nações e culturas”, assegurando “a complexa unidade de toda a humanidade, de todas as culturas humanas”. Considerando, então, que Pound era leitor de Camões, Virgílio e Homero, e Camões era leitor de Virgílio e Homero, e Virgílio era leitor de Homero, soma-se à “espiral de vozes” hermenêuticas, finalmente, a mais perfeita conclusão de George Steiner: “A capacidade de citar de memória (…) longos trechos de Homero, Virgílio (…) gerou uma tessitura compartilhada de ecos, de identificações e reciprocidades intelectuais (…). O leitor clássico (…) situa o texto que está lendo em um espaço cheio de ressonâncias. Um eco responde a outro (…). O leitor reage ao texto com toda a densidade articulada de seu próprio repertório de referências e associações”.

 

  1. SEM RELEITURA DA TRADIÇÃO NÃO PODE HAVER RUPTURA

Retomando (à guisa de ilustração, novamente) o ponto de partida, para ler o “Cesse tudo” do “Canto II” poundiano, diria que não só é preciso ter lido o “Canto I” camoniano, bem como os “cantos” homéricos ou virgilianos, mas também outros de outros gêneros discursivos. Quer dizer, para interpretar os célebres versos épicos lusitanos “Cale-se de Alexandre e de Trajano/ A fama das vitórias que tiveram”, o “leitor clássico” (em estrito sentido histórico, ou lato de ilustrado/sofisticado) poderia “situar o texto” no “espaço de ressonâncias”, por exemplo, do discurso político. Isso não quer dizer, entretanto, que (não por excesso de prudência, é preciso destacar), entre tantas vias possíveis de “identificações” e “reciprocidades” em seu vasto universo de “referências” culturais, fosse preciso não só ter lido “O Príncipe”, mas também ter lembrado precisamente este trecho de Maquiavel, para então compreender as alusões onomásticas do bardo português: “Aliás, foi sempre uma opinião e uma máxima dos homens sábios o ‘quod nihil sit tam infirmum aut instabile, quam fama potentiae non sua vi nixa’ (…). De resto, facilmente desvendaremos o modo pelo qual essas forças próprias deverão ser instituídas ao examinarmos (…) e ao observarmos a forma com que Filipe, pai de Alexandre Magno, e muitas repúblicas e principados armaram-se e organizaram-se. A tais instituições remeto-me inteiramente.” (MACHIAVELLI, Nicoló di Bernardo dei. “O Príncipe”. Porto Alegre: L&PM, 1998, p.81). Tampouco precisaria saber que a citação em latim quer dizer “nada no mundo é tão instável e frágil quanto a fama de um poder que não se firma em suas próprias forças”, ouvindo ainda – entre as aspas maquiavélicas – a voz do historiador romano Tácito. Não seria preciso saber também que o preceptor do filho de Filipe foi o grande Aristóteles (de quem já citamos – vale lembrar – a máxima de que “o que é mais raro é preferível ao que é abundante; por exemplo, o ouro é preferível ao ferro”). Em todo caso, o que importa destacar é que não por acaso “a fama de um poder que não se firma em suas próprias forças” – como reflexo/reverso especular na “câmara escura” do ilusório poder – reforça, por vias avessas, “A fama das vitórias que tiveram”: ou seja, Alexandre III da Macedônia não seria imortalizado só por ser filho do celebrado conquistador de quase toda a Grécia; para ser “Magno”, de fato, fazendo jus ao epíteto “o Grande”, precisaria certamente fazer do nome de seu pai – Lacan explica Freud – seu próprio nome, impondo-se sobre o poder imperial persa, além de se assenhorar da Síria e assegurar a hegemonia no Egito também. A propósito, numa das narrativas reunidas em “il Novellino” (súmula de contos, fábulas ou novelas breves de tradição oral, cuja gênese remonta aos séculos XIII e XIV), que se passa em Alexandria, lê-se a seguinte nota (das tradutoras e organizadoras da antologia em língua portuguesa, Aurora Bernardini e Lucia Wataghin): “Talvez Alexandria, no Egito, fundada em 331-332 a.C. por Alexandre Magno. Há uma lenda, muito difundida, de que ele teria fundado doze Alexandrias.” (“Aqui se determina uma questão e a sentença que foi dada em Alexandria”. In. “Quatro séculos de novelas italianas”. São Paulo: Sarandha Assessoria Educacional, 2021, p.57). Quanto a Trajano, por fim, trata-se do importante imperador romano em cuja administração o Império alcançou sua maior extensão territorial. Vale lembrar estes versos que Dante – no “Canto X” do “Purgatório”, lhe dedicou: “Era historiada ali a suma glória/ do romano exemplar cujo valor/ moveu Gregório a obter-lhe a grã vitória;/ eu falo de Trajano imperador (…).” (ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2018, p.322). Para não dizer que não falei que, para ser imperador ou príncipe, é preciso saber “a arte da guerra” e paz (aspas para o tratado militar do estrategista chinês Sun Tzu, e alusão ao título do romance do mestre russo Liev Tolstói), encerro com mais estes excertos da obra-prima de Maquiavel:

“Quanto ao exercício das suas meditações, o príncipe deve ler os relatos da história e neles considerar as ações dos grandes homens; notar como comportaram-se nas guerras; examinar as razões das suas vitórias e das suas derrotas – para estas poder evitar e aquelas imitar -; e, sobretudo, deve fazer como um daqueles grandes vultos do passado que tomaram o intento de mirar-se nalgum personagem precedentemente louvado e celebrado, trazendo sempre consigo o registro dos seus feitos e dos seus gestos, como dizem que Alexandre Magno espelhava-se em Aquiles, César em Alexandre e Cipião em Ciro (…). Esta regra é ministrada aos príncipes de uma forma velada pelos escritores de outrora, em cujos textos lemos que Aquiles e muitos outros daqueles príncipes do mundo antigo teriam sido confiados ao centauro Quíron e sob a sua disciplina educados.” (Idem, pp.85, 99-100).

Depois de tanto dizer sobre o “Cesse tudo”, atando as pontas entre o “Canto II” poundiano e o “Canto I” camoniano, é hora de falar um pouco sobre os dois nomes após a vírgula, ambos integrantes do seleto “Paideuma” do rigoroso vate americano: Robert Browning e Sordello. O primeiro foi um importante poeta e dramaturgo inglês do século XIX (1812-1889), autor de mais de trinta obras, entre elas, uma biografia ficcional intitulada “Sordello”, a que Ezra fez alusão, aliás, no verso “somente pode haver um único ‘Sordello’.” Quanto a este, trata-se do trovador provençal do século XIII Sordello de Goito, que Dante não só mencionaria no “Canto VI” do “Purgatório”, mas também teria celebrado nas páginas do tratado “De Vulgari Eloquentia”, conforme as palavras do comentarista Henry Wadsworth Longfellow: “[O poeta] fala de Sordello de Mântua como um homem tão cuidadoso com seu idioma que, não somente nos seus poemas, mas mesmo quando falava, abandonava o sotaque de sua província. Mas aqui não se discute o provençal usado por Sordello, o trovador, mas apenas os dialetos italianos em comparação com o italiano universal, que Dante afirma pertencer a todas as cidades italianas.”(https://www.stelle.com.br/pt/purgatorio/notas_6.html). Pound mencionou o bardo, em dois ensaios: primeiro, em “Linha de demarcação”, cujo escopo é a crítica aos maus críticos que o censuraram “sob o pretexto de que eu deveria estar ‘fazendo obra original e não gastando minhas energias em traduções’, considerando isso “como uma prova de que eu estava simplesmente a colher margaridas”. Em sua réplica sarcástica, apontou-lhes a inconsistência sofismática nestes termos (quem dera tivessem realmente “ouvidos de ouvir” os tantos “Le Little Petit Poucet Poète” que mini/ministram cursos supletivos de escrita recreativa): “Dante, que era capaz de executar o trabalho e de sustentar as ideias gerais, anotou um registro parcial dos procedimentos. (…) A crítica pelo exercício no estilo de um determinado período. Assim como você não haveria de considerar seriamente a perícia de um homem no tênis enquanto ele não pudesse realizar ou tivesse realizado alguma demonstração num torneio, também nós podemos supor que até que um homem que seja realmente capaz de dominar um determinado conjunto de procedimentos, devem existir, nestes, inúmeros elementos dos quais ele só tem conhecimento imperfeito (…). Crítica por via da música, vale dizer, claramente, musicar as palavras de um poeta: por ex., em ‘Le Testament, musiquei as de Villon e em ‘Cavalcanti’, as de Guido e Sordello.” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.85-86). O outro ensaio, então, em que ele abordara o bardo provençal (citando Dante e Browning como seus mais notáveis admiradores), é “Trovadores – tipos e condições” (do qual destaquei o excerto IV, logo após aquele sobre Camões). O que de fato merece destaque aqui – não para dizer “com quantas leituras se faz um leitor”, mas para falar que não se aprende a ler certas obras sem ter lido muitas outras, de distintos gêneros discursivos – é que o “Lo Sordels si fo di Mantovana” do “Canto II”, na verdade, é a transcrição fidedigna do que o autor lera “num manuscrito da biblioteca ambrosiana de Milão”. Para concluir o parágrafo, finalmente, não poderia perder a deixa, deixando de dizer que, ao falar da sintomática falta de debates literários na cena contemporânea tupiniquim – não só entre os escritores, ou entre estes e os críticos, mas também entre estes entre si -, citei como (mau) exemplo desta dinâmica letárgica (“observando a mesma defecção mental na crítica literária”, sob as clínicas lentes diagnósticas de Ezra Pound) um certo célebre acadêmico das letras e crítico de ofício na grande imprensa que, criticado duramente por mim (em três artigos, totalizando cerca de cinquenta páginas), fugiu ao confronto. Talvez porque, vangloriando-se de ser ilustre membro da Academia Ambrosiana de Milão, não se dignaria a replicar objeções de quem não estivesse à altura de seus narcísicos títulos nobiliárquicos. Moral da história (reeditada como farsa abaixo da linha equatorial): se Luís XV não só não fosse nanico, mas também – sendo liliputiano – não tivesse complexo de inferioridade, há de se convir que não haveria por que ter inventado – salta aos “olhos de ver” – o tal salto alto. Em síntese, vendo “através do espelho” de Carroll, na “câmara escura” ideológica de Marx – as “relações aparecem invertidas”: de ponta-cabeça, pois, o problema – eis o xis da ilusão de ótica – é mais embaixo.

Aproveitando a metáfora topológica (sem economizá-la, portanto, como o “avarento”; sem gastá-la, contudo, como o “pródigo” – em busca da “justa medida” entre os extremos viciosos do “quarto círculo”), como aponta o parêntese, para “atar as duas pontas”, costurando o fim ao começo, ligando o “cabo” ao “introito” (diria Machado), parto do maior bardo (não do “trecento”, mas de todos os tempos). Para saber o que é preciso aprender para aprender a ler “il miglior fabbro”, por exemplo, é preciso saber, ao menos, que não se sabe hoje sequer o mínimo do que se deveria saber para ser, ao menos, não tão ignorante para ler o mínimo do múltiplo incomum – único – Dante. Àquela póstuma época em que era preciso, para ser poeta, não só saber poesia, como bem lembrou – lembrando o professor Hilário Franco Jr. – a professora Aurora Bernardini Fornoni (no ensaio “Dante e a Divina Comédia: história, poética e crítica”) os “anos de aprendizagem” (entre aspas duplas, como diria – duplamente – Goethe, “o silêncio da gestação das eras”): a educação do aprendiz de leitor – a que se seguiria a do poeta aprendiz (aprender a ler para aprender a escrever) – seguiu rigorosamente o monumental modelo pedagógico medieval do “Trivium” e do “Quadrivium”. Isto é, nada menos do que “Gramática (Língua e Literatura Latina); Retórica (Estilística e História); Aritmética, Geometria e Geografia; Astronomia (Astrologia e Física); Música (Frequência e Relações Matemáticas); Teologia e Filosofia.” (FORNONI, Aurora Bernardini. “O modelo americano e outros ensaios”. São Paulo: Editora Madamu, 2022, p.104). Para não falar que já não disse que Haroldo de Campos já falou e disse – recomeçando o “lance de dados” (diria Augusto, “ah Mallarmé/ a carne é triste/ e ninguém te lê/ tudo existe/ para acabar em tv”) – isto: “e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever”. Isto é, no princípio – da travessia da “Divina Comédia” – era Virgílio: “Eu comecei: ‘Poeta que me guias,/ Julga minha aptidão, se é compatível / Com o árduo passo que ora me confias.” (ALIGHIERI, Dante. “A Divina Comédia”. Tradução de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2018, p.40). Antes de passar adiante, enfim, passo a palavra a Steiner – oito séculos à frente – para lembrar que, se não estivessem hoje, tanto escritor quanto leitor, bem atrás ainda dos que já estavam cinco séculos distantes de Dante, “uma turma de ‘leitura criativa’ [não] mover-se-ia passo a passo”: ou seja, não “começaria pela quase dislexia dos hábitos atuais de leitura”, com a “ambição de atingir o nível de competência bem-informada que as pessoas eruditas da Europa e dos Estados Unidos possuíam, digamos, no final do século dezenove”. Antes o poeta menor contemporâneo, pois, soubesse que o poeta maior do medievo já sabia, já desde o “Canto I” do “Inferno”, que só superaria o mestre latino se desse de fato “o árduo passo que ora” lhe fora confiado: como dissera Barthes, “só existe este meio”, afinal, “nel mezzo del cammin” da criação: quer dizer, se “toda linguagem se torna antiga desde que é repetida”, e “toda linguagem antiga é imediatamente comprometida”, portanto, sem “fuga para a frente” não dá “para escapar à alienação da sociedade presente”. Ou seja, como Pound bem pontuou sobre o propósito do despropósito do estereótipo beócio paralisante, “se determinada coisa foi dita, de uma vez por todas, na Atlântida ou na Arcádia, 450 anos antes de Cristo ou 1290 anos depois, não cabe a nós modernos sair por aí a redizê-la ou a obscurecer a memória dos mortos, repetindo a mesma coisa com menos talento e convicção.” (POUND, Ezra. “A arte da poesia: ensaios escolhidos”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.19). Em outros termos, em tercetos decassílabos em “terza rima” (para não dizer que não falei que para ser poeta é preciso saber, evidentemente, técnica poética), eis a clássica – não velha – questão estética de princípio “para escapar deste lugar selvagem” diletante (três páginas adiante daqueles – mesm/outros – versos do “Canto I” do “Inferno” de Dante):

“Ó de todo poeta honor e lume,

valha-me o longo estudo e o grande amor

que me fez procurar o teu volume.

Tu és meu mestre, tu és meu autor,

foi só de ti que eu procurei colher

o belo estilo que me deu louvor.

Mas vê essa besta que me fez volver.

Dá-me, meu sábio, socorro e coragem

contra ela que meus pulsos faz tremer.

A ti convém seguir a outra viagem,

tornou-me ele ao me ver lacrimejando,

para escapar deste lugar selvagem”

(Idem p.37).

A esta altura, entre altos e baixos, mínimos e máximos, bardos e bastardos, aos que “têm ouvidos de ouvir” e ouvem, não seria preciso repetir que tudo parte sempre do “já-dito” (seja deste ou daquele – ou destes e daqueles). Ou seja, sem o “honor e lume” de Homero, não haveria Horácio nem Virgílio; sem Homero, Horácio e Virgílio, não haveria Ovídio; sem Homero, Horácio, Virgílio e Ovídio, não haveria Lucano; sem ouvir Homero, Horácio, Virgílio, Ovídio e Lucano, Dante não teria aprendido – “sem o longo estudo” disso e daquilo tudo – a ver para pensar, nem a pensar para escrever. Quer dizer, se tivesse “olhos de ver” mas não visse “de quatro sombras” a do “Mestre”, ou “ouvidos de ouvir” que não lhe ouvissem o “chamado” depois de lhes ouvir o “longo colóquio”, não haveria de lhe ser concedido o “privilégio da acolhida na sua comunidade”, sendo “o sexto entre tanto saber”. A saber, não fosse preciso saber isso (que ainda estaria bem longe, contudo, de ser o máximo possível de – “infinito” horizonte impossível – tudo), isto é, sem ver sobre os ombros largos de gigantes no longo “grande tempo”, não seria possível Dante dizer – “fuga para a frente” (como apontou Barthes) – nada disto:

“Logo um chamado foi por mim ouvido:

‘Honrai nosso poeta eminente!

Sua sombra volta, que tinha partido’

Ao final desse apelo veemente,

De quatro grandes sombras vi a chegada;

seu semblante nem triste nem contente

parecia; logo ouvi do guia a chamada:

‘Olha o que vem à frente qual decano

dos outros três, segurando uma espada;

ele é Homero, poeta soberano;

o satírico Horácio junto vem,

terceiro é Ovídio e último Lucano.

Depois que cada um deles detém

os mesmos dotes co’os quais fui saudado

recebo sua honraria como convém.’

Assim o belo grupo vi formado

da escola do senhor do excelso canto

cujo voo, como d’águia, é incontestado.

Longo foi seu colóquio, e entretanto

acenavam a mim, e eu vi o prazer

no sorriso do Mestre meu, porquanto

o privilégio iriam me conceder

da acolhida na sua comunidade.

E assim fui o sexto entre tanto saber.”

(Idem, p.55-56).

Por uma série de razões, conforme se vê, Dante é a mais perfeita ilustração de tudo o que vimos discutindo neste longo artigo. Ao se situar como o “sexto entre tanto saber”, depois de Homero, Horácio, Ovídio, Lucano e – seu “Mestre” – Virgílio, expôs a genealogia de sua formação poética (nos termos da analista do discurso Eni Orlandi, a “filiação dos dizeres”). A propósito, não por mera coincidência, ouvem-se nesses tercetos, sobretudo, estes eloquentes versos da “Sátira Décima” do “Livro I” de Horácio (contrapondo aos asnos vários – a arte poética, é claro, não é obra do acaso – os raros sábios):

“(…) – Outrora

Eu, que sou daquém mar, uns gregos versos

Tentei fazer. – Quirino eis se me antolha;

(Era depois da meia-noite, quando

Não mente o sonho) e com tal voz me embarga:

‘Ao mato leva lenha, é doido aquele,

Que a turba imensa dos poetas gregos

Quer ainda aumentar.’

(…)

Com estes meus versos me deleito e folgo;

Não para que de Apolo o templo atroem,

Solicitando a aprovação de um Tarpa;

Nem para que uma vez, e outra, à cena

Vão mendigar os públicos aplausos:

Dentre os vivos só tu, Fundano, podes,

Polido ornar os cômicos escritos

Com a sagaz meretriz, com o astuto Davo,

Que ilude e zomba do avarento Cremes.

Três vezes com o pé o chão ferindo,

Canta Polião dos Reis os tristes feitos:

No épico é Vário sem igual, sublime:

As Camenas, ao campo afeiçoadas,

A Virgílio a doçura e graça deram:

Só podia na sátira, debalde

Por Varrão já tentada, e vários outros,

Abaixo do inventor assinalar-me.

Nem tirar-lhe da fronte, certo, ousara

O laurel que com tanto aplauso a cinge (…).

E, por quem és, inteligente e douto,

Nada achas que arguir no grande Homero?

Não ris dos versos, menos graves, de Ênio?

Pois, se em si fala, não se crê mais digno?

E que nos tolhe os seus escritos lendo?

De ver, se escasso gênio, ou duro o assunto

Lhe nega o verso mais suave e culto (…).”

(HORÁCIO. “Sátiras”. Tradução de António Luís Seabra. São Paulo: Edipro, 2011, p.72-73).

Por isso o bardo florentino serve de exemplo maior àquela lição do “antena da raça” americano aos “jovens poetas” dos quatro cantos desafinados (no ensaio “Retrospectiva”, não à toa já tão citado – seja ali, seja aqui – neste artigo): “Deixe-se influenciar pelo maior número possível de grandes artistas, mas tenha a honestidade de reconhecer sua dívida”. A obra-prima do hábil artífice medieval atesta também estas emblemáticas constatações analógicas de Ezra (no ensaio “Linha de demarcação”, evocado outrora e há pouco de novo): “Não é de esperar que o conhecimento da consciência humana, ou daquilo que materialmente a registra com maior eficiência, a linguagem, possa dispensar um progresso de método pelo menos equivalente ao das ciências particulares (…). Nenhum biólogo espera formular uma biologia inteiramente nova. Quando muito, conta ele explorar um campo limitado, a fim de aprimorar o conhecimento de certos pormenores e, se tiver sorte, esclarecer as relações desse campo, tanto no que se refere ao próprio campo, como no que lhe é exterior (…). O bom cientista descobre algumas similaridades de vez em quando, descobre grupos de famílias, comportamentos semelhantes em presença dos mesmos reagentes.” (vale também sublinhar, aliás, tanto ao sem noção “Le Little Petit Poucet Poète” quanto ao vaidoso membro da Academia Ambrosiana de Milão, este comentário conclusivo: “não vejo nenhum motivo por que uma seriedade tal deva ser alheia ao crítico de letras”). Poderia dizer, pois, que Dante tem tudo a ver, para atar as pontas no mapa desta “odisseia” intertextual – aos quatro “cantos” de tantos “mares dantes dantes navegados” -, porque “ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido”: sem perder a rota metafórica, na síntese de Steiner, isso é “embarcar numa troca total”. Poderia dizer, assim, que Pound leu em Dante – entre tantos – Homero, Virgílio e Ovídio; como Dante leu em Ovídio – de trás para a frente – Homero e Virgílio; como Virgílio, por sua vez, leu a viagem de ida e volta à Ítaca perdida, chegando à Roma Prometida – ponto de partida para o parto dantesco da Itália. Isso tem tudo a ver com o que disse, enfim, o tradutor dos “Cantos”

(José Lino Grünewald) sobre essa viagem dialógica no “grande tempo” bakhtiniano: “Na estrutura referencial dominante, interpolam-se também a ‘Odisseia’ e a ‘Divina Comédia’, além da mitologia grega, Virgílio e trechos da história da China, dos Estados Unidos e da Itália.” (Obra citada, p.16). Na “espiral de vozes” épicas de Ezra, isso significa, conforme seus versos reverberam, “Ouvir, ouvir o agitar do mar,/ Murmúrios, vozes de homens velhos:/ ‘(…) retornar às vozes gregas’ (…)”: ou seja, o recomeço da história é preciso para, partindo dantes, chegar adiante. Em outros termos, ouve-se o canto do “Homero cego, cego como um morcego” (paráfrase do “Canto XI” da “Odisseia”, quando Ulisses se encontra com Tirésias no Hades),  que ecoa no canto de Virgílio (Eneias se encontraria com Anquises – ouça o coro em uníssono entre as obras – no “Reino dos Mortos”), soprando nos ouvidos do século XX: do lado de lá (a primeira publicação da “Eneida” data de 19 a.C), “Ao largo os barcos, desaparece terra,/ Céu daqui, mar dali. Bulcão cerúleo/ Feia borrasca sobre nós carrega,/ Treva e horror pelas águas estendendo./ O vento em brenhas escarcéus levanta,/ Nos joga e espalha pelo vasto pego”; do lado de cá (os cento e vinte “Cantos” foram compostos entre 1915 e 1962), “E ventos vindo pela popa nos/ Impeliam adiante, velas cheias,/(…)/ Assim no barco assentados/ Cana do leme sacudido em vento/ Então com vela tensa, pelo mar/ Fomos até o término do dia./ Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano/ Chegamos aos confins das águas mais profundas”. Não é demais refazer essa releitura – audiovisual – focalizando estes versos especulares gritantes do “Canto VI” do “miglior fabbro” lusitano (os dez cantos de “Os Lusíadas” vieram à luz em 1572): “No mais interno fundo das profundas/ Cavernas altas onde o mar se esconde/ Lá onde as ondas saem furibundas/ Quando às iras do vento o mar responde.” Concluindo o parágrafo, então, e já preparando o próximo, evoco este providencial terceto do “Canto I” do “Purgatório”, para novamente – em outra “ária” desta operística odisseia literária – chamar a atenção dos displicentes navegantes aprendizes para o altissonante encontro das águas intertextuais profundas no oceânico “grande tempo” dialógico: “Do engenho meu a barca as velas solta/ Para correr agora em mar jucundo,/ E ao despiedoso pego a popa volta.” (os cem cantos da “Divina Comédia” foram gestados entre 1302 e 1321).

 

  1. NO PRINCÍPIO ERA HOMERO

Posto isso e aquilo, se no princípio era Homero, e depois era Horácio antes de Ovídio, e depois Lucano, antes deste e daquele, o fato é que Virgílio já era “Mestre” bem antes de ser guia do périplo de Dante, só bem depois cantados – evidentemente – por Ezra Pound. Se seu tradutor” ou/viu a “Odisseia” e a “Divina Comédia”, além de Virgílio, é com o “olhouvido” que “ouvê” (nos termos de Pignatari, um dos três intradutores/transcriadores dos “Cantares”, com os “Campos” – Grünewald é o dos “Cantos”) o mesmo em outros “cantos”; como, por exemplo, os da leitora decana – de baktiniana “índole responsiva”, em cujo ilustrado espelho analítico se reflete (na retina do tímpano onividente polifônico) a “cocriação dos intérpretes” – Aurora Bernardini Fornoni. Ou seja, numa das “subdivisões multiprismáticas” do ensaio “Dante e a Divina Comédia: história, poética e crítica” – cujo título já aponta as pontes interdiscursivas, o intertítulo “A ‘Commedia’ – ‘falou mil vozes e foi Dante'” refaz o percurso enciclopédico do leitor, mapeando, pois, o roteiro dos mestres-maiores na homérica “linguaviagem” (aspas para Augusto de Campos”) de aprendizagem do divino “miglior fabbro”: que se fez notável/notório raro bardo supremo no “Trecento” (atravessando, para se tornar então “clássico”, as fronteiras do “grande tempo”) porque – entre outros célebres gigantes – “hauriu dos grandes latinos Boécio, Cícero, Ovídio, Lucano mas, principalmente, Virgílio (…), que incorporou, após transformá-lo inteiramente”. Poucas linhas adiante, enfim, a ilustre/lúcida clínica crítica – trazendo à memória dos leitores da “Odisseia” que o herói grego ficara preso anos em Gaeta sob o despótico poder alquímico de Circe, para só então regressar à Ítaca pátria – sinaliza “a passagem de Ulisses” no “Canto XXVI” do “Inferno”, para fazer ver que “nem a doçura do filho [Telêmaco], nem a piedade por Laertes [o pai], nem o amor de Penélope [a mulher] venceram em seu peito o ardor de conhecer o mundo, além dos limites permitidos”. Então, o maior mestre das águas indomáveis, “com a última nave e os poucos companheiros, lança-se ao mar aberto”, vociferando-lhes soberbo – em tercetos decassílabos – aos subordinados (o objeto indireto pleonástico é sintomático – Freud explica – da “compulsão à repetição”): “não tenteis abortar a experiência/ atrás do sol, onde não há mais gente./ Por vosso sêmen tende reverência:/ pra viver não nascestes como brutos/ mas para ter virtude e consciência”. Todavia, se “navegar é preciso” e se – releio na retroativa “Mensagem” histórica de Pessoa a esfíngica rota aforismática dos ancestrais barcos fenícios – “viver não é preciso”, na tábula rasa religiosa do poeta-sacerdote (e vice-versa, em outra perspectiva da mesma Idade Média), a força tempestuosa dantesca do despótico monoteísmo cristão sentenciaria à derradeira ruína náufraga a intrépida trupe pagã grega herege: “Três vezes ela gira n’água e faz/ da quarta a volta que a popa elevou,/ sorveu a proa, como a Alguém apraz,/ até que o mar sobre nós se fechou.” (FORNONI, Aurora Bernardini. “O modelo americano e outros ensaios”. São Paulo: Editora Madamu, 2022, p.109-110). Sendo Virgílio o guia de viagem do vate florentino, vêm bem a calhar – só para não esquecer que a leitura de uma obra pressupõe a de muitas outras – estes versos do bardo latino (qualquer semelhança entre ambos, pois, não é mera coincidência):

“No âmago isto fermenta, e a deusa à pátria

De austros furentes, de chuveiros prenhe,

À Eólia parte. Aqui no antro imenso

O rei preme, encarcera, algema, enfreia

Lutantes ventos  roncas tempestades.

Em torno aos claustros de indignados fremem

Com grã rumor do monte. Em celsa roca

Sentado Eolo arvora o cetro, e as iras

Tempera e os amacia. Que o não faça,

Varridos mar e terra e o Céu profundo

Lá se vão pelos ares. Cauto, em negras

Furnas o onipotente os aferrolha,

E, um cargo de montanhas sobrepondo,

Lhes deu rei, que mandado a ponto as bridas

Suster saiba ou laxar. Destarte Juno

O exora humilde: ‘Eolo, o pai dos divos

E rei dos homens te concede as ondas

Sublevar e amainá-las (…)

Ventos açula, as popas mete a pique,

Ou dispersas no ponto as espedaça.

(…)

Disse [Eolo]; e um revés do conto a cava serra

A um lado impele: em turbilhão, cerrados

Num grupo, os ventos dada a porta, ruem,

As terras varejando. Ao mar carregam,

E horríssonos volvem-lhe as entranhas

Noto mais Euro, e de borrasca fértil

Áfrico; às praias vastas ondas rolam.

Homens gritam, zunindo a enxárcia ringe.

Some-se ao nauta o céu, tolda-se o dia;

Pousa no Pélago atra noite; os polos

Toam, o éter fuzila em crebos raios:

Tudo ameaça os varões presente a morte.

Frígido, arrepiado, Eneias geme,

E alça as palmas e exclama: ‘Afortunados

Oh! três e quatro vezes, d’ Ílio às abas,

Os que aos olhos paternos feneceram!

(…)

Bradava; e a sibilar ponteiro Bóreas

Rasga o pano, e a mareta aos astros joga,

Remos estalam; cruza a proa, e a bordo

Rende; escarpado fluido monte empina-se.

As naus já no escarcéu pendem, já descem

Num sorvedouro à terra entre marouços.

Remoinha o esto na revolta areia.”

(VIRGÍLIO. “Eneida” – Livro I. Tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2004, p.51-53).

Ao reler esses versos, que me vieram à memória a partir dos dois excertos citados pela professora Aurora Bernardini (o primeiro, traduzido por Renato Di Dio; e o último, por Jorge Wanderley), recordei outros tercetos do mesmo “Canto XXVI” do “Inferno”. Considerando ser diversa a tradução (aqui, tenho usado a de Italo Eugenio Mauro), convém reproduzir também o desfecho da tal derradeira viagem homérica (segundo a impiedosa visão dantesca), para que o aprendiz de leitor possa ver – com seus próprios olhos – as evidentes relações dialógicas entre ambos, no “grande tempo” (histórico, cultural, discursivo):

“Voltada a popa pra a manhã, já são

asas os nossos remos, na ousadia

do voo, apontado pra sinistra mão.

Do outro polo as estrelas todas via

agora à noite, enquanto, rebaixado,

do chão do mar o nosso não surgia.

Cinco vezes reaceso e cancelado

fora o lume que a lua de baixo banha,

depois do fundo passo ultrapassado

quando surgiu-nos diante uma montanha,

pela distância, escura, e alto tanto

que nunca eu conhecera outra tamanha.

Nossa alegria logo volveu-se em pranto,

que um remoinho dela levantou,

e feriu o lenho num fronteiro canto.

Três vezes co’ a água toda, ele rodou;

na quarta, erguida a popa, foi arrojado,

proa abaixo, como alguém agradou;

até que o mar foi sobre nós fechado.”

(Idem, p.198).

Dito isso (e redito aquilo), o fato é que Dante – reitero e ratifico – é mesmo o melhor exemplo metonímico do que significa focalizar o ponto de fuga para a frente (leiam com aspas dentro de aspas, em dupla “perspectiva”) porque faz ver que, para aprender a pensar, é preciso aprender a ver: primeiro, em “plano geral”; depois, em “primeiríssimo plano”. Em termos barthesianos, eis a “câmara clara” da questão: o “studium” precede o “punctum” – como a “interpretação”, sob o ponto de vista bakhtiniano, procede da “compreensão”. Numa classe mais avançada (não tão poucos passos à frente, ao menos, da cartilha “Primeiros Passos”) de uma “escola de leitura criativa”, por exemplo (para não dizer que não falei de novo – “nada de novo sob o sol”, afinal), poderia dizer que, se para aprender a escrever é preciso aprender a ler, e que, para aprender a ler é preciso aprender a pensar, e que, para aprender a pensar é preciso aprender ver, o xis da equação, logo, é o “e”. Eis a conjunção aditiva, a ponte conectiva atando os termos/tempos extremos num período composto de inúmeras – tão coletivas quanto singulares – memórias literárias, que destaco didaticamente em letra maiúscula (é preciso desenhar a “espiral de vozes”): “E ventos vindo pela popa” é a viagem de Pound de volta – “E ao despiedoso pego a popa volta” – a Dante. E a viagem de Ezra pelas camonianas “Cavernas altas onde o mar se esconde/ Lá onde as ondas saem furibundas/ Quando às iras do vento o mar responde”. E Alighieri cantando “Do engenho meu a barca as velas solta/ Para correr agora em mar jucundo”, ecoando Virgílio: E “Ao largo os barcos, desaparece terra,/ Céu daqui, mar dali. Bulcão cerúleo/ (…) Tolda-se o dia, e pluviosa a noite/ Nos rouba a luz polar; rasgadas nuvens/ (…) Flutuamos/ (…)/ Perde o tino, e confunde a noite e o dia./ Nem fulge estrela nas opacas horas,/ E em cerração três dúbios sóis vagamos”. E o “punctum” de vista, então, dirige o olhar para as “estrelas” e o “firmamento”, de Pound – “O luzir das estrelas estendido,/ Nem quando torna o olhar do firmamento/ Noite, a mais negra” – a Horácio, em cujos versos da “Sátira Quinta” (do “Livro I”) se “ouvê” (aspas para o neologismo sinestésico joyceano – lembra? – de Décio) o reflexo/eco do diálogo de gigantes: E “Já sobre a terra desdobrava a noite/ Seu manto escuro, de astros cintilantes/ Ornando o firmamento, quando os moços/ Entram com os nautas a travar convívios:/ Entrai! – Olá? não cabem tantos! basta!/ (…)/ Era já dia, quando pressentimos/ Que a nossa embarcação se não movia:/ Eis que um mais assomado em terra salta/ (…) Aos doentes olhos/ Comecei de aplicar o usual colírio.” (HORÁCIO. “Sátiras”. Tradução de António Luís Seabra. São Paulo: Edipro, 2011, p.49-50). E no “Canto IV”, Ezra repete: “E [minúsculo, no original] o/ pobre velho Homero, cego/ cego como um morcego,/ Ouvir, o agitar do mar;/ murmúrios, vozes de homens velhos. E então o espectro de Roma (…).” E então, no seu “Canto VII”, tudo segue escuro: “Nem um raio, nem uma faixa, nem um precário disco de luz solar /(…)/ Nem mancha, nem lasca de luz de sol. /(…)/ Murmurando, murmurando Ovídio (…).” Como vem,  depois do princípio do “Canto I”, o precipício: “E ventos vindo pela popa nos/ Impeliam adiante, velas cheias,/(…)/ Assim no barco assentados/ Cana do leme sacudido em vento/ Então com vela tensa, pelo mar/ Fomos até o término do dia./ Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano/ Chegamos aos confins das águas mais profundas./(…)/ Por um denso nevoeiro, inacessível/ Ao cintilar dos raios de sol, nem a/ O luzir das estrelas estendido,/ Nem quando torna o olhar do firmamento/ Noite, a mais negra, sobre os homens fúnebres.” (POUND, Ezra. “Os Cantos”. Tradução de José Lino Grünewald. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, pp.21, 32-33, 44). E como – no “Canto IV” do “Inferno” – a primeira sombra era a do “poeta soberano” Homero, a segunda era a do “satírico” Horácio, e a terceira, a de Ovídio, “e por isso começo descomeço (…) pois a viagem é o começo e volto e revolto pois na volta recomeço reconheço remeço um livro” (navegando – lembra? – nas “Galáxias”), para não haver – sem sombra de dúvida – olvido. Eis o recomeço dos heróicos périplos, então, metamorfoseados nestes excertos do “Livro XI” ovidiano:

“Por três vezes tenta falar, por três vezes o pranto lhe afoga a boca. (…) Irei sofrer, sim, mas não terei medo. Terei preocupações, medo não. A mim é o mar que me assusta, e a sombria visão das ondas. Ainda há pouco, na praia, vi eu pranchas despedaçadas. E em túmulos vazios, li eu nomes, tantas vezes! Não invada tua mente a enganadora certeza de teres por sogro o descendente de Hípotes [Éolo] que, quando quer aprisiona a violência dos ventos e apazigua o mar! Os ventos, uma vez soltos, são senhores do mar imenso, nada lhes é interdito. A terra e a extensão do mar são ultrajados por eles. Também acometem as nuvens do céu e, com terríveis colisões, fazem saltar fogos brilhantes. (…) Ambos seremos joguete das ondas, mas só temerei o que suportar! Sofreremos juntos o que quer que seja, seguiremos ambos pelo mar sem fim!

(…) Depois de, com esta promessa, acalentar a esperança do retorno, logo ordena que a embarcação seja retirada do estaleiro, seja lançada à água, e seja apetrechada com o seu equipamento. (…) Em dupla fila, os jovens marinheiros (…) puxam os remos de encontro ao valente peito e, em golpes ritmados, fendem as vagas. (…) Haviam deixado o porto. A brisa agita o cordame. A tripulação levanta os remos, que pendem da amurada, no topo do mastro, de onde desdobra por completo as velas, coloca as vergas e colhe os ventos que correm. A nave sulcava o mar, mais ou menos a meio, não mais, do seu curso. A terra estava a igual distância de um e de outro lado, quando, ao cair da noite, com a sublevação das ondas, começa o mar a ficar branco. O fragor das vagas não deixa que qualquer voz seja ouvida. (…) Terríveis, os ventos travam batalha por todo o lado e sublevam o mar revoltoso. O próprio piloto está em pânico e confessa não conhecer a posição do navio nem o que há de ordenar ou proibir, tão grande é o perigo e tão superior a qualquer arte. Ressoam os gritos dos homens, range o cordame, chocam as ondas com a onda mais alta, o éter ribomba com os trovões. O mar eriça-se de ondas e parece confundir-se com o céu, atingindo com o borrifo as nuvens que o cobrem. E ora, quando, do fundo revolve a dourada areia, tem dela a cor, ora é mais negro que as águas do Estige. Por vezes, espraia-se e torna-se branco com a espuma das ondas sonoras. Também a nave traquínia sofre tais vicissitudes. E, ora parece, como do cimo de uma alta montanha, olhar os vales e o fundo Aqueronte, ora parece, do abismo do inferno, erguer os olhos para o céu, lá em cima. (…) Dir-se-ia que o céu descia todo sobre o mar, e que, enraivecido, o mar subia as regiões celestes. As velas estão ensopadas da água da chuva. As águas do mar misturam-se às águas do céu. No céu não brilham os astros.

A escuridão da noite é reforçada pelas trevas próprias e pelas da tempestade. Coruscantes raios as rasgam e as iluminam (…). A onda já galga para dentro do casco da nau. (…) A perícia fracassa, desfalecem os ânimos. E quantas são as ondas, tantas são as mortes que parecem desabar e cair sobre eles. Este não sustém as lágrimas; aquele está aterrorizado; o outro considera felizes os que aguardam pelas honras fúnebres;   outro ainda formula votos à divindade e, erguendo, em vão, os braços ao céu, que está invisível, pede socorro. A um vem ao pensamento o irmão e o pai; a outro, junto com os filhos, vem-lhe a casa e quanto deixou. (…) Gostaria também de voltar e ver as costas da pátria, de volver o último olhar para sua casa. Mas não sabe para que lado ficam, de modo tão vertiginoso se revolve o mar e, induzida pela nuvem de pez, a sombra, que é a imagem dobrada da noite, esconde todo o céu. O mastro parte-se com o embate de uma tromba de água. Parte-se o leme também. Ufana, com ar vitorioso, ergue-se a onda sobre os despojos e, encurvando-se, olha de cima as ondas restantes. Precipita-se e cai. E, com o peso e o impacto juntos, como se alguém (…) os mergulhasse em pleno mar, leva ela ao fundo a pequena nau. Engolida por tão grande torvelinho e sem poder tornar à superfície, com ela cumpre seu destino grande parte dos homens. Socorre-se outra parte dos destroços e do que resta da despedaçada nau.”

(OVÍDIO. “Metamorfoses”. Edição bilíngue: tradução, introdução e notas de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2021, pp.605, 607, 609, 611, 613).

Não por acaso, a primeira palavra do trecho da terceira “sombra” – que Dante encontra no “Canto IV”, depois das de Homero e Horácio – é “depois”: depois de já haver visto – no escuro, é claro – a de Virgílio. Como o “Mestre”, na cronologia literária, precede Ovídio (de quem foi “guia” também), logo, convém ouvi-lo (“saboreio”, segundo diria Barthes, “a inversão das origens”). Para atar os fios desse infinito intertexto, assim, eis de seu tear latino o recomeço: “Fabricamos as naus, do fado incertos,/ Do rumo e pousada. Alisto os sócios;/ E, entrada a primavera, ordena Anquises/ Velas dar à ventura: então da pátria/ Deixo os portos chorando, a borda e os campos/ Onde foi Troia (…).” (Obra citada, “Livro III”, p.114). A propósito, sendo preceptor também do “miglior fabbro” satírico romano, sopram-me nos tímpanos da memória os líricos versos – à guisa de boa viagem ao “guia” – desta devota ode de seu exímio pupilo:

“Assim a diva rainha do Chipre,

assim os irmãos de Helena, luzentes estrelas,

assim o pai dos ventos,

apresando todos exceto o lápix,

te conduzam, navio, tu que a ti próprio

Virgílio deves em empréstimo, suplico,

que o devolvas, incólume, às fronteiras da Ática,

e que preserves a minha alma metade.

Carvalho e triplo bronze tinha

em seu peito aquele que primeiro arremeteu

frágil seu barco ao cruel pélago,

não receando nem o impetuoso Áfrico,

que com os ventos de Áquilo peleja,

nem as tristes Híades, nem a fúria de Noto:

maior juiz não há no Adriático

a seu bel-prazer as ondas elevando ou amainando.

Temeu os inexoráveis passos da morte

aquele que de olhos enxutos monstros viu a nadar,

e o mar encapelado,

e os mal-afamados rochedos de Acroceráunios?

Em vão o previdente deus

a terra do incompossível oceano separou,

se ainda assim ímpios os navios

sulcam os mares que jamais deveriam ser tocados!

A humanidade, temerária

até no sofrimento, precipita-se no erro proibido.

Temerário o filho de Jápeto

o fogo aos homens, com funesta perfídia, trouxe,

e depois de o ter furtado

de sua celeste morada, sobre a terra se estendeu

a fome e um exército novo de febres,

e a necessidade da morte, outrora tão vagarosa

e remota, o seu passo aligeirou.

Aventurou-se pelo ar vazio Dédalo

com asas ao homem não concedidas:

foi empresa de Hércules no Aqueronte irromper.

Para os mortais nada há de difícil: estultos o próprio céu reclamamos,

nem permitimos, por nosso crime,

Júpiter iracundos depor seus raios.”

(HORÁCIO. “Odes”. Edição bilíngue: tradução, introdução e notas de Pedro Braga Falcão. São Paulo: Editora 34, 2021, pp.67, 69).

Por falar nisso, quando Dante encontrou a segunda “sombra” no “Canto IV” do “Inferno”, é como se seus versos ecoassem estes épicos trechos do “Mestre” (ratificando a clássica lição de que não haveria a ilusória “ascensão” mítica, afinal, se não houvesse “queda”: ou seja, se a narcísica soberba não fosse – diria eu – à imagem e semelhança do Deus que o homem criou): “O Anquisíades para, e a sorte iníqua/ Detém-se a contemplar. Divisa aflito/ Mestos, sem funerais, Leucaspe e Oronte,/ Chefe da lícia esquadra; os quais, de Tróia/ Partidos, por tormentas soçobraram,/ Austro n’água envolvendo a nau e a gente./ Seu piloto apresenta-se, que há pouco/ Na rota líbia, enquanto observa os astros,/ Da popa resvalou, foi de mergulho./ Na escuridão lhe grita ao lobrigá-lo:/ ‘Que Deus a nós roubou-te, ó Palinuro,/ E te afundou no ponto? Nunca em falha,/  Só nisto (…):/ E ei-la a promessa!’ O nauta replicou-lhe:/ ‘Nem de Febo a cortina, ó forte Anquíseo,/ Te iludiu, nem há deus que me afundasse./ Regendo o curso, ao leme eu me aferrava;/ Arrancado com força, ele comigo/ Se precipita. Aos crespos mares juro,/ Nada temi por mim, senão que a tua/ Nau, sem leme, sem mestre, perecesse,/ Crescendo os escarcéus. Violento Noto/ Me rojou pelo imenso equóreo golfão/ Três noites invernais: ao quarto lume/ De cima de uma vaga enxergo a Itália./ (…) Do remanso da morte eu goze ao menos.’/ ‘Donde – o atalha a Sibila – ó Palinuro,/ Donde esse ímpio desejo?’ (…).” (VIRGÍLIO. “Eneida” – Livro I. Tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2004, p.221-222). Relendo esses versos, então, dá para rever ainda melhor (entre reflexos e refrações, através do espelho do “intertexto” barthesiano, eis “a impossibilidade de viver fora do texto infinito”) estas “Metamorfoses” dialógicas da terceira “sombra” criativa: “O mastro parte-se com o embate de uma tromba de água. Parte-se o leme também. Ufana, com ar vitorioso, ergue-se a onda sobre os despojos e, encurvando-se, olha de cima as ondas restantes. Precipita-se e cai. E, com o peso e o impacto juntos, como se alguém (…) os mergulhasse em pleno mar, leva ela ao fundo a pequena nau.” Nessa “espiral de vozes”, para não dizer que a segunda “sombra”, mesmo lírica, jamais deixou de ser sarcástica, eis o xis da questão da herança histórica da grande memória literária: “Celebrar-te-á Vário, o cisne da poesia homérica,/ a ti, de teus inimigos denodado vencedor,/ o que quer que o intrépido soldado tenha logrado,/ de barco ou a cavalo, sob o teu comando./ Nós, Agripa, não intentamos cantar tais coisas,/ nem a funesta cólera do indomável filho de Peleu,/ nem as marítimas viagens do ardiloso Ulisses,/ (…)/ somos pequenos para tão grandes temas; a modéstia/ e a Musa, rainha da pacífica lira, impedem-me/ de diminuir os louvores do egrégio César, ou de ti,/ por culpa do meu engenho.” (HORÁCIO. “Odes”. São Paulo: Editora 34, 2021, p.81).

Posto isso e aquilo, enfim, apesar de ser este o que “vem à frente qual decano dos outros três” (diria Dante, Homero é “o nosso poeta eminente”), é providencial só evocá-lo agora – embora possa parecer um homérico paradoxo – para seguir viagem na nau literária do inaugural herói ocidental: com a ressalva de que, mesmo se fosse só porque os excertos certamente não são o princípio da “trip” épica de Ulisses, sendo o célebre bardo grego o primeiro, o mais óbvio seria tê-los citado antes dos outros (troianos ou romanos). Justifico-lhes que a questão, contudo, é bem mais sutil ainda do que supõe a vã evidência “matemática” da ordem dos fatores (se o intertexto não é “aritmético”, não há fórmula, afinal, para a memória discursiva): quer dizer, evocando só nesta curva da longa viagem a “Odisseia” (embora já a tendo citado muito, é claro, outrora), é como se o discurso passado proviesse mesmo – com a “desenvoltura” da leitura  arguta de Barthes – do texto futuro. Partindo, aliás, do pressuposto de que selecionei, com o devido cuidado didático de sempre, fragmentos em que o narrador passou a palavra ao próprio protagonista, é providencial recordar isto que dissera – antes de justificar por que só ele poderia mesmo dizer, com toda a propriedade dos “semidivinos” ícones clássicos, “minhas artimanhas rolam na boca de todos” – o ilustre gigante argivo: “Nem sei por onde começar. Deixo para o fim o quê?” (HOMERO. “Odisseia, v.2: Regresso”. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2014, p.115). Fazendo minhas as suas palavras, enfim, o que quero dizer é que estas passagens da segunda obra-prima do “poeta soberano” (a primeira – gênese da literatura ocidental – foi a “Ilíada”) bem poderiam servir de sequência a todas essas e aquelas – mesm/outras – histórias. Aviso aos navegantes, assim, que – de olhos e ouvidos bem abertos, – prestem muita atenção aos vários sinais, tão recorrentes, de similaridades entre estes e os excertos de Virgílio, Horácio, Ovídio, Dante e Pound (sem consultar, por favor, o gabarito que fornecerei no parágrafo subsequente):

“Nós, os restantes, nos esquivamos da morte e do destino. Partimos com sombras no peito. Na alegria da fuga penetrava a dor pelos perdidos. Não consenti na viagem antes de pronunciarmos três vezes cada um dos nomes dos tombados (…). Zeus, convocando o exército das nuvens, despertou Bóreas para uma batalha tempestuosa contra a frota. A sombra cobriu terra e mar. A noite baixou da concha celeste. A tempestade arrastava proas inclinadas. A força dos ventos rasgou em três, em quatro tiras as velas. Temendo a morte, nós as recolhemos. Vencemos a remo o ímpeto das ondas rumo à costa. (…) Confiamos a rota ao piloto e aos ventos. (…) Nada impedia, salvos, alcançarmos o solo pátrio, não fossem as correntes e Bóreas, que, ao contornarmos os penhascos (…), nos arrastaram para muito além (…). Dali ventos funestos me levaram durante nove dias por mares piscosos.

No décimo, aproamos (…). Desembarcamos e nos abastecemos de água. Os companheiros prepararam uma refeição perto dos navios. (…) Agarrei-os – choravam – e os arrastei aos navios. Enfiei-os debaixo do banco dos remeiros. Determinei aos outros subirem aos barcos sem perda de tempo (…). Cederam. Sem oferecer resistência ocuparam seus lugares. Os remos feriram no compasso o mar de espumas. Continuamos a navegar de coração amargurado. (…) Para que âncoras, cabos? As naus repousariam na areia, confiadas à vontade dos nautas e ao sopro de ventos propícios. (…) para lá rumaram os remos (…). Negra era a noite. Nada se via, nada luzia. A névoa envolvia o barco. A lua, coberta de nuvens, não sorria na abóbada celeste. O olhar de ninguém penetrava a ilha imersa na noite nem distinguia o dorso das ondas em galope à praia antes de os valentes navios alcançarem a costa. Ao aportar, tratamos primeiro de amainar as velas. Saltamos, então, em terra firme. De pálpebras cerradas, aguardamos a luz da manhã.

(…) Interrompi o pranto. Acenei-lhes de sobrolho carregado. (…) Dar o fora! Singrar o mar salgado! Me obedeceram. Correram para os bancos. Os remos feriram as águas pardacentas. (…) A pedra caiu a pouca distância da proa. Não estraçalha a ponta do leme por um triz. Com o baque da pedra, ponteia o ponto, empolam as águas. O refluxo arrasta o barco. Vagalhões jogaram-nos à praia (…). Meus companheiros, por ordens minhas, transmitidas por gestos, moveram fortes os remos. De corpos dobrados na força dos braços, tudo fizeram para escapar do desastre. (…) Retornar? Será nossa perdição. O baque levantou ondas atrás do barco de proa negra, a pouca distância da ponta do leme. O mar bramiu ao seco soco da rocha. O fluxo nos empurrou para a terra. Sentimos próximo o solo. (…) Nós próprios saltamos ao solo batido pelas ondas inquietas do mar. Animei-os a embarcar, a soltar as amarras. Prestos se dispuseram a ocupar os bancos. As proas rompem as ondas ao ritmo dos remos. Partimos dali de coração apertado. Salvos da morte singramos, mas pesarosos da perda de muitos dos nossos.

Abordamos Eólia, terra em que vive um amigo dos deuses imortais, Éolo, filho de Hípotes. A ilha, circundada de brônzeo muro infrangível, flutua (…). Moram com ele, no mesmo palácio, doze rebentos: seis filhas e seis filhos adultos. Éolo ofereceu em casamento as seis filhas aos seis filhos. Vivem todos com o pai, muito afetuoso, e com a prestimosa mãe (…). À noite, as mulheres dormem nos braços de seus maridos em leitos finos e fofos tapetes (…). Éolo hospedou-me por um mês inteiro, ávido por notícias sobre Ílion, sobre a frota argiva [grega], sobre o retorno dos aqueus [dos gregos]. Contei-lhe tudo com detalhes. Quando lhe pedi ajuda para voltar à minha terra, não me disse não. Fez o que pôde: esfolou um boi, rês de nove anos, fez um saco e nele acorrentou o curso dos ventos ressonantes. O Cronida [Zeus] o constituíra guarda das correntes aéreas. Sublevá-las ou contê-las dependia só dele. Éolo prendeu o saco no porão do navio para evitar a evasão até do mais reles ventinho (…). Nossa própria tolice provocou o desastre. Nove dias e nove noites navegamos constantes. No décimo – já emergiam as plagas pátrias – estávamos tão próximos que divisamos fogos (…). Formou-se uma conspiração entre meus companheiros. Suspeitavam que eu escondia ouro e prata, dom de Éolo, filho do generoso Hípotes. Transmitiam a suspeita ao primeiro que encontravam (…). Venceu o conselho desastrado. Aberto o saco, rebelaram-se todos os ventos. Uma tempestade arrastou-nos ao mar profundo. Longe ficou a pátria. Era de chorar (…). Tempestade nefasta devolveu a frota a Eólia (…). Encontrei-o sentado à mesa em companhia da mulher e dos filhos (…). Tomados de espanto, veio a pergunta: ‘Tu aqui, Odisseu? Que maléfica divindade te persegue? Saíste muito bem aparelhado para alcançar tua terra, teu palácio, o que te é caro.’ Coração em frangalhos, respondi à repreensão: ‘Companheiros e sono em hora imprópria me desgraçaram. O remédio está em vossas mãos.’ Quis cativá-los com palavras de humildade. Silêncio total! A resposta veio do pai: ‘Some dos meus olhos. Pulha! Pilantra! Peste! Não tenho o direito de ajudar um homem como tu. Os deuses bem-aventurados te odeiam. Fora! Me procuraste porque os imortais te desprezam.’ Ele correu comigo. Eu soluçava, chorava, gemia. O que fazer? Seguimos viagem desesperados.” (Idem, pp.117, 119, 121, 123, 139, 141, 143, 145, 147, 149, 151).

 

  1. PARA NAVEGAR É PRECISO DAR NOME AOS VENTOS

Recomeçando do começo, já que no princípio era Homero, a “Odisséia” narra a fantástica saga de Ulisses em busca da Ítaca perdida, após a triunfal guerra dos gregos contra os troianos (eternizada na “Ilíada”). No final do “Canto V”, tendo se livrado das garras da ninfa Calipso, que o aprisionara na enigmática ilha de Ogígia, a frágil jangada do herói – sob a fúria dos ventos – seria destroçada: não lhe restando senão os braços, venceria as ondas, aportando em Esquéria, terra dos feáceos, “parentes próximos dos deuses”. No “Canto VI”, Palas Atena – a “Deusa dos Olhos de Coruja” – guiaria os passos da jovem princesa Nausícaa até o “divino e sofrido Odisseu, vencido pelo sono, pelo cansaço”, conduzindo-o – no “Canto VII” – ao palácio de seu pai. No “Canto VIII”, acolhido pelo rei Alcínoo, o exasperado estrangeiro fora assim inquirido pelo desconfiado anfitrião: “É melhor que fales. Quero saber quem és, teu nome, como te chamam teu pai e tua mãe, como se dirigem a ti teus amigos, teus vizinhos. Não me venhas com anonimato. Gente sem-nome não existe. Pobre ou rico, pouco importa. Gente é gente. Os pais botam nome nos filhos logo que nascem. Desembucha! Tua terra, teu povo, tua cidade. Informados, minhas naus te levarão ao destino. Dispensam comando. Nem de timoneiros precisam. Ao contrário de barcos comuns, eles interpretam pensamentos e intenções, localizam cidades e campos. Singram velozes ondas salgadas, escondidas em névoa negra. Longe vaga o medo de que as moleste algum dano ou que advenha ruína. Nausítoo, meu pai, me dizia, lembro bem, que Posidon vivia irritado conosco, por conduzirmos todos a porto seguro (…). Quero que fales sem rodeios. Conta-nos por onde andaste, terras e gente que conheceste, cidades populosas que tenhas visitado (…). Por que choras, que dores sacodem teu peito quando alguém se refere a argivos, a dânaos, à ruína de Troia? Decisões divinas e infortúnios humanos alimentarão o canto de muitas gerações vindouras.” (Idem, p.111-112).

Na abertura do “Canto IX”, então, em resposta às indagações de Alcínoo, “tomando a palavra, falou o Odisseu das mil ideias”, para mostrar à “sala inteira [que] é toda ouvidos” – sem a mínima modéstia eufemística, com a soberba altivez dos heróis narcísicos – por que “minha fama bate no céu”. Só para não perder a deixa, essas aspas épicas, celebrando-se como herói-autor “imortal”, têm tudo a ver com estas, líricas, da célebre ode horaciana louvando-se como icônico poeta póstero: “e se me contares, pois, entre os vates líricos,/ de cabeça erguida tocarei as estrelas.” (Obra citada, p.57). Com a mesma segurança do autor das “Metamorfoses” de que seu nome/nume passaria na grande prova crítica da memória literária, conforme registrado neste epílogo que a história atestaria certamente não ser mero hiperbólico delírio narcísico prototípico de poeta nanico (como é o sintomático caso acrítico de “Le Little Petit Poucet Poète” – que não haveria mesmo senão não ter nada a ver, é óbvio, com Ovídio): “Concluí uma obra que nem a cólera de Júpiter, nem o fogo,/ nem o ferro, nem a voracidade do tempo poderão destruir./ Que aquele dia, que só a meu corpo tem direito,/ ponha fim quando quiser ao incerto decurso da minha vida./ Eu, na parte mais nobre de mim, subirei, imorredouro,/ acima das altas estrelas, e o meu nome jamais morrerá./ E por onde o poder de Roma se estende sobre a terra dominada,/ andarei na boca do povo. E, se algo de verdade existe nos presságios/ dos poetas, graças a essa fama, ei de viver pelos séculos.” (Obra citada, p.845).

Enfim, fechando o breve parêntese da perenidade dos clássicos, convém alertar os marinheiros de primeira viagem que aportamos, finalmente, nos primeiros excertos selecionados, para que não percam – distraídos nas incidentais perigosas curvas digressivas – o rumo da narrativa. Atando as pontas das histórias, pois, passo a palavra ao homérico protagonista: “Voltemos à minha viagem de regresso. Adianto que foi sofrida – Zeus assim o quis – quando partimos de Troia. Ao deixar Ílion [outra denominação de Troia] o vento me impeliu aos cícones, a Ismaro [cidade da Trácia, cujo povo era aliado dos troianos]. Saqueei a cidade e matei seus habitantes. Com a pilhagem e o rapto das mulheres, tínhamos muito a dividir (…). Os bobalhões, meus comandados, não me obedeceram. Ébrios, degolaram carneiros, abateram vacas (…). Os cícones [tribo trácia] dispararam para pedir ajuda a outros cícones, mais numerosos e mais robustos, treinados condutores de carros de guerra (…). A desdita caiu sobre nós, desventurados. Dores incontáveis nos golpearam.” (Idem, p.117). O desfecho dos excessos bárbaros foi a tal fuga desesperada, narrada no início dos trechos que transcritos: com o acréscimo da informação de que a intrépida frota, após vagar a esmo por nove dias, no décimo chegara à “terra dos lotófagos, gente que se alimenta de flores”, bem como que “quem saboreia a doçura do loto perde a vontade de informar, de viajar (…), de voltar para casa.” (Idem, p.119). Na sequência, após o comandante obrigar os “transtornados pelo loto” a embarcar, a próxima parada seria na terra dos ciclopes (“povo rude, sem lei”), onde seriam acuados pelo maior e mais cruel dos “violentos, selvagens” gigantes de um olho só, cujo nome era Polifemo (na tradução de Donaldo Schüler, denominado pelo epíteto “Globolho”), que “tinha o tamanho de um mastro para um navio de vinte remos, embarcação comercial, construída para enfrentar ondas, avaliando comprimento e espessura.” (Idem, p.131). Tendo já devorado alguns dos marinheiros, com a promessa de deixar por último o ardiloso líder da trupe argiva, que o seduziria “com palavras de seda” e embriagaria o “agigantado glutão” de vinho, até finalmente furar o imenso círculo monocular do ogro filho do “Abala-Terra” (epíteto com que o tradutor se refere à divindade oceânica). Para os que têm dois olhos não sigam tão cegos quanto o “Globolho” vazado, urge lhes ampliar a imagem, sob as lentes argutas de Ulisses: “O desgraçado levantou as mãos e dirigiu uma prece a seu protetor: ‘Ouve-me, Posidon, de cabelos escuros como as profundezas do mar, se de fato és meu pai, não permita que Odisseu volte para casa. Falo do filho de Laertes com domicílio em Ítaca. Digamos que a Moira [o destino] lhe garanta rever os amigos, retornar a seu fortificado palácio, pisar o solo pátrio. Nesse caso, retarda tudo isso. Pereçam todos os companheiros, volte em nau estranha, encontre desgraça em casa.’ Foi o que pediu. O Cabeleira-Negra lhe deu ouvidos.” (Idem, p.143).

Partindo do princípio de que, para aprender a navegar, é preciso aprender a ler a escrita hieroglífica dos ventos sob a superfície ondulada das águas, e que, para traduzir os signos oceânicos é preciso aprender a língua eólica, para ser bem didático, é preciso “desenhar” os pontos cardeais desta dialógica odisseia (no duplo sentido do termo) no “grande tempo” discursivo. Em outras palavras, enfim, faço minhas as sábias premissas de Alcínoo, para não haver olvido do recomeço do – mesmoutro – princípio da “linguaviagem” (diria Augusto – de outros “Campos”) homérica: “Informados, minhas naus te levarão ao destino. Dispensam comando. Nem de timoneiros precisam. Ao contrário de barcos comuns, eles interpretam pensamentos e intenções, localizam cidades e campos. Singram velozes ondas salgadas, escondidas em névoa negra”. Para não parecer hermético, explico: no princípio do “Canto X” (no último parágrafo do último excerto) era Éolo, eleito senhor supremo das “correntes aéreas” pelo divino supremo senhor dos Campos Elísios; o “filho do generoso Hípotes” que agraciou Ulisses aprisionando os indomáveis ventos num saco, a fim de que a nau argiva não perdesse o rumo, chegando sem esforço, enfim, ao fim da intempestiva viagem de regresso à pátria ítaca perdida. Ao leitor que não tem, mesmo tendo um só, o ciclópico “globolho” vazado, não é difícil ver – a despeito da “metamorfose” do mito em Ovídio  – o óbvio ululante arquetípico. Se, posto isso, ainda assim parece muito difícil, serei mais explícito: o trecho da terceira “sombra” – que Dante encontrou no “Canto IV”, guiado por Virgílio – revive, sob vestes diversas, a mesma tragédia grega. Sendo mais direto, para que não dizer que qualquer semelhança seria mera coincidência, uma das personagens ancestrais da história reescrita pelo herdeiro latino do bardo primevo (para não dizer que não falei – de novo – da bakhtiniana “cocriação dos intérpretes”) é exatamente uma das tais seis filhas do soberano patriarca de Eólia: ou seja, de certa forma, é como se Alcíone fosse Penélope; e seu amado obsessivo Céix, guardadas as devidas desmedidas de superfície, o compulsivo Ulisses. Para ser mais claro, se é que é possível ser mais evidente do que isso, é isto: no “Canto X” de Homero, a certeza do êxito fez fechar os olhos o supremo insolente senhor aqueu dos equívocos; no “Livro XI” de Ovídio, foi a vez do genro do filho de Hípotes crer demais na sorte para descrer – neste caso, cujo desfecho é mais desgraçado –  na hipótese da náufraga morte. Se ainda houver sombra de dúvida, lembro que a filha eólica recordou ao marido que só o onipotente pai, “quando quer, aprisiona a violência dos ventos e apazigua o mar”, e que os ventos – submissos à sua imperiosa vontade – “uma vez soltos, são senhores do mar imenso”; logo “nada lhes é interdito”. Para quem não viu ainda o homérico reflexo especular, sob a refração no espelho dialógico “ovídico” (aspas para não dizer que não falei “ovidiano” só para não perder a óbvia rima ótica), é preciso limpar bem a cera do “olvido” (ouvindo, já de cara, o escancarado trocadilho): ou seja – ou não seja, eis a questão -, seguro excessivamente de si, enquanto o icônico grego ególatra primevo fechara os olhos, os cegos beócios (in)subordinados, é claro, abriram o “saco” eólico; sintomaticamente, pois (Freud explicaria – cerca de vinte e oito séculos depois do “grau zero” de Homero – o patológico traço repetitivo neurótico), “rebelaram-se todos os ventos” recalcados. Aliás, para não dizer que não falei que, bem antes de Ovídio, Virgílio falara exatamente o que o bardo heleno já dissera, não seria preciso reproduzir aquele mesmo excerto do “guia” dantesco na “selva oscura”, se não fosse este – a tal altura – outro (na providencial paráfrase heraclitiana do “miglior fabbro” lusitano, afinal de contas, os “mares dantes navegados” hão de ser sempre outros). A propósito, aproveitando os ventos da “Odisseia” para levá-los à “Eneida”, faço minhas as sábias palavras de Alcínoo a Ulisses: “Quem o ignora? Até os mais simplórios o sabem. Por favor, nada de brincar de esconder (…).” Se alguém falar que, mesmo com o gabarito, ainda assim está difícil, nem preciso dizer que – alfafa ao asinino – já estava bem “dantes” reprovado. Soprando aos quatro ventos (se for preciso pôr entre aspas, ratifica-se o trágico veredito) a óbvia resposta, eis o “já-dito” argivo redivivo – bem antes da versão já evidente de Ovídio – nestes inequívocos versos especulares de Virgílio:

“No âmago isto fermenta, e a deusa à pátria

De austros furentes, de chuveiros prenhe,

À Eólia parte. Aqui no antro imenso

O rei preme, encarcera, algema, enfreia

Lutantes ventos, roncas tempestades.

Em torno aos claustros de indignados fremem

Com grã rumor do monte. Em celsa roca

Sentado Eolo arvora o cetro, e as iras

Tempera e os amacia. Que o não faça,

Varridos mar e terra e o Céu profundo

Lá se vão pelos ares. Cauto, em negras

Furnas o onipotente os aferrolha,

E, um cargo de montanhas sobrepondo,

Lhes deu rei, que mandado a ponto as bridas

Suster saiba ou laxar. Destarte Juno

O exora humilde: ‘Eolo, o pai dos divos

E rei dos homens te concede as ondas

Sublevar e amainá-las (…)

Ventos açula, as popas mete a pique,

Ou dispersas no ponto as espedaça.

(…)

Disse [Eolo]; e um revés do conto a cava serra

A um lado impele: em turbilhão, cerrados

Num grupo, os ventos dada a porta, ruem,

As terras varejando. Ao mar carregam,

E horríssonos volvem-lhe as entranhas

Noto mais Euro, e de borrasca fértil

Áfrico; às praias vastas ondas rolam.

Homens gritam, zunindo a enxárcia ringe.

Some-se ao nauta o céu, tolda-se o dia;

Pousa no Pélago atra noite; os polos

Toam, o éter fuzila em crebos raios:

Tudo ameaça os varões presente a morte.

Frígido, arrepiado, Eneias geme,

E alça as palmas e exclama: ‘Afortunados

Oh! três e quatro vezes, d’ Ílio às abas,

Os que aos olhos paternos feneceram!

(…)

Bradava; e a sibilar ponteiro Bóreas

Rasga o pano, e a mareta aos astros joga,

Remos estalam; cruza a proa, e a bordo

Rende; escarpado fluido monte empina-se.

As naus já no escarcéu pendem, já descem

Num sorvedouro à terra entre marouços.

Remoinha o esto na revolta areia.”

(VIRGÍLIO. “Eneida” – Livro I. Tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2004, p.51-53).

Em outros termos da complexa equação dialógica, refazendo pedagogicamente o percurso discursivo no “grande tempo” histórico, a fim de atar um a outro “punctum” na sintomática rede do intertexto literário, eis a “profunda e tenebrosa unidade” – em “primeiríssimo plano” baudelairiano na “câmara clara” barthesiana – da questão eólica, nestes excertos editados (para não dizer que não falei do nosso método de leitura, do geral ao particular) de Homero a Virgílio e, respectiva/retrospectivamente, de ambos a Ovídio:

“Fez o que pôde: (…) fez um saco e nele acorrentou o curso dos ventos ressonantes. O Cronida o constituíra guarda das correntes aéreas. Sublevá-las ou contê-las dependia só dele. Éolo prendeu o saco no porão do navio para evitar a evasão até do mais reles ventinho.”

“O rei preme, encarcera, algema, enfreia/ Lutantes ventos, roncas tempestades.”; “Em celsa roca/ Sentado Eolo arvora o cetro e as iras/ Tempera e os amacia.”; “E rei dos homens te concede as ondas/ Sublevar e amainá-las (…)/ Ventos açula, as popas mete a pique,/ Ou dispersas no ponto as espedaça.”

“Não invada tua mente a enganadora certeza de teres por sogro o descendente de Hípotes que, quando quer aprisiona a violência dos ventos e apazigua o mar! Os ventos, uma vez soltos, são senhores do mar imenso, nada lhes é interdito. (…) Terríveis, os ventos travam batalha por todo o lado e sublevam o mar revoltoso.”

Partindo do pressuposto – nunca é demais repetir – de que, para navegar, é preciso saber ler os ventos, logo é preciso ensinar aos marinheiros de primeira viagem, primeiro, o alfabeto eólico básico. Para recomeçar, no princípio do “Canto X” da “Odisseia” – quem ainda não ouviu, haverá de ver –  era “Éolo”: o “guarda das correntes aéreas” nomeado por Zeus, que “acorrentou o curso dos ventos ressonantes”, tirando-os do “mezzo del cammin” (para não dizer que não falei mais de Dante) dos mares, a fim de Ulisses achar a Ítaca pátria perdida, chegando finalmente ao fim da interminável viagem. Contudo, por excessivo descuido com a sorte (traído pela confiante soberba, conforme já dissemos), tão perto, rumou longe): era – mais uma vez – uma vez… No “Livro I” da “Eneida”, como se Virgílio lembrasse – na voz do narrador – que o êxito de Enéias dependeria da ciência dos insucessos do épico predecessor: sem fechar os olhos, por exemplo, ao “rei” que “preme, encarcera algema, enfreia lutantes ventos, roncas tempestades”, o mesmo “Eolo” (nessa tradução, sem acento) que “arvora o cetro e as iras tempera e os amacia”. Abrindo brevíssimo parêntese, seria exatamente a mesma lição sistematizada por Maquiavel, muitos séculos após este, e bem mais depois daquele, que é providencial agora recordar: “Quanto ao exercício das suas meditações, o príncipe deve ler os relatos da história e neles considerar as ações dos grandes homens; notar como comportaram-se nas guerras; examinar as razões das suas vitórias e das suas derrotas – para estas poder evitar e aquelas imitar -; e, sobretudo, deve fazer como um daqueles grandes vultos do passado que tomaram o intento de mirar-se nalgum personagem precedentemente louvado e celebrado, trazendo sempre consigo o registro dos seus feitos e dos seus gestos.” (MACHIAVELLI, Nicoló di Bernardo dei. “O Príncipe”. Porto Alegre: L&PM, 1998, p.99-100). Isso para falar que a terceira “sombra” dantesca já havia ouvido muito bem tanto aquele recado de Homero quanto este aviso de Virgílio: “A um lado impele: em turbilhão, cerrados/ Num grupo, os ventos dada a porta, ruem,/ As terras varejando”. Há de se convir que, se não trouxesse na memória os dois maiores exemplos míticos, obviamente, não diria que o ancestral descendente “aprisiona a violência dos ventos e apazigua o mar” ao seu bel-prazer, nem alertaria o futuro navegante para jamais desafiar, sob pena de penar até a certa morte náufraga, aquele que sempre será senhor dos “senhores do mar”, a quem “nada lhe é interdito”. Assim, quem bem ouviu Ovídio, sabe bem o que quer dizer isto: “Terríveis, os ventos travam batalha por todo o lado e sublevam o mar revoltoso”.

A propósito, para não dizer que não falei o que teria tudo isso a ver com “il miglior fabbro” – não só do “Trecento” – que, com um olho no passado e outro no futuro, não seria exatamente o “sexto entre tanto saber”, uma vez que já era (parafraseando Mário de Andrade) “seiscentos”, sopro-lhes estes tercetos do “Canto V”, sublinhando que o segundo círculo – em cuja entrada o grotesco magistrado “Minós” ouvia os espíritos e, conforme a gravidade dos pecados, sentenciava-lhes as penas  (distribuindo-os, pois, num dos respectivos dantescos nove “giros”) – é sintomaticamente conhecido como “Vale dos Ventos”:

“Os tristes sons começam a perceber

do lugar aonde eu vim, aonde queixume

e muito pranto vêm me acometer;

vim a um lugar mudo de todo lume

que muge como mar que, em grã tormenta,

de opostos ventos o conflito assume.

A procela infernal que nunca assenta,

essas almas arrasta em sua rapina,

volteando e percutindo as atormenta.

Quando chegam em face à sua ruína,

aí pranto e lamento e dor clamante,

aí blasfêmias contra a lei divina.

Entendi que essa é a pena resultante

da transgressão carnal, que desafia

a razão, e a submete a seu talante.

Como estorninhos que, na estação fria,

suas asas vão levando, em chusma plena,

aqui as almas carrega a ventania,

e a revolver pra cá e pra lá as condena;

nem a esperança lhes concede alento,

não já de pouso, mas de menor pena.

E, como grous cantando o seu lamento,

que longa trilha formam no ar passando,

assim, trazidas pelo negro vento,

sombras eu vi passar se lamentando;

e ao Mestre perguntei: ‘Quem são aquelas

gentes que o vento assim vai castigando?’.”

(ALIGHIERI, Dante. “A Divina Comédia”. Tradução, comentários e notas de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2018, p.60-61).

A moral dessas “milumaestórias” aos incautos marinheiros dos imensos mares intertextuais – se lhes está muito bem clara a metáfora – é que é preciso saber dar nome aos quatro ventos (que sopram não só em Homero, Virgílio e Ovídio, mas também, antes deste, em Horácio, e depois deles, em Dante, chegando a Pound e seguindo adiante). Aliás, como o “poeta soberano” inaugurou a literatura ocidental no século IX a.C (com a monumental “Ilíada”, décadas antes da épica “Odisseia”) e o “Mestre” produziu a mais importante  trilogia clássica latina (“Bucólicas”, “Geórgicas” e “Eneida”) no século I a.C, a bem do rigor pedagógico, não poderia deixar de acrescentar ao mapa de leitura a “Teogonia”, criada pelo grego Hesíodo pouco mais de cem anos após a última obra do bardo primevo. De seu tratado poético sobre a gênese arcaica do mundo, então, destaco estes trechos exemplares da origem mitológica e da regência das forças eólicas: “Aurora gerou de Astreu ventos de ânimo violento,/ Zéfiro clareante, Bóreas de veloz caminhada/ e Notos, no coito amoroso a Deusa com o Deus,/ e após aurorante pariu a Estrela da Manhã/ e os astros brilhantes de que o céu se coroa.”; “De Tifeu vem o furor dos ventos que sopram úmidos,/ não Notos,  Bóreas e Zéfiro clareante,/ estes vêm de Deuses, grande valia dos mortais,/ os outros sopram às cegas sobre o mar/ e, ao caírem no alto-mar cor de névoa,/ impetuam ruim procela, grande ruína dos mortais./ Eles sopram diversos, dispersam os navios,/ perdem os nautas, e não têm resistência ao mal/ os homens que os encontram pelo mar,/ e pela terra sem-fim e florida eles perdem/ os campos amáveis dos homens nascidos no chão/ atulhando-os de pó e de doloroso turbilhão.” (HESÍODO. “Teogonia”. Edição bilíngue: estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995, pp.127, 155). Sem desperdiçar a providencial luz da rósea Aurora, é claro, a fim de que o cego semiletrado possa ver e, evidentemente, aprender a ler os lábios polifônicos dos ventos soprando nas páginas clássicas, eis o glossário onomástico eólico (para não perder o hábito didático – e o norte hermenêutico): “Noto” é o nome do Vento Sul, criador das nuvens; “Euro” é a denominação clássica do Vento Leste, regente das tempestades; “Bóreas” é o temido Vento Norte, cujo violento sopro gélido traz as agruras do inverno; “Zéfiro”, conhecido também pelo codinome “Favônio”, é o Vento Oeste, normalmente visto como o mais ameno, aprazível, dos irmãos eólicos; “Áfrico” é o Vento Sudoeste, cujo sopro seco e quente provoca chuvas torrenciais; “Lápix” é o Vento Noroeste, que auxiliaria a navegação de Brundísio para a Grécia (conforme nota do tradutor das “Odes” de Horácio, Pedro Braga Falcão; aliás, esta inicial maiúscula é licença estilística minha, só para não perder o paralelismo com os os “sopros” supracitados).

 

  1. ONDE OS VENTOS UIVANTES SE CRUZAM EM MARES MUITO DANTES NAVEGADOS

Para ilustrá-los (no duplo sentido), acrescento já logo de cara, à guisa de síntese pedagógica, esta passagem lapidar do “Canto V” homérico: “Percebeu-o Posidon. Viu-o de longe (…), a manobrar a jangada. Dominado pela cólera, moveu a cabeça e falou assim ao próprio coração: ‘Quem diria? (…) Vejo-o aproximar-se da terra dos feáceos. A trança dos sofrimentos termina aí. A ordem do destino é essa. Não pense que já alcançou o topo dos males.’ Falou e congregou o exército das nuvens. Tridente em punho, agitou as águas. Convocou ventos de todos os cantos. Cobriu com um tapete trevoso terra e mar. Tomba do céu o negro véu da noite. Põem-se tempestuosos em marcha Euro e Noto, Zéfiro e Bóreas. Este levanta o dorso das águas. Odisseu cai de joelhos (…) O mastro partiu-se ao meio no violento impacto das violentas rajadas. Nas asas do vento sumiram vela e verga. Ele próprio submergiu nas águas rebeldes, sem forças para recuperar a superfície contra o golpe das ondas.” (Obra citada, p.28-29). Uma vez vistos juntos os quatro ventos (que Éolo deixou livres à sádica regência da despótica divindade marítima), recorto, pois, com a devida paciência pedagógica, os excertos citados (como quem está ciente de qus é preciso mesmo aumentar bem mais ainda o grau das lentes da imensa maioria de leitores – poetas, editores e críticos literários – míopes), focalizando em “primeiríssimo plano” o quarteto adversário, sob a perspectiva, respectivamente, de Homero, Virgílio e – para variar, e não dizer que não falei mais da segunda “sombra” – de Horácio. De olhos e ouvidos bem abertos, vou numerá-los, em romano, de I a III (não é demais repetir: primeiro, a “Odisseia”; depois, a “Eneida”; por fim, versos da primeira das “Odes” citadas), com votos sinceros de que até os não tão desnorteados – que ainda insistem; se é que não é delírio crer, a esta altura, que (milagre seria, quem dera, houvesse um) ao menos dois existem – encontrem o rumo:

I –

“Zeus, convocando o exército das nuvens, despertou Bóreas para uma batalha tempestuosa contra a frota. A sombra cobriu terra e mar. A noite baixou da concha celeste. A tempestade arrastava proas inclinadas. A força dos ventos rasgou em três, em quatro tiras as velas. Temendo a morte, nós as recolhemos. Vencemos a remo o ímpeto das ondas rumo à costa. (…) Confiamos a rota ao piloto e aos ventos. (…) Nada impedia, salvos, alcançarmos o solo pátrio, não fossem as correntes e Bóreas, que, ao contornarmos os penhascos (…), nos arrastaram para muito além (…). Dali ventos funestos me levaram durante nove dias por mares piscosos.”

II –

“(…) Ao mar carregam,

E horríssonos volvem-lhe as entranhas

Noto mais Euro, e de borrasca fértil

Áfrico; às praias vastas ondas rolam.

(…)

Bradava; e a sibilar ponteiro Bóreas

Rasga o pano, e a mareta aos astros joga,

Remos estalam; cruza a proa, e a bordo

Rende; escarpado fluido monte empina-se.

As naus já no escarcéu pendem, já descem

Num sorvedouro à terra entre marouços.

Remoinha o esto na revolta areia.”

III –

“Assim a diva rainha do Chipre,

assim os irmãos de Helena, luzentes estrelas,

assim o pai dos ventos,

apresando todos exceto o lápix,

te conduzam, navio, tu que a ti próprio

Virgílio deves em empréstimo, suplico,

que o devolvas, incólume, às fronteiras da Ática,

e que preserves a minha alma metade.

Carvalho e triplo bronze tinha

em seu peito aquele que primeiro arremeteu

frágil seu barco ao cruel pélago,

não receando nem o impetuoso Áfrico,

que com os ventos de Áquilo peleja,

nem as tristes Híades, nem a fúria de Noto:

maior juiz não há no Adriático

a seu bel-prazer as ondas elevando ou amainando.

Temeu os inexoráveis passos da morte

aquele que de olhos enxutos monstros viu a nadar,

e o mar encapelado,

e os mal-afamados rochedos (…)?”

Aproveitando que o “punctum” aqui é o “pai dos ventos”, a vária prole eólica, bem como a evocação da segunda “sombra” que Dante encontrou com o “Mestre” no “Canto IV” do “Inferno”, não é demais apresentar outros excertos ilustrativos – bem pontuais (a redundância é didática) – de mais três “Odes”. Vejamos, primeiro, estes versos, focalizando o indesejado Áfrico: “Àquele que se alegra em fender os campos pátrios/ com a enxada, nunca, nem com riquezas de Átalo/ o poderás convencer a, temeroso nauta,/ em barco cipriota o mar de Mirto atravessar./ O mercador, receando o Áfrico,/ que com as ondas de Ícaro luta, louva a calma/ e os campos da sua terra; mas logo desfeitos/ os navios conserta, não sabendo suportar a pobreza.” (Obra citada, p.55). Os versos seguintes, embora louvem o favorável Favônio (codinome do mítico Zéfiro), vale esclarecer, contrapõem a sucessão intermitente das quatro estações à “brevidade da vida”, ao derradeiro inverno existencial, tópica emblemática da lírica horaciana: “Dissolve-se o áspero inverno dando a bem-vinda vez à primavera e ao Favônio, as máquinas arrastam secas as quilhas,/ e não mais se alegra o gado nos estábulos, nem o lavrador junto ao fogo,/ nem os campos alvejam com a ebúrnea geada./ (…)/ a breve duração da vida impede-nos de encetar duradouras esperanças./ Em breve te oprimirá a noite, e os Manes da lenda [as almas dos entes queridos],/ e a esquálida casa de Plutão; e assim que por lá vagares/ não mais te sairá nos dados a presidência do vinho (…).” (Idem, p.73). No terceiro exemplo, finalmente, o “meteorologista lírico” (é providencial, aqui, o epíteto) ainda sublinha que, não necessariamente por formar nuvens, o sopro sul implicaria tempestade: contrariando a expectativa dos inexperientes navegantes, logo, a “alma metade” do vate da “Eneida” ensina que “o alvo Noto tantas vezes do negro céu/ as nuvens aclara/ pois nem sempre traz chuva” (Ibidem, p.85). Por falar nisso, não poderia concluir o parágrafo sem pegar carona nesse ambíguo vento, soprando-lhes, primeiro, estas sintomáticas palavras do herói grego Filoctetes rumo a Troia: “Despeço-me daqui antes de ir./ (…)/ Adeus, regougo oceânico e escolho/ de onde provinha o vendaval do Noto/ (…)/ Adeus, região circumsalina, Lemnos,/ concede-me o favor da brisa amiga/ aonde a magna Moira nos conduz/ e o parecer de amigos e o pan-magno/ divino que decide tudo isso!”. Evoco, ainda, a exortação do “Coro” à frota bélica argiva, encerrando a peça: “Formemos na partida um bloco único solícito as merendas oceânicas zelai pelo retorno sem transtorno (SÓFOCLES. “Filoctetes”. Edição bilíngue: tradução, prefácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2014, p.171-173).

Posto isso, aos retardatários desta espécie de rascunho para um curso de leitura “cocriativa” (certamente, noventa e nove por cento – levando em conta o percentual otimista de um por cento de navegantes que ainda não desistiram – já se perderam nas perigosas curvas digressivas desta odisseia intertextual no “grande tempo” bakhtiniano), não é redundante recordar, em primeiro lugar, que não nos esquecemos de lhes fornecer a legenda didática sobre o livro do ilustre guia da viagem dantesca. Há muitos parágrafos – e dezenas de páginas – foram dadas as diretrizes básicas aos inglórios bardos bastardos e outros leitores de primeira viagem: a obra-prima de Virgílio recomeça a partir da trágica destruição de Troia, incendiada pelos sádicos gregos (glorificada na “Ilíada”, marco originário da literatura ocidental), como vingança pelo “rapto” de Helena, mulher do rei espartano Menelau – irmão do soberano de Argos Agamêmnon (ambos tratados, não raro, pelo clássico epíteto de “atridas”, porque filhos do célebre Atreu) -, pelo príncipe Páris, filho de Príamo e Hécuba (casal real de Ílion, denominação frequente da mítica pólis destruída pelas frotas argivas – outro adjetivo pátrio, como “aqueu”, para designar os helenos, também chamados de “dânaos”). Na genealogia dos “frígios” (gentílico muito usado pelos autores da Antiguidade greco-romana para designar os troianos), dos cerca de cinquenta herdeiros da nobre prole “priâmea” (cuja locução adjetiva correspondente, é claro, é “de Príamo”), as narrativas clássicas latinas eternizaram, acima de todos, o herói Heitor, morto na fatídica disputa narcísica pelo “invencível” semideus Aquiles, cujo famoso “calcanhar” (a origem da consagrada expressão popular, vale lembrar, fora o fatal ponto fraco do tal “imortal”) seria alvejado pela flecha de Páris: o mesmo frígio que, flechado pelo filho de Afrodite (ela Vênus, para os romanos; ele, para estes Cupido, para aqueles era Eros) e ébrio de paixão pela bela Helena, tornou-se rival do enraivecido marido ciumento Menelau. Por extensão, para se vingar da humilhação, o irascível rei espartano convenceria os pares pátrios de que o indecoroso herdeiro de Príamo desonrara não só o colérico atrida traído, mas também de toda a Hélade (denominação arcaica dos territórios da Grécia), eleito “inimigo público número um”, pois, dos dânaos dos quatro cantos: no fundo, assim, seria o amor não correspondido da musa maior do prepotente senhor supremo argivo (Freud explica o subterrâneo recalque do egocêntrico tirano lacedemônio mítico) o motivo da trágica disputa incendiária entre gregos e troianos. Voltando ao ponto, para nossa flecha metafórica acertar o alvo, o fato é que Aquiles, que matou Heitor, foi morto pela flecha certeira do vingativo irmão em seu frágil calcanhar; já Páris, por sua vez, seria enviado ao Hades pela flecha envenenada de Filoctetes (herdeiro do hercúleo arco de Júpiter – o filho de Zeus, nome grego do pai, na Hélade era Héracles).

Como a memória é curta e a história é longa, é preciso apontar no mapa intertextual que, há muitos e muitos parágrafos (não só antes destes, mas também depois do princípio da nossa homérica intrépida trip crítica), já passamos – bem de passagem, é bem verdade – por “Filoctetes”. Contando com a tolerância dos melhores alunos do curso de leitura para que repita a lição aos relapsos do fundão, passo novamente a palavra ao menos paciente mestre vienense. Traduzindo o epíteto de novo (afinal, o que aqueles já veem como redundância, estes ainda haverão de ouvir como novidade), outra vez Freud dá a dica (disto que bem “dantes” dissera, pressupondo leitores – se não propriamente muito bem preparados – certamente bem menos ignorantes): “Mas o indivíduo conhece os sofrimentos psíquicos, essencialmente, no contexto das circunstâncias em que são adquiridos, e por isso o drama necessita de uma ação da qual se originam tais sofrimentos, e começa introduzindo esse evento. É uma aparente exceção que algumas peças apresentem o sofrimento psíquico já estabelecido, como o ‘Ájax’ e o ‘Filoctetes’, pois no drama grego, sendo o material bastante conhecido, a cortina sempre se levanta já no meio da peça, por assim dizer.” (FREUD, Sigmund. “Obras Completas, volume 6: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria – “O Caso Dora” – e outros textos (1901-1905)”. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p.365). Só recordei esse “já-dito”, enfim, não para esclarecer os tais diagnósticos de distúrbios psíquicos que o erudito pai da psicanálise bem definiu, no ensaio “Personagens Psicopáticos no Teatro”, evocando como pretexto ilustrativo de suas hipóteses patológicas as duas tragédias de Sófocles, mas para explicar o que não era pertinente no contexto explicar. Ou seja, que o trágico herói grego estava a caminho de Troia quando a frota argiva aportou na Ilha de Crisa para oferecer sacrifício à deusa local; Filoctetes, ao entrar incauto no recinto sagrado, fora picado no pé pela serpente protetora do templo. Seus companheiros, não suportando ouvir-lhe os lancinantes uivos agônicos, tampouco sentir o fedor pútrido da ferida gangrenosa, houveram por bem – por mal – abandoná-lo à própria sorte – ou azar – na erma ilha de Lemnos. Passados dez anos a sós e a esmo, enrolado em trapos fétidos e contorcendo-se de dor, tendo por teto uma precária gruta e por leito ásperas folhas, eis que receberia a visita de um insólito viajante, apresentando-se como suposto comerciante. Indo direto ao ponto, eis a questão: Odisseu ouvira de Heleno – filho de Príamo e Hécuba, agraciado por Apolo com o dom da adivinhação – a profecia de que os gregos só derrotariam os troianos com o auxílio do inglório desterrado. O ardiloso chefe aqueu, então, convenceu o inexperiente jovem órfão de Aquiles – Neoptólemo – a seduzir o exilado e roubar-lhe o invencível arco herdado de Héracles (em agradecimento por ter acendido a pira fúnebre, homenagem honrosa que seu próprio filho – Hilo – recusou-se a render-lhe). Sem entrar em maiores detalhes (com a necessária ressalva de que nenhum detalhe – sobretudo nesta dialógica odisseia por muitos mares tanto de há muito quanto “nunca dantes navegados” – é menor), para que a focalização da parte do trajeto não perca de vista a totalidade – o roteiro – da viagem, vou tentar atar mais algumas pontas dessas histórias sobrepostas no “grande tempo”.

 

  1. TROVÕES E TEMPESTADES: NO MEIO DA TRÁGICA TRAVESSIA TINHA O NAUFRÁGIO

Recomeço o périplo intertextual, pois, esclarecendo que citei o trecho final da tragédia de Sófocles não só porque – além de servir de pretexto para retomar a referência freudiana à peça (sublinhando que nenhuma digressão aqui é gratuita) – ele se soma aos exemplos clássicos do papel determinante dos ventos para o êxito ou fracasso das épicas viagens marítimas, mas também – sobretudo – porque serve de ponte entre as epopeias de Homero e a de Virgílio, como pressuposto para compreender os ecos intertextuais nas “Sátiras” e “Odes” de Horácio, nas “Metamorfoses” de Ovídio, na “Divina Comédia” de Dante e, finalmente, nos “Cantos” de Pound. Devo explicar ainda, particularmente ao raro e rigoroso leitor sofisticado, que a escolha de “Filoctetes” – e não da “Ilíada” (que será citada mais à frente) – para focalizar uma das etapas pregressas ao trágico embate entre gregos e troianos não se justificaria senão pelo propósito básico deste artigo, reiterado à exaustão. Ou seja, recorrendo a diferentes gêneros discursivos, ao mesmo tempo que ilustro um pouco mais os inglórios bardos bastardos “semiletrados”, provo-lhes aos incautos marinheiros amadores (o objeto indireto pleonástico é didaticamente enfático) que é impossível a travessia do imenso oceano literário – tão óbvio ululante – sem navegar por milhares de “mares dantes navegados”. Em outras palavras, a compreensão de um só texto implica a leitura de dezenas de centenas de textos diversos: nessa perspectiva é que retomei, por exemplo, o excerto daquele ensaio no qual o mestre vienense partiu exatamente – entre outras peças teatrais – de “Filoctetes”, pretexto para corroborar suas hipóteses sobre dados quadros patológicos. Em síntese, o que quero dizer, mais uma vez, é que um psicanalista não poderá interpretar o texto sem compreender a alusão do erudito autor à obra dramatúrgica. Indo além, diria que não é possível sequer entender a peça de Sófocles desconhecendo não só o contexto geral da Guerra de Troia (e, portanto, os nomes dos protagonistas e coadjuvantes citados, como Odisseu, Menelau, Agamêmnon, Ájax, Aquiles, Neoptólemo e Filoctetes, de um lado, e Príamo, Páris e Heitor, de outro), mas também as referências às divindades mitológicas (como Zeus, Atena e Héracles). Voltando ao tal herói abandonado na ilha de Lemnos, de quem Odisseu só se lembraria depois da advertência do vidente Heleno de que a vitória dos gregos dependeria da presença do exímio arqueiro no campo de batalha, reproduzo – para ilustrar novamente o “intertexto infinito” – estas linhas em que Ovídio reescreveu a mesma história que o dramaturgo grego, por sua vez, reescrevera a partir de Homero. Quem se dirige a seguir ao exilado, fazendo duras críticas ao ardiloso herói da “Odisseia”, enfim, é Ájax:

“Fosse real, quem dera, ou como tal reconhecida, a sua loucura,

e jamais este instigador do crime nos teria acompanhado

até junto das muralhas frígias! A ti, filho de Peante,

abandonado por culpa nossa, não te restaria a ilha de Lemnos,

tu que agora, segundo se diz, oculto nos antros das florestas,

comoves com teu lamento as pedras e pedes para o filho de Laertes

merecida punição. As tuas preces, se os deuses existem,

não hão de ser vãs e, ainda hoje, aquele que conosco fez

o mesmo juramento de guerra, oh!, um dos comandantes gregos,

herdeiro das flechas de Hércules, alquebrado pela doença

e pela fome, se veste e se alimenta de aves e, perseguindo-as

contra elas dispara os dardos destinados à destruição dos Troianos.

(…) Nem mereço ser considerado

réu do fato de a ilha de Lemnos, cara a Vulcano, reter em si

o filho de Peias. Defendei a vossa conduta, pois estivestes de acordo.

(…)

Uma vez que os adivinhos reclamam a presença de Filoctetes para

a destruição de Pérgamo [Troia], não me envieis a mim. Melhor é que vá

o filho de Télamon [Diomedes] e, com sua eloquência, apazigúe esse homem

a quem a dor e a cólera enlouquecem ou, astuto como ele é,

de lá o retire com qualquer ardil.

(…)

Ainda que nos detestes, aos aliados, ao rei e a mim,

ó implacável Filoctetes; ainda que me amaldiçoes e, sem causa,

consagres aos deuses a minha cabeça; ainda que, no teu

sofrimento, anseies por que o acaso me faça cair em teu poder

e pretendas derramar meu sangue e dispor da minha liberdade

como eu dispus da tua, mesmo assim eu irei ao teu encontro,

tentarei trazer-te comigo, assenhorar-me-ei, assim a Fortuna me ajude,

das tuas flecha, como me assenhorei do adivinho de Dárdano,

a quem capturei, como desvendei os oráculos dos deuses

e o destino de Troia, e como roubei do santuário rodeado de inimigos

a estátua da Minerva frígia [Palas Atena].”

(OVÍDIO. “Metamorfoses”. Edição bilíngue: tradução, introdução e notas de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2021, pp.673-675, 689-691).

Ajudando o leitor a atar as pontas das histórias, informo-lhe que as alusões da “terceira sombra” (que Dante veria após a de Horácio) remetem a estes excertos certeiros da obra do segundo grande trágico da clássica tríade grega, disparados por Héracles/Hércules na consciência do hesitante amargurado herdeiro de sua arma mortífera, determinando sua urgente partida rumo a Ílion:

“De modo, algum, sem antes escutares

as palavras de um deus, ó Filoctetes!

Diz que a voz de Héracles é audível,

seu semblante, visível!

Deixei por tua causa o lar urânico,

para fazer saber

o que decide Zeus e impedir

que sigas essa via:

escuta o que eu profiro!

Rememoro primeiro minha sina,

quanto esfalfou-me a dúzia de lavores,

até alcançar o zênite imortal.

Não é distinto o que deves sofrer:

do múltiplo sofrer aflora a glória.

Tomando a direção da pólis troica,

darás um fim à agrura de tua úlcera,

te tornas o ás do exército por mérito.

A Páris, causador de males múltiplos,

anulas, alanceando-o com meus dardos.

Devastas Ílion e o butim que o exército

te reserva, o melhor (…).

Eis o que te aconselho (…):

a tomada de Troia, belo campo,

dependerá de mútua confiança,

qual dupla de leões que caçam juntos,

ele contigo, tu com ele. Asclépio,

o médico que cura tua moléstia,

mandarei ir à cidadela de Ílion,

que não resistirá às minhas armas

novamente. Errarias te esquecendo

dos eternos, derruída a priâmea urbe.

Zeus considera o resto secundário.

Respeito ao deus não morre com os homens,

vivos ou não, pois que ele é sempiterno.

(…)

Retardar o começo é um disparate.

O momento é propício,

pois a aura favorável tange a popa!”

(SÓFOCLES. “Filoctetes”. Edição bilíngue: tradução, prefácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2014, p.169-171).

Não estivesse sempre atento ao dever didático, não acrescentaria ainda ao mapa de leitura a nota explicativa de que, nas peças de Sófocles, é atípica a aparição de uma divindade; em contrapartida, nas de Eurípides (o último mestre do célebre triunvirato trágico), os deuses têm voz e vez já no prólogo. Não só para exemplificar isso, mas também para ilustrar um pouco mais o incipiente/insipiente viajante desta odisseia literária, bem como – sobretudo – para dar sequência à narrativa épica primeva, recomeço pelo princípio (em duplo sentido), somando à espiral de vozes intertextuais “As Troianas”. Em outros termos mais explícitos, evoco a obra não só como prova de que (cinco séculos antes do primórdio bíblico) no princípio era – prototípico traço mítico – o verbo divino, mas também de que a primeira palavra, providencialmente, é do mesmo intempestivo senhor supremo marinho sempre atravessado no meio do caminho de regresso dos prepotentes intrépidos gregos à pátria perdida. Indo direto ao ponto, neste vaticínio do precipício náufrago, há de haver quem “ouviverá” ecos – entre reflexos e refrações no trágico espelho ambíguo  dialógico – da “voz visível” e do “semblante audível” de Héracles (o trocadilho sinestésico  – só vale crítica de quem sabe o que é “hipálage” – é só para deixar mais alerta os sentidos):

“Deixei o báratro salino do oceano

Egeu, onde as Nereidas gravam com os pés

um belo círculo (…). O sentimento

de simpatia nunca me abandona a mente

pela cidade de meus frígios, fumegando agora. Morre devastada pela lança argiva.

(…)

Ninguém no bosque, os templos vertem sangue, Príamo

tombou sem vida diante dos degraus do altar

de Zeus Erceu. Espólios frígios, profusão de ouro, são levados aos navios aqueus.

Na expectativa de que o vento sopre à popa,

ao cabo de um decênio, alegres por rever

mulher e filho, os gregos guerrearam contra

a cidadela. Hera argiva derrotou-me,

Palas com ela, dupla algoz da gente frígia.

Deixei a renomada Ílion com altares

a mim devotos. Quando a solidão da agrura

retém uma cidade, os rituais divinos

adoecem, não acolhem mais as honrarias.

(…)

Sob as tendas as troianas não sorteadas,

posse de quem encabeça as tropas,

entre as quais a espartana Helena tindarida,

não sem razão retida como prisioneira.

Se alguém quiser mirar uma mulher tristíssima,

eis Hécuba jazente diante dos portais.

Sobram razões para que chore aos borbotões,

pois junto ao memorial da tumba do Aquileu,

morreu-lhe a filha altiva, a triste Polixena,

e Príamo conheceu a mesma sina, e os filhos,

e o ímpio Agamêmnon, desdenhando o deus,

impôs casamento sigiloso à casta

Cassandra, a quem Apolo desnorteia. Pólis

outrora afortunada, adeus! (…)

Sobre os alicerces fulgirias,

não fora a ação de Palas, filha do Cronida.”

(EURÍPIDES. “As Troianas”. Tradução, prefácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2021, p.13-17).

Quem se pronuncia no prólogo, conforme a dica do epíteto, é o deus oceânico Posêidon. Por isso é preciso um breve parêntese metalinguístico, à guisa tanto de alerta ao leitor em formação quanto de justificativa ao de olhos de Argos. Este, é claro, certamente notou a variação de grafia do nome do “nume imenso” dos mares monumentais: nas páginas de Eurípides, a tradução de Trajano Vieira registra “Posêidon”; nos “Cantos” de Pound, o tradutor José Lino Grünewald optou por “Posídon”; já na versão da “Odisseia” por Donaldo Schüler, a divindade é identificada como “Posidon”. Antecipando-me às prováveis objeções – de interlocutores “menos sofisticados” – de que lhes chamar a atenção a esses “detalhes” seria excesso de rigor do articulista, recordo ao fundão da classe a lição martelada por Nietzsche: para aprender a ler, é preciso aprender a ver. Nos parágrafos em que se fez presente o saber enciclopédico de George Steiner, sublinhamos seu diagnóstico do grave quadro de “quase dislexia” dos néscios leitores contemporâneos: “Quão poucos de nós anotamos profusamente com rigor. Hoje em dia apenas o epigrafista especializado, o bibliógrafo ou o estudioso de textos específicos corrige, revê, repara, acrescenta, isto é, somente essas categorias de leitor encontram no texto uma presença viva (…). Quantos de nós temos o preparo suficiente para corrigir até mesmo o mais crasso equívoco na citação de um clássico (…)?”. Na síntese do erudito crítico – vale sublinhar – que propôs “escolas de leitura criativa” como antídoto contra a ignorância dos semiletrados, enfim, eis o xis da questão: “A memória é, naturalmente, o ponto crucial”. Recorrendo a ela, a propósito, ao menos alguns dos nomes citados no prólogo dispensam glossário: como é o caso de Príamo e Hécuba (casal real troiano),  de Agamêmnon (rei de Argos, irmão de Menelau) e de Helena (esposa do rei de Esparta, irmão de Agamêmnon). Embora não os tenha nomeado, não seria difícil deduzir que os filhos da rainha viúva – a que a divindade genericamente se refere – são Heitor (morto por Aquiles) e Páris (amante de Helena, assassino de Aquiles e flechado fatalmente por Filoctetes). O mesmo vale para o topônimo “Ílion” (sinônimo de “Troia”, aliás, que está no título da epopeia homérica originária – a “Ilíada” – da literatura ocidental) e os adjetivos pátrios “aqueus” e “argivos” (formas variantes de “gregos”), bem como “frígios” (equivalente a “troianos). Quanto a Polixena e Cassandra, ainda que eu não as tenha mencionado, Posêidon não só faz saber que são filhas de Príamo e Hécuba (logo, irmãs de Heitor e Páris), mas também que a primeira perdeu a vida diante da tumba do herói morto por seu irmão, e que a outra era a “casta” sacerdotisa de Apolo. Não é demais acrescentar que, tendo ela se recusado a dormir com o apaixonado deus, receberia dele tanto a graça da profecia quanto a desgraça da descrença em suas palavras: a que se provaria a mais trágica, enfim, seria não terem levado a sério o prenúncio do fúnebre incêndio (os que sobraram para contar/recontar a história diriam que, se dessem ouvidos à vidente – como se a lenda, é claro, não recriasse a “realidade”, riria John Ford – haveria de ter sido outro o destino de gregos e troianos).

Não seria preciso esclarecer, evidentemente, o que já está explícito no prólogo explicativo: ou seja, que antes do princípio (do mítico genocídio “priâmeo”) o irascível divino ser oceânico já tomara partido do povo frígio; em contrapartida, lutando do lado argivo, somaram esforços a suprema senhora Cronida (casada com Zeus) e a deusa da sabedoria e da guerra (que nascera de escudo e espada da cabeça do deus dos deuses). Apesar de Posêidon ter nomeado as divindades adversárias (“Hera argiva derrotou-me,/ Palas com ela, dupla algoz da gente frígia”), vale dizer, não mencionou que a divina Afrodite também defendera Troia: sobretudo, em nome do amor proibido de Páris e Helena. Aproveito a menção à mãe de Eros (cuja flecha certeira nos corações humanos adoece-os de paixão), portanto, para apresentá-la a partir do epíteto com o qual Horácio a evocou, no primeiro verso daquela ode em que fizera votos de boa viagem à sua “alma metade” (o grande “Mestre” de Dante). Aliás, como há pouco falamos de “Éolo” e seus filhos cardeais, e a musa do príncipe priâmeo tem tudo a ver com ela e a epopeia bélica, melhor transcrever na íntegra a estrofe: “Assim a diva rainha do Chipre,/ assim os irmãos de Helena, luzentes estrelas,/ assim o pai dos ventos” (HORÁCIO. “Odes”. Edição bilíngue: tradução, introdução e notas de Pedro Braga Falcão. São Paulo: Editora 34, 2021, p.67). Apontando-lhes, pois, as coordenadas mitológicas no mapa dialógico, no princípio era Urano, destronado pelo titânico/tirânico Crono, que castrou (Freud explica) o pai primordial: do sangue dos testículos sagrados lançados ao mar, nasceria das espumas das ondas a deusa dos amantes. O sopro oeste de Zéfiro, então, a levaria à ilha de Citera (origem do epíteto “Citereia”), conduzindo-a finalmente a Chipre. A propósito, para não dizer que não falei de Hesíodo, destaco – de seu tratado poético sobre a “origem dos Deuses” – os seguintes excertos esclarecedores dessa arcaica pré-história:

“Veio com a noite o grande Céu, ao redor da Terra

desejando amor sobrepairou e estendeu-se

a tudo. Da tocaia o filho alcançou com a mão

esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice

longa e dentada. E do pai o pênis

ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo

para trás. Mas nada inerte escapou da mão:

(…)

O pênis, tão logo cortando-o com o aço

atirou do continente no undoso mar,

aí muito boiou na planície, ao redor branca

espuma da imortal carne ejaculava-se, dela

uma virgem criou-se. Primeiro Citera divina

atingiu, depois foi à circunfluída Chipre

e saiu venerando bela Deusa, ao redor relva

crescia sob esbeltos pés. A ela. Afrodite

Deusa nascida de espuma e bem-coroada Citereia

apelidam homens e Deuses, porque da espuma

criou-se e Citereia porque tocou Citera,

Cípria porque nasceu na undosa Chipre,

e Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz.

Eros acompanhou-a, Desejo seguiu-a belo,

tão logo nasceu e foi para a grei dos Deuses.

Esta honra tem dês o começo e na partilha

coube-lhe entre homens e Deuses imortais

as conversas de moças, os sorrisos, os enganos,

o doce gozo, o amor e a meiguice.”

(HESÍODO. “Teogonia”. Edição bilíngue: estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995, pp.115, 117).

Por falar nisso, a bem da ilustração não só dos epítetos, mas também do leitor, cito ainda estes versos – de três dos fragmentos poéticos que restaram da maior voz lírica grega – em que a celebra Safo de Lesbos: “eu te peço cante/ (…)/ minha bela pois o vestido dela/ te pasmou o olhar eu assim me alegro:/ pois me repreendeu no passado a santa/ deusa do Chipre/ pela prece/ esses termos/ só desejo”; “suave/ senhor da égide/ peço-te Citereia/ com peito/ escuta esta voz”; “Morre Adônis gentil – como seguir ó Citereia?/ podem todas pungir podem puir pálios e peças” (SAFO. “Fragmentos completos”. Edição bilíngue: tradução, introdução e notas de Guilherme Gontijo Flores. São Paulo: Editora 34, 2020, pp. 85, 241, 383). Preparando a ponte para o próximo tópico, enfim, encerro com trechos de duas traduções – em língua portuguesa – da “Eneida”: a primeira (nos dois sentidos) trata a sedutora deusa pelo epíteto derivado da primeira ilha, evocando antes, todavia, a última; a última (nos dois sentidos), pelo sagrado codinome originário da segunda. De um a outro “punctum”, assim, “ouveja” bem (de lupa no “olhouvido”) estes re/versos reiterativos: “Pedir a Belo ajuda: a opima Chipre/Já vencedor meu pai vastara e tinha./ De Troia os casos desde então conheço,/ Teu nome, e os reis pelasgos. Sempre ufano/ Da anciã linhagem teucra (…)”; “Ouve o como há de ser. O infante régio,/ Desvelo meu, do genitor chamado,/ Levar a Birsa as dádivas propõe-se,/ Das vagas restos e das Teucras chamas./ Sopito em sono o esconderei no Idálio/ Jardim sacro, ou nos bosques de Citera,/ Porque os ardis não turbe inopinado.” (VIRGÍLIO. “Eneida”. Tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2004, pp.75, 77); “Poupa-te o medo, Citereia, fixos estão os fados/ dos teus: verás cidade e prometidas muralhas/ de Lavínio, e ao alto erguerás às estrelas do céu/ Eneias, grande de alma, e nenhum intento me mudou.” (VIRGÍLIO. “Eneida”. Tradução, introdução e notas de João Carlos de Melo Mota. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p.81).

 

  1. NO PRINCÍPIO ERA O MITO

Para recomeçar, mais uma vez, tudo isso só comprova – outra vez – que o conhecimento da tradição mitológica greco-romano (ao menos, mais que o básico), por exemplo, é mais uma das premissas obrigatórias de leitura tanto de obras – de gêneros diversos, com distintos graus de dificuldade – da Antiguidade (como as de Homero, Hesíodo, Safo, Sófocles, Eurípides, Aristóteles, Virgílio, Horácio e Ovídio), quanto da Idade Média (como as de Dante e Boccaccio), da era Moderna (como as de Maquiavel e Camões) ou da Contemporânea (como as de Poe, Nietzsche, Freud, Bakhtin, Pound, Barthes e Steiner). Em outros termos, não seria mera coincidência que os últimos excertos do parágrafo pregresso, ilustrando os epítetos da imortal “nascida das ondas”, sejam exatamente da clássica epopeia do “miglior fabbro” latino. Não só porque deixa implícito que seu regime de legibilidade (o que não seria o caso explicitar, no contexto em que a obra foi citada) implica – além da base mitológica estrutural – o domínio do léxico erudito e da complexa estrutura sintática (repleta de intercalações de termos, de “torcicolosos” – aspas para Manuel Bandeira – hipérbatos), mas também a memória das narrativas homéricas, refletidas e refratadas, por sua vez, nas páginas intertextuais de Virgílio. Atento aos tantos desatentos, aliás, abro-lhes novamente os olhos para rever a rota dialógica traçada: a primeira parte da “Eneida” espelha a “Odisseia” (a segunda – e última – do primeiro bardo das letras ocidentais); a segunda, a “Ilíada” (a primeira da “sombra” do “soberano” que Dante ou/viu “à frente” de Horácio, Ovídio e Lucano, orientado pelo célebre “Mestre” no “Canto IV” do “Inferno”). Levando em conta, então, que a primeira obra-prima do “poeta eminente” narra a partida da frota argiva, a chegada a Ílion e a derrota teucra, que a segunda relata o tortuoso regresso dos aqueus – entre violentos ventos, ondas adversas e trágicos naufrágios – à Grécia, e que o herói virgiliano é o sobrevivente do genocídio atravessando “mares nunca dantes navegados” à procura de uma nova Troia (até o derradeiro triunfo na “terra prometida” – a mítica Itália – pelos perversos supremos numes), é necessário retomar o curso partindo da salgada saga do herói homérico em busca da Ítaca perdida. Em outras palavras, abreviando o percurso digressivo, a questão é que não é possível compreender por que o intrépido grego – de cima a baixo – fora tão castigado (pelos raivosos raios e trovões do tirânico Cronida e pelas indomáveis vagas revoltas do possesso Posêidon), obviamente, sem antes entender por que a tentadora Citereia protegia a estirpe frígia, contrapondo-se tanto à sábia senhora da guerra, a impiedosa Atena, quanto à suprema matriarca elísia, a enciumada Hera. Indo mais direto ao ponto, não dá para ler “Ilíada”, “Odisseia” e “Eneida” (sem falar de “Filoctetes”, “As Troianas”, “Metamorfoses”, “Divina Comédia” e “Os Cantos”), em síntese, sem saber o que as três deusas – entre outros ícones olímpicos partícipes – têm a ver, de fato, com o trágico atrito mítico entre os atridas e os teucros, bem como com o inglório regresso – entre tantos naufrágios – dos intrépidos gregos. Para justificar o intertítulo e dar subsídio à interpretação do prólogo de Eurípedes, atando as pontas das oceânicas trips literárias no mapa intertextual do “grande tempo” dialógico, volto à “diva rainha do Chipre”. Sempre atento à formação dos incipientes viajantes, então, acrescento-lhes ao roteiro de leitura as coordenadas pontuais de outra obra, de gênero – não literário – diverso (não por acaso, é claro, introdutória à mitologia grega), esclarecendo, enfim, que no princípio era isto:

“Afrodite, a companheira infiel, é tida como filha de Zeus e Dioneia, uma das divindades da geração primordial. Uma outra tradição, bastante difundida, a faz nascer de Urano. Ela teria sido engendrada quando o sangue do deus, depois de sua mutilação, caiu no mar (…). Sem nenhuma dúvida, ela surge, no princípio, como uma potência temível que submete o universo inteiro a suas leis (…). Ela amou Anquises sobre o Ida, fazendo-o crer que ela era uma mortal, filha do rei da Frígia (…). Ela lhe deu um filho, Eneias, e o fez jurar jamais revelar o segredo desse amor. Da união culpada de Afrodite e Ares [deus da guerra] nasceram dois filhos, Eros e Anteros (Amor e Amor Recíproco).

(…) O Eros das cosmogonias foi completamente esquecido; sua mãe e ele não são mais as grandes figuras primordiais de antigamente, mas sim menos ornamentos. Contudo, a lenda guarda a lembrança de uma Afrodite temível. Suas maldições eram célebres. Foi ela quem inspirou em Éos (a Aurora) um amor invencível por Órion, a fim de puni-la por ter cedido a Ares. Ela castigou o desdém que lhe demonstraram as mulheres de Lemnos, atormentando-as com um cheiro insuportável, fazendo que seus maridos as abandonassem (…). Afrodite puniu ainda as filhas de Cíniras, inspirando-lhes o desejo de se prostituir (…). Todavia, foi sobretudo no momento da guerra de Tróia que seu poder explodiu. Um dia, a Discórdia lançou no meio dos Deuses uma maçã destinada à mais bela das deusas. Três delas reivindicaram o prêmio. Zeus ordenou a Hermes que conduzisse todas as três, Afrodite, Hera e Atena, ao Monte Ida (…), para que fossem julgadas pelo belo Páris, filho de Príamo. Diante dele, elas instituíram um debate e prometeram presentes. Hera prometeu ao juiz a realeza universal; Atena o tornaria invencível na guerra; Afrodite se contentou em lhe oferecer a mão de Helena, a mais bela de todas as mulheres. Páris decidiu a favor de Afrodite, e esta foi a causa da guerra entre os gregos e os troianos. Durante os combates, a deusa interveio a favor dos troianos; salvou Páris no campo de batalha, protegeu Eneias (…).” (GRIMAL, Pierre. “Mitologia grega”. Porto Alegre: L&PM, 2019, p. 46-49).

No tópico anterior, foram transcritos os versos da “Teogonia” que explicam o nascimento de Afrodite a partir da castração de Urano por Cronos (a segunda versão a que se refere o trecho acima). Para ilustrar a relação entre a tal “companheira infiel” e o deus da guerra, e o espírito bélico que animaria (conjugação de “animas” e “animus”, na leitura clínica de Carl Jung) gregos e troianos, reproduzo a versão de Hesíodo: “(…) E de Ares rompe-escudo/ Citereia pariu Pavor e Tremor terríveis/ que tumultuam os densos renques de guerreiros/ com Ares destrói-fortes no horrendo combate (…).” (Obra citada, p.159). Pierre Grimal também menciona o enlace entre a divina sedutora (dissimulando ser princesa “frígia”) e Anquises, origem daquele que viria a ser o grande herói da “Eneida”. Na perspectiva teogônica, eis a gênese do mito: “Gerou Eneias a bem-coroada Afrodite/ unida ao herói Anquises em amores/ nos do Ida enrugado e ventoso.” (Idem, p.163). Convém fazer a ressalva de que Hesíodo, na verdade, reverberou o que o aedo homérico –  reportando-se à fala do herói aqueu Estênelo a Diomedes – já havia contado nestes versos do “Canto V”: “Ó filho de Tideu, tão caro, vislumbrei/ dois homens fortes ávidos de te matar./ Nada os limita. Um é o exímio arqueiro Pândaro,/ filho sempre orgulhoso do herói Licâon;/ o outro é Eneias, que alardeia descender/ do ilustre Anquises e ser filho de Afrodite.” (HOMERO. “Ilíada”. Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2020, p.177). Só para reiterar que todas as histórias se cruzam nestes mares interdiscursivos e intertextuais, recordo-lhes ainda estes versos da epopeia latina, em que o “Mestre” do supremo bardo medieval, narrando o começo do périplo de Eneias (que não está no princípio da “Eneida”, vale sublinhar, já que a estrutura da obra não é – conforme as regras aristotélicas da “Arte Poética” – linear), reporta-se apenas ao patriarca da estirpe heroica do futuro fundador da Itália (a tal “nova Troia” prometida): “Fabricamos as naus, do fado incertos,/ Do rumo e pousada. Alisto os sócios;/ E, entrada a primavera, ordena Anquises/ Velas dar à ventura: então da pátria/ Deixo os portos chorando, a borda e os campos/ Onde foi Troia (…).” (VIRGÍLIO. “Eneida”. Tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2004, p.114). Feitas essas observações, o que aqui de fato importa destacar, das passagens reproduzidas da breve introdução à mitologia, é que a escolha da diva do Chipre como a mais bela da tríade divina, no julgamento de Páris, premiado então com o amor de Helena (signo de excelsa beleza não só entre as mortais, mas também as imortais), seria o “pomo da discórdia”. Abro um breve parêntese para lembrar que a origem dessa tão popular expressão, paradoxalmente, é ignorada (do mesmo modo, “calcanhar de Aquiles”) pela imensa maioria dos que – a torto e a direito – a empregam.  Como o “esquecimento” é sintomático (Freud explica) do apagamento dos rastros culturais deixados pelos milhares de antepassados ao longo do “grande tempo” histórico (conforme o trágico diagnóstico de Bakhtin), e “a memória é, naturalmente, o ponto crucial” (segundo sublinhou Steiner, não é demais repetir), não poderia haver melhor contexto para esclarecê-la do que este. No princípio, afinal, era o mito: ou seja, conforme reza a lenda, celebrando o casamento de Peleu e Tétis (numa das versões arcaicas, não por mera coincidência – nenhuma digressão aqui é gratuita – pais de Aquiles), Zeus deu um banquete. Ressentida por não ter sido convidada, a perversa Éris (não por acaso, a indesejada deusa da Discórdia) chegou de penetra à festa olímpica, lançando à mesa a tal maçã de ouro (furtada do “Jardim das Hespérides”, divindades primaveris), com a traiçoeira inscrição “à mais bela”. Encerro o parágrafo, assim, com a síntese – moral da história arquetípica – de Grimal: “Páris decidiu a favor de Afrodite, e esta foi a causa da guerra entre os gregos e os troianos.”

Posto tudo isso e aquilo tudo, recomeço pela peça de Eurípides: para não dizer que não falei que, na de Sófocles, a frota argiva partira de Lemnos rumo a Troia, levando a bordo o herdeiro do arco de Héracles (abandonado na inóspita ilha pela dupla atrida e seu ilustre aliado de Ítaca). Deixando mais explícito o roteiro de leitura, em “Filoctetes” o caminho era de ida; em “As Troianas”, em contrapartida, selada a vitória genocida, a trajetória da prepotente trupe grega – eis o homérico problema – era de volta à pátria imperialista. É digno de nota, partindo do princípio (em estrito sentido ético) do rígido patriarcado do mundo antigo, que as mulheres só tenham tido voz após a morte de seus filhos, irmãos ou maridos. O que não significa, todavia, que assim teriam melhor sorte: prova disso – a propósito de tantos trágicos despropósitos – é que, uma vez sorteadas pelos misóginos algozes, embarcariam como parte do espólio bélico. Escolhida por Odisseu, restaria à idosa suprema matriarca da terra devastada, por exemplo, ser escrava do grande protagonista da desgraça frígia; o destino de sua filha Cassandra, a visionária sacerdotisa de Febo (outra denominação do deus Apolo), seria seguir com o rei de Argos, como serva sexual de Agamêmnon; quanto a Andrômaca, esposa de Heitor, estaria reservado o papel de amásia do filho de Aquiles (o mesmo Neoptólemo a quem o “inescrupuloso” Odisseu atribuiria – na peça de Sófocles – a tarefa de ludibriar Filoctetes, roubando-lhe as mágicas armas). Dadas mais essas coordenadas didáticas, para ensinar os “jovens” viajantes a ler o mapa – e achar o norte – dialógico, convém abrir ainda mais suas pálpebras, a fim de que possam ouvir melhor – da própria boca do “pomo da discórdia”, bem como da de Hécuba – os infaustos fatos. Contextualizando, depois de duramente acusada pela mãe do amante morto (pela flecha envenenada certeira do mesmo exímio arqueiro – vale recordar – resgatado do solitário exílio na ilha de Lemnos), sob o argumento de que o marido espartano deveria matar a traidora para recobrar a “honra” ultrajada pela “adúltera”, Helena lança mão do último meio de se livrar do fim fatal, já sentenciado por Menelau. Passando-lhes a palavra, pois, tanto a réplica da condenada, quanto a tréplica da ressentida viúva do velho Príamo (identificadas, respectivamente, por I e II – com o perdão da prudência redundante), servem não só de lição de retórica, mas também – sobretudo aos que precisam aprender a ver/ler antes de aprender a escrever (ponto positivo a quem enxergou a alusão a Nietzsche) – ensinam a compreender/interpretar (mais um ponto positivo a quem enxergou a alusão a Bakhtin) a história sob diferentes/divergentes pontos de vista (nos dois sentidos – outro ponto positivo a quem enxergou também a já tão evidente metáfora visual). Enfim, seria subestimar a inteligência do leitor que fez tais progressos, certamente, soprar-lhe a informação – como se, não sendo cego, precisasse de guia – de que ambos os trechos reiteram um dos célebres epítetos da “temível” sublime diva (tão amada quanto odiada, Freud explica) “nascida das ondas”:

I –

“Talvez não me respondas, sendo indiferente

se eu fale bem ou mal: me vês como inimiga.

Como posso prever do que me acusarás

quando for tua vez, responderei opondo

minhas acusações às tuas, e o contrário.

Em primeiro lugar, foi Hécuba quem deu

à luz o mal, gerando Páris. Em segundo,

o velho, ao não matar o filho neonascido,

imagem triste do tição, a mim fatal

e a Ílion. Ouve o resto, como se apresenta:

Páris julgou o jugo tríplice das três

deusas: o dom de Palas era devastar

a Grécia, à frente do tropel dos frígios. Hera

prometeu-lhe o domínio da Ásia e dos confins

da Europa, caso Páris a escolhesse. Cípris,

que sucumbiu ao meu aspecto, prometeu-me

a ele, se em beleza superasse as outras

deusas. Vê como então a história transcorreu:

Cípris venceu, e minhas núpcias foram úteis

à Grécia: não se deu a imposição dos bárbaros,

nem recorrestes à arma sob a tirania.

O que beneficiou a Grécia me arruinou,

pois fui vendida por minha beleza, e críticas

recebo de quem deveria me coroar.

Dirás que não abordo o que mais conta, as bodas,

como parti secretamente do teu lar.

(…)

Não é a ti que inquirirei, mas a mim mesma:

pensava em quê quando parti com o estrangeiro,

traindo o meu país e os meus? Censura Cípris

e sê mais forte do que Zeus, pois se ele exerce

poder sobre as demais deidades, é escravo

dela! Mereço compreensão.”

II –

“Primeiro me associo às deusas e demonstro

que não há um pingo de justiça no que disse.

Não creio que Hera e Palas possam ter chegado

a tamanha tolice, a ponto de a primeira

vender Argos aos bárbaros, e Atena impor

a Atenas algum dia a servidão dos frígios,

se por futilidade ou jogo disputaram

quem era mais bonita no Ida. Hera, deusa,

por que haveria de querer tanto a beleza?

A fim de conseguir um par melhor que Zeus?

E quanto a Palas, foi caçar as bodas divas,

alguém que ao pai rogara a virgindade, alheia

às núpcias? Não pretendas transformar as deusas

em tolas, para embelezar tua maldade.

O sábio não te segue. E o sumo do ridículo:

afirmas que Afrodite acompanhou meu filho

ao lar de Menelau. Serena lá no céu,

não poderia te levar junto

(…). Meu menino era

incrivelmente lindo, e, ao vê-lo, tua mente

tornou-se Cípris. A loucura é Afrodite,

conforme o início de seu nome: ‘aphrosyne’,

insensatez.”

(EURÍPIDES. “As Troianas”. Tradução, prefácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2021, pp.99, 101, 103, 105).

Estando já bem inequívoco o princípio mítico (revisto e ampliado – de Homero a Virgílio, de Safo a Horácio, de Hesíodo a Sófocles, de Eurípides a Ovídio, de Dante a Pound – sob as mais diversas perspectivas, inclusive não literárias), é hora de retomar o curso. Para prosseguir viagem, contudo, depois de tantas e extensas digressões explicativas, é preciso voltar ao ponto de partida (em outro percurso metafórico da travessia, trata-se de dar “um passo atrás para dar dois à frente” – quem leu Lênin não carece de legenda para a paráfrase do “recuo tático”): ou seja, ao prólogo da peça do último dos três grandes trágicos gregos. Lembro-lhes que, dizendo direto e reto ao que veio, no princípio era Posêidon: “Deixei o báratro salino do oceano/ Egeu, onde as Nereidas gravam com os pés/ um belo círculo (…). O sentimento/ de simpatia nunca me abandona a mente/ pela cidade de meus frígios, fumegando/ agora. Morre devastada pela lança argiva.” (Obra citada, p.13). A propósito, dando mais um passo atrás (para avançar, à frente, ainda mais), esclareço o reflexo/eco, no prólogo do indômito sádico deus marinho de Eurípedes, do introito do despótico discurso narcísico de Héracles – “através do espelho” complexo de Sófocles – a Filoctetes: “Deixei por tua causa o lar urânico/ (…)/ A Páris, causador de males múltiplos,/ anulas, alanceando-o com meus dardos./ Devastas Ílion (…)./ Eis o que te aconselho (…):/ a tomada de Troia (…).” (Obra citada, p.169). Se esse “punctum” (na “câmara clara” de Barthes), aliás, de fato ajuda a “atar as duas pontas”, do “cabo” ao “introito” (aspas duplas – porque paráfrase de duas obras – para Machado) dessas “milumaestórias” (na perspectiva telescópica das “Galáxias” intertextuais de Haroldo), é preciso explicar o que precisamente significa – nos dois sentidos – isso. Isto é, num nível de análise, focalizando os dois clássicos “atores da enunciação” (em termos técnicos semióticos, que o senso comum traduz como “autores”), é traço recorrente de “Eurípides” a presença de uma entidade mitológica divina já no prólogo; nas páginas de “Sófocles”, em contrapartida, a aparição de qualquer voz sagrada – seja no “introito”, no meio ou, como neste caso, no “cabo” – é atípica. Em outras palavras, resumindo o que particularmente aqui nos interessa, em “Filoctetes”, o discurso divino começa no fim da peça, exortando o arqueiro exilado a partir, da ilha em que fora abandonado, rápido a Ílion, para destruir a estirpe troiana, representada metonimicamente por Páris: a viagem dos dânaos (outra denominação dos gregos), portanto, recomeça do meio do caminho. Já em “As Troianas”, a divindade se pronuncia no início do texto, posicionando-se ao lado dos vencidos, com evidente ânimo de vingança contra os vitoriosos assassinos incendiários: o roteiro agora é em direção contrária, anunciando o recomeço do árduo regresso à Grécia. A propósito, páginas adiante, a visionária Cassandra anunciaria todos os infaustos infortúnios da volta da frota argiva, que Odisseu – após aportar, no último naufrágio, em Esquéria – iria relatar aos anfitriões:

“Pobre Odisseu, ignora o que padecerá;

ouro há de parecer-lhe o meu revés, e o frígio,

pois uma década se somará à década

em Troia, até alcançar a pátria solitário.

Onde a horrenda Caríbdis mora, no canal

entre os rochedos, e o Ciclope antropófago

dos montes, e a metamorfoseadora Circe

de suínos, e os naufrágios pelo mar salino,

e os amantes de lótus, e a grei do Sol, sacra,

que um dia emitiram som da carne, voz

amarga para o herói. Sintetizando os fatos,

ao Hades vai com vida, de onde foge ao mar,

para encontrar em casa muitos dissabores.

Mas por que miro as penas de Odisseu?”

(EURÍPEDES. “As Troianas”. Edição bilíngue: tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2021, p.55).

 

  1. CANTOS DE REGRESSO À PÁTRIA: ERAM OS DEUSES DEMASIADO HUMANOS

Antes de apresentar os trechos mais ilustrativos do diálogo em que Posêidon e Palas Atena determinam o destino trágico da frota grega, para orientar o desnorteado viajante, exercitando a memória atrofiada dos bardo-bastardos e demais leitores semiletrados a bordo, é providencial retomar, dos longos excertos transcritos da “Odisseia”, o início da narração do herói – no “Canto IX” – à corte do rei feácio Alcínoo (ou “feáceo”, conforme a versão de Donaldo Schüler): “Voltemos à minha viagem de regresso. Adianto que foi sofrida – Zeus assim o quis – quando partimos de Troia. Ao deixar Ílion o vento me impeliu (…). Zeus, convocando o exército das nuvens, despertou Bóreas para uma batalha tempestuosa contra a frota. A sombra cobriu terra e mar. A noite baixou da concha celeste. A tempestade arrastava proas inclinadas. A força dos ventos rasgou em três, em quatro tiras as velas. Temendo a morte, nós as recolhemos. Vencemos a remo o ímpeto das ondas rumo à costa. (…) Confiamos a rota ao piloto e aos ventos. (…) Nada impedia, salvos, alcançarmos o solo pátrio, não fossem as correntes e Bóreas, que, ao contornarmos os penhascos (…), nos arrastaram para muito além (…). Dali ventos funestos me levaram durante nove dias por mares piscosos.” (Obra citada, p.117). Convém recordar também as palavras do narrador sobre a fúria do intempestivo deus marinho contra Odisseu, tão logo este se libertara do jugo da apaixonada ninfa Calipso, partindo da misteriosa ilha de Ogígia numa frágil embarcação construída às pressas: “Percebeu-o Posidon (…). Viu-o de longe (…), a manobrar a jangada. Dominado pela cólera, moveu a cabeça e falou assim ao próprio coração: ‘(…) Vejo-o aproximar-se da terra dos feáceos. A trança dos sofrimentos termina aí. A ordem do destino é essa. Não pense que já alcançou o topo dos males.’ Falou e congregou o exército de nuvens.” (Idem, p.25-27). Não poderia encerrar essa prévia contextualização ao prólogo de “As Troianas” sem mais uma passagem fundamental para entender por que o perseguia tão obsessivamente o irascível “Treme-Terra” (um dos epítetos do supremo regente dos mares, na tradução “transcriativa” do helenista Donaldo Schüler). Trata-se de outra aventura, enfim, narrada aos anfitriões no “Canto IX”, após o ardiloso herói ter cegado o ciclope Polifemo (filho da colérica divindade): “O desgraçado levantou as mãos e dirigiu uma prece a seu protetor: ‘Ouve-me, Posidon, de cabelos escuros como as profundezas do mar, se de fato és meu pai, não permita que Odisseu volte para casa. Falo do filho de Laertes com domicílio em Ítaca. Digamos que a Moira lhe garanta rever os amigos, retornar a seu fortificado palácio, pisar o solo pátrio. Nesse caso, retarda tudo isso. Pereçam todos os companheiros, volte em nau estranha, encontre desgraça em casa.’ Foi o que pediu. O Cabeleira-Negra lhe deu ouvidos.” (Idem, p.143).

Com essas didáticas coordenadas contextuais extras, não parece excesso de confiança supor que não só compreenderão os tais trechos da peça de Eurípides, por exemplo, leitores como os calouros do curso supletivo de escrita recreativa “miniministrado” pelo mais eminente “bardocente” do mercado subtropical das letras miúdas, mas até mesmo (por paradoxal que pareça aos mais incrédulos críticos) bardo-bastardos da estatura do próprio tupiniminimonumental “Le Little Petit Poucet Poète”, é certo, serão capazes de atar as pontas das “milumaestórias”, após a leitura deste diálogo divino (nos dois sentidos) entre Palas Atena e Posêidon. Para não repetir os nomes dos “numes”, enfim, suas vozes são indicadas a seguir, respectivamente, por I e II:

I –

“Venho por Troia, onde nós nos encontramos,

e por tua potência, caso a partilhes.”

II –

“Deixaste para trás antiga hostilidade,

sensível ao estado de Ílion, hoje em cinzas?”

I –

“Torna ao ponto central: meu argumento te

sensibiliza? És sócio do que planifico?”

 

II –

“Direi que sim, mas me esclarece o teu desígnio:

vens por causa de aqueus, ou pela gente frígia?”

I –

“Quero agradar as troas, antes adversários,

E impor o travo do retorno à tropa aqueia.”

II –

“Como mudas de humor tão facilmente, e amas

e odeias tanto alguém que o acaso te apresente?

 

I –

“Ignoras que fui agredida, com meus templos?

(…)

Nenhum aqueu o censurou, impôs-lhe pena.”

II –

“Tua força os auxiliou na destruição de Troia.”

 

I –

“Daí eu recorrer a ti para puni-los.”

II –

“Pois estou pronto a te ajudar. O que farás?”

I –

“Desejo transtornar a volta dos helênicos.”

II –

“Em terra firme ou quando estejam no alto mar?”

I –

“Quando naveguem de retorno para o lar,

Zeus choverá, arrojará granizo horrível,

e a tempestade plúmbea há de se armar no ar.

Me prometeu doar seu fogo lampejante

para eu incendiar as naves dos aqueus.

Como é de tua alçada, faz com que a encosta

egeia ruja com os vórtices do mar,

enche de mortos o oco dos baixios da Eubeia,

a fim de que os aqueus aprendam no futuro

a venerar meus templos e as demais deidades.”

II –

“Assim será. A graça não requer delongas

de parlendas. Conturbarei o mar Egeu.

O litoral de Míconos, o escolho em Delos,

Lemno e Ciro, os promontórios cafereus,

irão recepcionar inúmeros cadáveres.

Mas volta para o Olimpo, empunha os dardos fúlgidos

que te oferece o pai, espera até que o exército

aqueu desfralde as velas. Louco é quem derrui

a urbe, templos, túmulos reduz ao vácuo,

recintos sacros dos que já morreram, ele

mesmo, mais tarde, destinado a falecer.”

(Idem, p.17-23).

Para não perder o hábito, começo o parágrafo após os trechos transcritos não só para provar, na própria prática de leitura, o princípio bakhtiniano da “cocriação dos intérpretes”, mas também para cumprir o pedagógico papel (o trocadilho é só para lembrar o tradicional suporte da escrita, após a revolucionária invenção – saudação à memória do grande Gutenberg – da imprensa) de ilustrar alguns leitores (um pouco, ao menos, os poucos menos “semiletrados”). Indo direto ao ponto, assim, sem esquecer que – embora seja de Palas Atena a primeira fala acima – no princípio era de Posêidon a palavra, vários dados centrais podem ser depreendidos dos excertos. Ainda que não se soubesse que a deusa guerreira havia lutado ao lado dos gregos, por exemplo, supondo-se – ao ouvi-la dizer “Venho por Troia, onde nós nos encontramos” e solicitar auxílio ao deus marinho – que ambos seriam adversários dos dânaos, a irônica interrogativa retórica dele não deixa dúvida de que ela – até então insensível ao cruel genocídio, contribuiu decisivamente para a tragédia incendiária de Ílion. O fato que aqui importa é que sua resposta, assumindo a responsabilidade pelo grave equívoco reiterado, em tom provocativo, pelo intransigente interlocutor (“Tua força os auxiliou na destruição de Troia”), evidencia a súbita mudança de lado, a favor agora das troianas, ávida por castigar – criando-lhes mil entraves no caminho de regresso à pátria (“Desejo transtornar a volta dos helênicos”) – os outrora protegidos. Justificando essa drástica transformação do amor em ódio aos aqueus, para que o irmão marítimo somasse suas forças às dela para o êxito do plano punitivo, a pergunta retórica de Palas finalmente o convence: “Ignoras que fui agredida, com meus templos?” Aqui cabe uma legenda explicativa, esclarecendo o tal tão grave desrespeito subentendido em sua fala fatal: na hiperbólica pulsão tanática tão típica da atmosfera de guerra, o selvagem argivo Ájax (o mesmo narcísico herói que se suicidaria, inconformado por ter sido preterido, na sintomática disputa de egos com Odisseu, como “legítimo” herdeiro das armas de Aquiles) havia tomado à força – justamente no templo da filha virgem armada/amada de Zeus – a virgem sacerdotisa de Febo (a mesma Cassandra visionária, filha de Príamo e Hécuba, que fora sorteada – como parte do espúrio espólio bélico – pelo autoritário rei atrida de Argos); com o agravante, ainda, da acintosa cumplicidade herege dos sórdidos pares, razão da sentença – ampla, geral e irrestrita – condenatória coletiva (“nenhum aqueu o censurou, impôs-lhe pena”). A anuência de Posêidon, então, além de que já tomara partido dos troianos, era também  – obviamente – de ordem “corporativa”, em defesa inflexível do princípio sagrado pressuposto no trágico prólogo: “os templos vertem sangue (…)/ Deixei a renomada Ílion com altares/ a mim devotos. Quando a solidão da agrura/ retém uma cidade, os rituais divinos/ adoecem, não acolhem mais as honrarias.” (Obra citada, p.15). Aliás, em outras palavras divinas (em dupla via), convém recordar que foi exatamente o mesmo eloquente alerta de perigo de Héracles – na peça de Sófocles – a Filoctetes (extensivo aos tão insolentes quanto surdos – pleonasticamente, evidente – impávidos patrícios), antes da decisiva partida da intrépida trupe bélica grega à futura triste Troia destroçada: “Errarias te esquecendo/ dos eternos, derruída a priâmea urbe./ Zeus considera o resto secundário./ Respeito ao deus não morre com os homens,/ vivos ou não, pois que ele é sempiterno.” (Obra citada, p.169).

Para não dizer que não falei – novamente – que qualquer semelhança, em “mares dantes navegados”, jamais será mera coincidência, é preciso trazer à memória dialógica a epopeia de Virgílio, prova do princípio discursivo de que todo “dito” sempre se ancora num “já-dito”: em outros termos, sua obra-prima (obra magna da literatura clássica latina) serve de exímio exemplo de que uma história sempre parte – direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente – de outras histórias. Sem entrar em detalhes, e desviar o dis/curso noutra curva digressiva no meio do imenso caminho, basta dizer – por ora – que o mesmo “Eneias”, que na “Ilíada” é um, e na “Teogonia” é outro, na “Eneida” já não é mesmo um nem outro (parafraseando Heráclito, o mesmo homem jamais navega duas vezes o mesmo mar: um e outro, afinal, são sempre “outros”). A respeito do “respeito ao deus” e do despeito olímpico, produto do desrespeito do soberbo narcísico pretenso “semidivino” (no diagnóstico de Nietzsche, tudo tão – sintomático – “humano, demasiado humano”), evoco a voz épica do “miglior fabbro” – no século primeiro pré-Cristo – herdeiro do bardo primeiro. Digerindo antropofagicamente os gregos engolidos pelos romanos, assim, numa espécie de revanche histórica da trágica destruição mítica de Troia, estes trechos do “Canto I” reverberam aqueles (Eurípedes ecoando Sófocles ecoando Homero) “aqueus” hereges castigados pelos raios raivosos de Zeus e dos seus. Vale sublinhar – ah, a sempre necessária legenda didática – que os nomes dos “numes”, contudo, já não seriam mais os mesmos: o Cronida agora era Júpiter; Hera chamava Juno; Palas Atena e Afrodite, respectivamente, Minerva e Vênus. Vejamos, pois, entre reflexos e refrações “através do espelho” dialógico, as recorrências revistas e amplificadas (dos párias e pares de Páris – “nel mezzo del cammin” – entre pedras e perdas, tinha uma outra novantiga guerra):

“Isso a temer, e lembrada Satúrnia da guerra antiga

que, antes, diante de Troia, armara por caros Aqueus

(nem ainda as razões do rancor e cruéis tormentos

caíram do peito; aí, no fundo, fica renovado

de Páris o juízo e a afronta, sua beleza desprezada,

e a casta odiosa e a glória de Ganimedes raptado):

com isso, a arder, agitados por todo o oceano,

aos Tróades, restos dos Dânaos e de Aquiles atroz,

afastava longe do Lácio; e por longos anos,

fados a os tocar, volteavam por todos os mares:

de tanto peso era plantar a Romana nação!

Mal da vista do Sículo torrão pelo mar alto

velejam alegres, rompem com o bronze espumas de sal,

eis quando Juno, a ter no peito a chaga fixa,

isto a si diz: ‘E eu, vencida, largar o intento?

e não poder revolver da Itália o rei dos Teucros?

Eh! Me tolhem fados. Palas queimou toda a esquadra

dos Aqueus e aos mesmos pôde afundar nas ondas,

por culpa de um só e do furor de Ajax, filho de Oileu.

Ela mesma, lançando das nuvens o rápido raio

De Júpiter, desfez naus, mexeu mares com ventos;

a ele a expirar chamas, têmporas varadas,

com turbilhão o agarra e o crava em aguçado rochedo.

E eu que me vou, rainha dos deuses, de Júpiter,

de igual, irmã e esposa, com um povo só, por anos

faço guerra! E há alguém que adore a deidade de Juno?

Ou, o que é mais, suplicante, põe no altar oferta?’ (…).” (VIRGÍLIO. “Eneida”. Tradução, introdução e notas de João Carlos de Melo Mota. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p.74).

Aproveito o pretexto do excerto e esclareço que “Satúrnia” é um dos epítetos de Hera/Juno, filha de Cronos (e irmã, portanto, de Zeus/Júpiter, de quem seria a sétima e última esposa), segundo o “Velho Testamento” da mitologia grega (na era arcaica do Titãs), rebatizado pelos romanos de Saturno (a quem atribuem a fundação de Roma, não por acaso tão citado na “Eneida”): no princípio era Hera, antes de ser supremo signo maternal da fertilidade, divindade bélica. Retomando as referências interdiscursivas, para costurar os parágrafos e dar unidade ao ensaio, recordo que Cronos era filho de Gaia (a Terra) e de Urano (o Céu), a quem destronou, castrando-o: Afrodite nasceria do sacro esperma misturado à espuma das ondas (de acordo com a “Teogonia”, cujos trechos transcrevemos). Após tomar o lugar o “pai primordial” (aspas para o recorrente termo freudiano, eixo estrutural de “Totem e Tabu”), temeroso da previsão dos progenitores de que também seria destronado por um filho, o tirano urânico tratou então de devorar todos frutos de sua relação com Reia: exceto o último (Zeus), que a desolada deusa escondera, dando ao déspota, como se o recém-nascido fosse, uma pedra. Aliás, sem descansar de comprovar (a “exaustividade”, afinal, é um dos princípios metodológicos – bem guardadas as devidas proporções, já que este ensaio não é, obviamente, uma pesquisa científica –  de validação das hipóteses) a premissa básica de que a compreensão das obras clássicas implica, via de regra, o conhecimento de inúmeros personagens, lugares e termos específicos (mitológicos, geográficos, históricos), este é outro providencial pretexto para ilustrar os tão desinformados leitores contemporâneos “tupinimínimos” (quem dera houvesse mais vozes dando corpo a um coro didático, entoando afinado, em alto e bom som, o canto convicto de que cursos de leitura – além de muito mais necessários como antídoto à “quase dislexia” dos desafinados “semiletrados” – tem de preceder imprescindivelmente os contraproducentes cursos de “escrita criativa” tão em voga). Sempre zeloso a esse imperativo pedagógico, pois, transcrevo a seguir o capítulo de Hesíodo – quase na íntegra – sobre “O nascimento de Zeus”:

“Reia submetida a Crono pariu brilhantes filhos:

Héstia, Deméter e Hera de áureas sandálias,

o forte Hades que sob o chão habita um palácio

com impiedoso coração, o troante Treme-terra

e o sábio Zeus, pai dos Deuses e dos homens,

sob cujo trovão até a ampla terra se abala.

E engolia-os o grande Crono tão logo cada um

do ventre da mãe descia aos joelhos,

tramando-o para que cada outro dos magníficos Uranidas

não tivesse entre os imortais a honra de rei. Pois soube da Terra e do Céu constelado

que lhe era destino por um filho ser submetido

apesar de poderoso, por desígnios do grande Zeus.

E não mantinha vigilância de cego, mas à espreita

engolia os filhos. Reia agarrou-a longa aflição.

Mas quando a Zeus pai dos Deuses e dos homens

ela devia parir  suplicou-lhe então aos pais queridos,

aos seus, à Terra e ao Céu constelado,

comporem um ardil para que oculta parisse

o filho, e fosse punido pelas Erínias do pai

e filhos engolidos o grande Crono de curvo pensar.

Eles escutaram e atenderam à filha querida

e indicaram quanto era destino ocorrer

ao rei Crono e ao filho de violento ânimo.

Enviaram-na a Licto, gorda região de Creta,

quando ela devia parir o filho de ótimas armas,

o grande Zeus, e recebeu-o a Terra prodigiosa

na vasta Creta para nutri-lo e criá-lo.

(…)

Encueirou grande pedra e entregou-a

ao soberano Uranida rei dos antigos Deuses.

Tomando-a nas mãos meteu-a ventre abaixo

o coitado, nem pensou nas entranhas que deixava

em vez da pedra o seu filho invicto e seguro

ao porvir. Este com violência e mãos dominando-o

logo o expulsaria da honra e reinaria entre imortais.

Rápido o vigor e os brilhantes membros

do príncipe cresciam. E com o girar do ano,

enganado por repetidas instigações da Terra,

soltou a prole o grande Crono de curvo pensar,

vencido pelas artes e violência do filho.

Primeiro vomitou a pedra por último engolida.

Zeus cravo-a sobre a terra de amplas vias

em Delfos divino, nos vales ao pé do Parnaso,

signo ao porvir e espanto aos perecíveis mortais.

E livrou das perdidas prisões os tios paternos

Trovão, Relâmpago e Arges de violento ânimo,

filhos de Céu a quem o pai em desvario prendeu;

e eles lembrados da graça benéfica

deram-lhe o trovão e o raio flamante

e o relâmpago que antes Terra prodigiosa recobria.

Neles confiante reina sobre mortais e imortais.”

(HESÍODO. “Teogonia”. Edição bilíngue: estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995, p.131-133).

Seria preferível – se não fosse, infelizmente, imprescindível – não ter de repetir, pela milésima vez, que a compreensão/interpretação de um texto (já expliquei – repetindo, inclusive, essa ressalva – a distinção de Bakhtin entre as duas etapas da leitura como “cocriação de intérpretes”) implica a homérica travessia de milhares de “mares dantes navegados”. Sob tal perspectiva, pois, é que o conhecimento desse episódio da “Teogonia”, por exemplo, ajuda a esclarecer o alerta de Héracles a Filoctetes, a fim de que o herói não se esquecesse jamais de louvar a suprema divindade. Para exercitar as memórias atrofiadas pela falta de hábito de leitura “responsiva”, despertando-lhes a lembrança dos longos fragmentos transcritos da peça de Sófocles, destaco como estímulo este excerto: “Zeus considera o resto secundário./ Respeito ao deus não morre com os homens,/ vivos ou não, pois que ele é sempiterno.” (Obra citada, p.171). Aliás, aos tão apressados em se tornar escritores que – crendo possível pular etapas, publicar seus precários livrinhos e entrar rápida e rasteiramente no risível circo das letrinhas – prescindem de ler, é providencial sublinhar que, para escrever o diálogo entre Atena e Posêidon (o “troante Treme-terra”, epíteto que Hesíodo emprestou de Homero), evidentemente, Eurípides já havia lido – entre inúmeras outras – as epopeias homéricas e a obra teogônica do bardo grego. Se o tal prólogo de “As Troianas” outrora soara a vários, invariavelmente, tão hermético, não é possível que agora não lhes pareçam bem mais nítidas (ao menos, na pior das hipóteses, menos obscuras) estas alusões da deusa guerreira e do deus marinho às mortíferas armas do impiedoso onipotente Cronida: “Quando naveguem de retorno para o lar,/ Zeus choverá, arrojará granizo horrível,/ e a tempestade plúmbea há de se armar no ar./ Me prometeu doar seu fogo lampejante/ para eu incendiar as naves dos aqueus”; “Mas volta para o Olimpo, empunha os dardos fúlgidos/ que te oferece o pai” (Obra citada, p.21-23). Só para dar mais uma prova – por via das dúvidas, insisto à exaustão – de que a leitura de uma obra, sobretudo se inscrita na tradição clássica greco-romana, implica a de várias outras, aproximo bem o foco (em “primeiríssimo plano” – na terminologia cinematográfica), a fim de que consigam enxergar o óbvio ululante refletido nestes versos especulares daqueles excertos há pouco citados da “Eneida”, nos quais o “Mestre” de Dante até parece ter reescrito (condensando as falas e referindo-se a Zeus como  Júpiter) os trechos da peça do último dos grandes trágicos da tríade clássica grega. Enfim, a esta altura, não seria excesso de otimismo supor que inclusive “Le Little Petit Poucet Poète” – o memorável mestre míope maior dos cursos supletivos de escrita recreativa – conseguirá ver, evidentemente, que qualquer semelhança entre os gigantes do “grande tempo” literário não haveria de ser mesmo mera coincidência: “Ela mesma, lançando das nuvens o rápido raio/ De Júpiter, desfez naus, mexeu mares com ventos;/ a ele a expirar chamas, têmporas varadas,/ com turbilhão o agarra e o crava em aguçado rochedo./ E eu que me vou, rainha dos deuses, de Júpiter,/ de igual, irmã e esposa, com um povo só, por anos/ faço guerra!” (Obra citada, p.74).

A propósito, embora improvável não seja impossível que haja algum discípulo do inglório “bardocente” bastardo a bordo (com os cinco sentidos deseducados, desgraçadamente tão desacostumados de usá-los, como se não fosse preciso aprender a ver para aprender a pensar – premissas imprescindíveis, dissera com todas as letras Nietzsche, para poder aprender a escrever), por prudência – em que pese a preguiça (a repetição da aliteração da “bilabial surda” é expressão das pedras “nel mezzo del cammin” da pregação a estúpidos parvos, pesada penitência ao pobre professor), explico-lhes até o que já está tão explícito. Ou seja, que nos versos de Virgílio é a voz de Juno que vocifera (aquela que outrora fora Satúrnia, divindade bélica; a mesma cujo nome, sendo outro em outra Grécia, era Hera). Quem evoca o “Julgamento de Páris”, contudo, é o narrador, trazendo à memória – entre parênteses, literalmente – o ponto de partida da fúria dela e de Atena, preteridas pela sedutora Citereia, que dera de prêmio ao filho de Príamo, honrando a promessa ao árbitro, a bela Helena, de que resultaria a disputa bélica entre aqueus e teucros e a trágica destruição de Troia: “(nem ainda as razões do rancor e cruéis tormentos/ caíram do peito; aí, no fundo, fica renovado/ de Páris o juízo e a afronta, sua beleza desprezada).” (Obra citada, p.74). No prólogo de Eurípides, em contrapartida, quem fala é Palas, a deusa que nascera da cabeça de Zeus já armada, com o escudo numa mão e a espada na outra. Seu pedido ao intempestivo parente marinho – que antes do início, por princípio, já tomara partido do povo frígio – atesta o que Hera (que era, já àquela época, Juno) dissera sobre aquela que outrora fora sua cúmplice na guerra e trocara de lado, “lançando das nuvens o rápido raio” – emprestado do supremo pai Cronida para destruir agora os gregos – que cravado em cheio no alvo argivo, só se daria por contente, finalmente, quando constatara consumada a vingança tanática: “queimou toda a esquadra”. Por falar nessa troca de lado, e não dizer que não falei que o termo “Tróades” – mencionado na fala de Juno na “Eneida” – significa “As Troianas” (entre aspas e inicias maiúsculas, atando as pontas da epopeia latina à tragédia grega), exatamente as mesmas outrora adversárias em favor das quais – sob outra denominação – Atenas confessara a Posêidon, neste trecho, desejar lutar: “Quero agradar as troas (…)/ E impor o travo do retorno à tropa aqueia”. Passo a palavra então a Posêidon, propondo ao leitor – testando-lhe a atenção – que troque de lugar com a arguta “Deusa dos Olhos de Coruja” (um dos célebres epítetos homéricos da “atenta Atena”, na transcriação de Donaldo Schüler da “Odisseia”), para responder ao “Treme-Terra” (este recorrente epíteto, na versão de Schüler, aparece em iniciais minúsculas na tradução de Trajano Vieira – que se refere à divindade do mar também como “Sacudidor-da-terra”, marcando em caixa alta só a inicial do epíteto composto; do mesmo modo Jaa Torrano em “Treme-terra”, na tradução da “Teogonia”). Eis, enfim, as três perguntas (no fundo, diferentes provocações interrogativas retóricas da mesma questão central): “Deixaste para trás antiga hostilidade,/ sensível ao estado de Ílion, hoje em cinzas?”; “Direi que sim, mas me esclarece o teu desígnio:/ vens por causa de aqueus, ou pela gente frígia?”; “Como mudas de humor tão facilmente, e amas/ e odeias tanto alguém que o acaso te apresente?” (Obra citada, p.19).

Não poderia passar direto ao próximo ponto, contudo, sem esclarecer ao menos mais algumas questões, atando este ao tópico pregresso. De volta para o passado, assim, a fim de que o leitor aprendiz possa ver melhor – para poder pensar sobre elas e, assim, compreendê-las –  as “transformações de estado” (na terminologia semiótica de Greimas) de Atena, trago à memória o ilustrativo trecho de “As Troianas” no qual Helena, tentando provar sua inocência ao marido atrida “traído”, dissera-lhe ter sido dada ao rival frígio, como “prêmio”, pela sedutora Citereia eleita pelo árbitro priâmeo a mais bela da tríade olímpia: “Páris julgou o jugo tríplice das três/ deusas: o dom de Palas era devastar/ a Grécia, à frente do tropel dos frígios. Hera/ prometeu-lhe o domínio da Ásia e dos confins/ da Europa, caso Páris a escolhesse. Cípris,/ que sucumbiu ao meu aspecto, prometeu-me/ a ele, se em beleza superasse as outras/ deusas. Vê como então a história transcorreu:/ Cípris venceu, e minhas núpcias foram úteis/ à Grécia: não se deu a imposição dos bárbaros” (Obra citada, p.99). Repito também, como endosso enfático para o menos estúpido bardo-bastardo ouvir bem de perto – ao pé do “olvido” absurdo – o que asseverou no parágrafo anterior a voz do narrador da “Eneida”: “as razões do rancor e cruéis tormentos/ caíram do peito; aí, no fundo, fica renovado/  de Páris o juízo e a afronta, sua beleza desprezada,/ e a casta odiosa” (Obra citada, p.74). Não há sombra de dúvida, é claro, de que a deusa da guerra não só no princípio não era – bem como Hera (“a ter no peito a chaga fixa”, sublinhou Virgílio) – contra os supostos “bárbaros” teucros, mas também poderia favorecê-los: não fosse o despeito (duplo, de fato) pelo resultado pró-Cípria no pleito. Ou seja, se é certo que, conforme o “Canto IV” da “Ilíada”, na tétrica trincheira antipriâmea “Atena Tritogênia encorajava os dânaos,/ no meio dos soldados, onde esmorecessem”, o alvo do ímpeto bélico de seus “olhos glaucos”, na verdade, era a “cínica uranida”, segundo evidenciam estes tão sintomáticos versos do épico “Canto V”: “Diomedes, vai lutar, enfrenta agora os troicos!/ Infundi no teu peito a fúria de teu pai,/ imperturbável, um ginete que brandia/ o escudo. Removi a névoa de teus olhos/ a fim de que distingas numes de mortais./ Se um deus vier aqui te provocar, evita/ enfrentá-lo, jamais o faça com qualquer/ um deles, excetuando Afrodite. Se ela/ entrar na guerra, então atira o dardo agudo.” (Obra citada, p.169-171). Logo, não é difícil concluir que, do mesmo modo como outrora ajudou os dânaos a destruir os dardânios, segundo lhe jogou na cara o irônico deus marinho, Palas não haveria de ter trocado de lado – obstinada em “transtornar a volta dos helênicos” – apenas para “agradar as troas”. Aliás, supondo que um ou outro viajante de melhor memória, recordando a passagem das “Metamorfoses” em que Ájax se vangloriara de ter roubado “do santuário rodeado de inimigos/ a estátua da Minerva frígia”, dissesse que a sábia deusa, em face dessa inadmissível desonrosa desfaçatez, dera o troco na mesma moeda retórica – “Ignoras que fui agredida, com meus templos?” – à incisiva cobrança do provocativo deus sarcástico (conforme os trechos transcritos do prólogo de “As Troianas” no parágrafo pregresso), certamente estaria “vendo” os fatos às avessas, com olhos vendados de quem religiosamente crê, no fundo, na razão divina acima de tudo.

Dito isso que já é muito, bem além daquilo que já era tanto, que me perdoe quem não está perdido e não carece, portanto, de gabarito; mas acredito ser preciso de fato, enfim, recomeçar o próximo tópico do princípio, explicando aos não muitos discípulos de “Le Little Petit Poucet Poète” – e aos demais não poucos semi-iletrados liliputianos – o intertítulo. Ou seja, por que razão os deuses haveriam de ser demasiado humanos.

 

  1. ERA UMA VEZ DE NOVO: O ETERNO RETORNO DO MESMOUTRO

Para organizar o raciocínio, dando direcionalidade à argumentação, é preciso partir da premissa de que, no imaginário grego arcaico, as ações humanas não eram autônomas, isto é, não dependiam única e exclusivamente de suas vontades. Em outros termos, não havia livre-arbítrio, o destino – a “Moira” – era determinado por insondáveis forças superiores: os homens, portanto, eram meras peças no tabuleiro dos deuses, em cujo jogo de “guerra e paz” se definia a vida e a morte – as regras, é claro, eram estabelecidas pelo “pai dos deuses e dos homens”, árbitro supremo do Olimpo. Esse universo de valores estruturais da consciência mitológica clássica está representado, a propósito, nestes ilustrativos trechos dos Cantos I, II, III, IV e IX da “Ilíada”: “O plano do Cronida se cumpria (…).”; “(…) se Zeus nos der derruir o muro e a urbe troica (…).”; “Outros hão de me honrar, mormente Zeus, mente sagaz.”; “Mesmo se (…) não falte sensatez,/ arrisco sugerir que dês prazer a Zeus./ Evita irá-lo (…)./ Se Zeus fulminador quisesse (…)./ Não há quem se lhe equipare em força.”; “Ruína açula os troicos, como quer Zeus (…)./ O ingênuo ignorava o que Zeus (…).”; “Zeus, filho de Cronos, enredou-me em dura agrura (…)./ Não há como fugir ao que decida.”; “Grande é a fúria de um rei, progênie do Cronida./ Sua honra vem de Zeus, sapiente Zeus que o ama.”; “Zeus pai, tua crueldade é superior à de outros/ deuses (…).”; “Falou, e o pai dos deuses e homens a ouviu (…)./ Será que a guerra tétrica se reinicia/ ou Zeus,/ que é árbitro das lutas entre os homens,/ impõe um pacto de amizade entre os dois povos?”; “(…) Vale mais que exércitos,/ um homem cujo coração agrade a Zeus.” (HOMERO. “Ilíada”. Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2020, pp.15, 21, 25, 47, 53, 57, 61, 123, 135, 317). Sem entrar em maiores detalhes, enfim, chamo a atenção apenas para o fato de que, embora sejam distintas as vozes (do “aedo” ao atrida Agamêmnon, do ancião Nestor de Pilos ao deus coxo Hefestos, de um anônimo aqueu à divina Palas), constroem em uníssono a simbólica imagem de onipotência do maestro da imortal orquestra do Olimpo. Aproveitando a metáfora musical (não por mera coincidência, aliás, o termo “Canto” condensa – evocando a memória originária da arte literária ocidental – “poesia” e “música”), há sintomáticas manifestações metonímicas da sinfonia sagrada, soprada – através do instrumento específico de um ou outro, entre inúmeros numes e timbres – nos “olvidos” dos homens, a fim de lembrar-lhes que é dever dos “mortais” sempre dançar conforme a música. Para não dizer que não deixei de falar que isso é um eufemismo, porque não haveria mesmo de perder a deixa do trocadilho, em síntese, o fato é o seguinte: se fosse facultativo não seria preciso, afinal, dançar para não dançar. Indo direto ao ponto, para entender por que os deuses são demasiado humanos, Freud explica que são criações psíquicas, nos dois trechos a seguir:

“O próprio Deus está agora tão elevado acima dos homens, que só é possível se relacionar com ele pela mediação do sacerdote (…) O sacrifício, tal como é agora, sai inteiramente de sua responsabilidade. O próprio Deus o exigiu e o ordenou. A essa fase pertencem mitos em que o próprio deus mata o animal que lhe é consagrado, e que na verdade é ele mesmo. É a máxima negação da grande atrocidade com a qual começaram a sociedade e a consciência de culpa. Um segundo significado desta última figuração do sacrifício não pode ser ignorado. Tal significado expressa a satisfação pelo fato de que se abandonou o antigo substituto do pai em favor da ideia de deus, mais elevada. A tradução superficialmente alegórica da cena coincide aqui, aproximadamente, com sua interpretação psicanalítica. Aquela diz: figura-se o fato de o deus superar a parte animal de seu ser.” (FREUD, Sigmund. “Totem e tabu”. Porto Alegre: L&PM, 2019, p.217-218).

“É particularmente digno de nota o caso em que um grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de obter garantias de felicidade e proteção contra o sofrimento mediante uma transformação delirante da realidade. Precisamos caracterizar também as religiões da humanidade como delírios coletivos desse tipo.

(…) Como foi que tantos seres humanos chegaram a esse ponto de vista de surpreendente hostilidade à cultura? Penso que um descontentamento profundo e prolongado com o respectivo estado de cultura preparou o solo sobre o qual, em certas ocasiões históricas, surgiu a condenação (…). Semelhante fator de hostilidade à cultura já deve ter tomado parte na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs. Tal fator, pelo menos, estava muito próximo da depreciação da vida terrena consumada pela doutrina cristã.” (FREUD, Sigmund. “O mal-estar na cultura”. Porto Alegre: L&PM, 2017, pp.73-74, 83).

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Linguística pela USP. Escreveu em coautoria o material paradidático Arte e Cultura nos Anos 60 (Editora Anglo). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua PortuguesaDiscutindo LiteraturaArte & InformaçãoLivro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010, lançou o livro Toque de Letra (editora nhambiquara).  Tem parcerias com Tatá Aeroplano, Gustavo Galo e Cabelo (Trupe Chá de Boldo), Pélico, Juliano Gauche, Carlos Zimbher, Reynaldo Bessa e Wella Borges Costa. E-mail: carvalho70@gmail.com




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