Ler muito para escrever um pouco


(Nossos poetas leem pouco e escrevem muito).

 

“A cocriação dos intérpretes. (…) O encontro com os grandes como algo que determina obriga e vincula é o momento supremo da compreensão (…). A índole responsiva do sentido (…). Aquilo que nada responde se afigura sem sentido para nós, afastado do diálogo (…). O sentido é potencialmente infinito, mas só pode atualizar-se em contato com outro sentido (do outro), ainda que seja com uma pergunta do discurso interior do sujeito da compreensão. Ele sempre deve contatar com outro sentido para revelar os novos elementos da sua perenidade (…). A compreensão recíproca entre os séculos e milênios, povos, nações e culturas assegura a complexa unidade de toda a humanidade, de todas as culturas humanas (a complexa unidade da cultura humana), a complexa unidade da literatura da sociedade humana. Tudo isso se revela unicamente no nível do grande tempo (…). A análise costuma desenvolver-se no espaço estreito do pequeno tempo, isto é, da atualidade do passado imediato e do futuro representável (…). Quanto a mim, em tudo eu ouço ‘vozes’ e relações dialógicas entre elas. Eu também interpreto dialogicamente o princípio de complementaridade (…). Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Mesmo os sentidos ‘do passado’, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, jamais podem ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre hão de mudar (renovando-se) no processo do futuro desenvolvimento do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em um novo contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação.”

(BAKHTIN, Mikhail. “Notas Sobre literatura, cultura e ciências humanas”. São Paulo: Editora 34, 2017, pp.36, 41, 74, 78-79).

Postei há poucos dias um longo excerto de Bakhtin que – embora bem reduzido, potencializado aqui – reproduzo em epígrafe: para não dizer que não falei por que Barthes parafraseou a máxima discursiva de que o “intertexto”, enfim, é a prova inequívoca da “impossibilidade de viver fora do texto infinito”. Aliás, na “espiral de vozes” daquele post, o semiólogo francês traduziria a noção bakhtiniana do “grande tempo”, na síntese aforismática de que “quanto mais cultura houver, maior será o prazer” dialógico. Para ilustrar a tese, ele lembrou que, lendo em Stendhal uma passagem de outro autor, “por um minúsculo pormenor”, veio-lhe à memória Proust, e que “alhures, mas da mesma maneira, em Flaubert, são as macieiras normandas que leio a partir de Proust” – cuja obra elegeu (ou fora eleito por ela), em epíteto poético, “a ‘mandala’ da cosmogonia literária”. Com a providencial ressalva (desnecessária naquele post, mas imprescindível neste, em que o foco é justamente a “índole responsiva” do leitor – a “cocriação dos intérpretes”) de que “isto não quer de modo algum dizer que sou um ‘especialista’ em Proust: Proust é o que me ocorre, não é o que chamo; não é uma ‘autoridade’; é simplesmente ‘uma lembrança circular’ (…).” (BARTHES, Roland. “O prazer do texto”. São Paulo: Perspectiva, 1977, p.49).

A propósito, não fosse esse o “punctum” crítico – na “câmara clara” – deste post, não só não me lembraria de qualquer exemplo de Proust, mas sobretudo deste, exatamente sobre a atividade da leitura como pré-requisito da produção escrita (porque “o livro faz o sentido, o sentido faz a vida”, afinal):

“O que é preciso, portanto, é uma intervenção que, vinda de um outro, se produza no fundo de nós mesmos, é o estímulo de um outro espírito, mas recebido no seio da solidão (…). Seja porque (…) a exaltação que acompanha certas leituras tem uma influência propícia sobre o trabalho pessoal, cita-se mais de um escritor que amava ler uma bela página antes de se pôr a trabalhar. Emerson raramente começava a escrever sem antes reler algumas páginas de Platão. E Dante não é o único poeta que Virgílio teria conduzido às portas do paraíso.”

(PROUST, Marcel. “Sobre a leitura”. Porto Alegre: L&PM, 2016, p.34-35).

Não fosse também devido a isso (e aquilo), não me ocorreria fechar com chave de ou(t)ro, citando este excerto certeiro do ensaio “O leitor incomum”, do enciclopédico crítico literário George Steiner:

“A memória é, naturalmente, o ponto crucial. A capacidade de reagir ao texto, a compreensão e a resposta crítica (…). O leitor reage ao texto com toda a densidade articulada de seu próprio repertório de referências e associações (…). A grande maioria de nós já não sabe mais identificar – e muito menos citar (…). Os interstícios do nosso saber não comportam ecos, pois estão entulhados de trivialidades estridentes. Não espere que um estudante, ainda que relativamente bem preparado, reaja (…), que lhe diga o que é uma écloga, que reconheça uma sequer das alusões de Horácio, ou os ecos de Virgílio (…).”

(STEINER, George. “Nenhuma paixão desperdiçada”. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.26-27).

Para não dizer que não falei antes porque não saquei só agora que dizer que “o estímulo de um outro espírito” não poderia ser “recebido” senão “no seio da solidão”, como dissera Proust, tem tudo a ver com Steiner falar que “ler com toda a atenção é fazer silêncio dentro do silêncio”, digo que só quando é como agora é que posso falar que não só “em tudo eu ouço ‘vozes’ e relações dialógicas entre elas”, mas também que “interpreto dialogicamente o princípio de complementaridade” (para não dizer que não falei – suprassumo da epígrafe – de Bakhtin). Outrora não só não teria sentido, mas também nem pensaria nisso, é claro, porque sequer teria lembrado que tudo tem tudo a (re)ver com este Pound:

“Vivo a sustentar que foram necessários dois séculos de Provença e um de Toscana para desenvolver os meios para a obra-prima de Dante; que o preparo dos instrumentos de Shakespeare exigiu os latinistas da Renascença, a Plêiade, e mais a sua própria era de linguagem pintada.”

(POUND, Ezra. “Retrospectiva”. In: “A arte da poesia: ensaios escolhidos de Ezra Pound”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.17).

Se não houvesse aqui citado Proust, não só não o teria relido dizer que “da pura solidão o espírito preguiçoso não pode tirar nada, pois é incapaz de, sozinho, pôr em movimento sua atividade criativa”, mas também relembrado – precisamente pelo gatilho da releitura – deste tiro do filósofo iconoclasta no alvo (circular do intertexto infinito):

“Não há nada de que nossa cultura mais padeça que do excesso de indolentes presunçosos e de humanidades fragmentárias: ‘contra’ a vontade [as escolas] são verdadeiras estufas para essa espécie de estiolamento dos instintos do espírito (…). Ainda procuro alguém com quem eu possa ser sério à minha maneira (…): ah, quem compreenderá como um ermitão se refaz aqui!”

(NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. “Crepúsculo dos ídolos – ou como se filosofa com o martelo”. Porto Alegre: L&PM, 2019, p.69).

Diria que só agora, relendo Steiner dizer que “a atrofia da memória é a característica principal da educação e da cultura a partir do século vinte”, escutei Nietzsche falando – no crepúsculo do século anterior – que “faltam educadores, primeira precondição da educação”; logo “são necessários educadores que sejam ‘eles próprios educados’, provados pela palavra e pelo silêncio, culturas amadurecidas”. Poderia até dizer, por falar nisso, que também “saboreio” aqui – como diria Barthes, “a inversão das origens”, comungando da “desenvoltura que faz com que o texto anterior provenha do texto anterior”; do mesmo modo que este, ao mesmo tempo (a simultaneidade do trocadilho é sintomática da “lembrança circular”), ao dizer “deve-se aprender a ‘ver’, deve-se aprender a ‘pensar, deve-se aprender a ‘falar’ e a ‘escrever’: nos três casos, a meta é uma cultura nobre”, ecoa no futuro. Ou seja, como se fosse filme de Buñuel, sonho o sonho do filósofo-filólogo no sonho de Steiner:

“Carrego comigo um sonho de ‘escolas de leitura criativa’ (…). Precisaríamos aprender a decompor as frases em seus elementos constituintes e analisar gramaticalmente nosso texto, pois, como Roman Jakobson já nos ensinou, não terá acesso à gramática da poesia, aos nervos e aos tendões do poema, aquele que não enxergar a poesia da gramática (…). Uma turma de ‘leitura criativa’ mover-se-ia passo a passo. Começaria pela quase dislexia dos hábitos atuais de leitura. Teria a ambição de atingir o nível de competência bem-informada que as pessoas eruditas da Europa e dos Estados Unidos possuíam, digamos, no final do século dezenove.”

(STEINER, George. “Nenhuma paixão desperdiçada”. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.30-31).

Posto isso e aquilo tudo, enfim, o fato é que, só querendo dizer aqui que há muito mais cursos de “escrita criativa”, paradoxalmente, do que de “leitura criativa” (a “cocriação dos intérpretes” deve necessariamente preceder, afinal, a criação de quaisquer autores), lembrei que Steiner citou Horácio e, relembrando que fora citado também por Nietzsche, recordei uma das “Sátiras” do “miglior fabbro” latino. Transcrevendo-a, entretanto, não só “encontro” Molière, mas também, transcrevendo-lhe o trecho especular da peça “O Misantropo”, “encontro” (como Barthes a Proust) outro de Pound soprando-me – com rigor provocativamente iconoclástico – no “olvido” da memória interdiscursiva (não propriamente porque precisasse me lembrar, mas para que não se pudesse esquecer “a impossibilidade de viver fora do texto infinito”):

“Mas são muito poucos os livros que um homem precisa ler para ‘conhecer o seu rumo’, para formar uma opinião correta de qualquer texto literário que lhe possa surgir à frente. A lista, na verdade, é tão curta que é de espantar que as pessoas, os escritores profissionais em particular, consintam em deixá-los ignorados e continuem suspensos no caos a emitir as opiniões mais imbecis e a corromper frequentemente a produção de toda a sua existência”

(POUND, Ezra. “Retrospectiva”. In: “A arte da poesia: ensaios escolhidos de Ezra Pound”. São Paulo: Cultrix, 1988, p.40).

Em outros termos, é o mesmo que Nietzsche já falou e disse: “O meu gosto pode ser o contrário de um gosto tolerante (…). No fundo, é um número bem pequeno de livros antigos que conta em minha vida; os mais famosos não estão entre eles”. Considerando, aliás, que “o ensino escolar de nossos dias” pioraria ainda muito mais a “amnésia planejada” diagnosticada por Steiner, o martelo do filósofo soaria sarcasticamente muito mais pesado à época do que o do póstero poeta: “O quanto a consciência tinha outrora para remorder! Que bons dentes ela tinha! – E hoje? O que está faltando?’ – Pergunta de um dentista.” (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. “Crepúsculo dos Ídolos”. Porto Alegre: L&PM, 2019, pp.22 e 128). Embora o do alemão não só lhe tenha poupado, mas também elevado às alturas estéticas elísias – protegendo-a acima de tudo e contra todos – a cabeça do bardo latino: “Não foi diferente no meu primeiro contato com Horácio. Até hoje, poeta algum me proporcionou o mesmo encanto artístico que me foi dado desde o início por uma ode horaciana (…). Esse mosaico de palavras em que cada uma delas, como som, como lugar, como conceito, derrama a sua força à direita e à esquerda e sobre o todo, esse ‘minimum’ em extensão e número de signos, esse ‘maximum’ assim alcançado na energia dos signos – tudo isso é romano e, se quiserem acreditar em mim, ‘nobre par excellence’. Toda a poesia restante, em comparação, se torna algo popular demais – mera tagarelice sentimental.” (Idem, p.129). Em contrapartida, a pena pesada de Pound – sem decapitá-la, todavia (do contrário não confessaria, na sintomática ressalva, o exagero crítico: “Rogo ao leitor observar que estou sendo extremamente iconoclasta”) – não lhe soaria assim tão suave: “Um especialista poderá ler Horácio se estiver interessado em aprender a exata demarcação entre o que se pode e o que não se pode aprender sobre a arte de escrever. Quero dizer que Horácio é o exemplo perfeito de um homem que adquiriu tudo que se pode adquirir, sem possuir a base” (Idem, p.41). Horácio, aliás, poderia ter-lhe respondido assim:

“Com estes meus versos me deleito e folgo;

Não para que de Apolo o templo atroem,

Solicitando a aprovação de um Tarpa;

Nem para que uma vez, e outra, à cena

Vão mendigar os públicos aplausos”

(HORÁCIO. “Sátiras”. São Paulo: Edipro, 2011, p.71).

 

O fato, enfim, é que queria dizer que estou farto de ver tanto curso de “escrita criativa” propagandeado nas redes, como se fosse possível “formar poetas” sem alimentar-lhes de muita leitura antes: o que implica que deveria haver, na verdade, muito mais cursos de leitura (como sonhava George Steiner) do que de escrita. Ando absolutamente de saco cheio também de ver tanto poeta publicando, e tão pouca poesia se apresentando de fato. Sem falar no tédio de ver esses poetinhas narcísicos fazendo ostensiva propaganda de seus livrinhos… Isso me traz à memória estes outros versos satíricos do grande Horácio:

“Sim, disse que, com pé desconcertado,

Corriam de Lucílio os duros versos:

E quem há tanto seu, que, estulto, negue? (…) Que folga de escrever duzentos versos

Em jejum, e ceado inda outros tantos?

Tal o talento foi de Cássio, o etrusco,

Mais que um rio veloz, férvido e solto;

Que reduzido (é fama) a cinzas fora

Em pira feita de seus próprios livros (…).

Nem tu, contente com leitores poucos,

Deves querer que a multidão te admire.

Preferirás, demente, que teus versos

Em vis escolas recitados sejam?

Eu não – basta que os nobres me elogiem (…).”

(HORÁCIO. “Sátiras”. São Paulo: Edipro, 2011, pp.71-73).

Para concluir essa teia intertextual da memória discursiva no “grande tempo” bakhtiniano, recordei estes versos de “O Misantropo” de Molière:

Senhor, assunto assim é sempre delicado,

Por todo beletrista o aplauso é esperado.

Mas um dia, a alguém cujo nome eu omito

Eu disse, sobre uns versos que havia escrito,

Que o homem precisa saber se controlar

Quando algum frêmito o tenta a versejar;

E deve ter no freio qualquer tentação

Que o leve ao mau passo de tal diversão:

E a fome de mostrar a outros o que escreve

Talvez a alguns papéis lastimáveis o leve.

(…) Qual a necessidade que tem de rimar?

Que raios o levam a querer publicar?

………(MOLIÈRE. “O Misantropo”. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, pp.34-39).

Para concluir, diria que seria tolice esperar uma leitura “responsiva” dos nossos poetas a este post: minhas críticas, até como mecanismo de defesa deles, têm sido ostensivamente ignoradas. Aos leitores cúmplices, contudo, ofereço a seguir estes excertos exemplares da tessitura dialógica que estruturei entre Nietzsche, Horácio, Molière e Pound. Boa viagem!

“(…) Para terminar, algumas palavras sobre esse mundo para o qual busquei acessos, para o qual talvez eu tenha encontrado um novo acesso: o mundo antigo. O meu gosto, que pode ser o contrário de um gosto tolerante, também nisso está longe de dizer sim em bloco (…). Isso vale para culturas inteiras, isso vale para livros – isso também vale para lugares e paisagens. No fundo, é um número bem pequeno de livros antigos que conta em minha vida; os mais famosos não estão entre eles. Meu sentido de estilo, para o epigrama como estilo, despertou quase instantaneamente no contato com Salústio. Não esqueci o espanto de meu venerado professor Corssen quando teve de dar a nota mais alta ao seu pior aluno de latim – num instante eu estava pronto. Conciso, severo, com tanta substância quanto possível em seu fundamento, uma maldade fria em relação à ‘palavra bela’, também ao ‘sentimento belo’ – nisso me descobri. Será reconhecida em minhas obras, até em meu ‘Zaratustra’, uma ambição muito séria pelo estilo ‘romano’ (…). Não foi diferente no meu primeiro contato com Horácio. Até hoje, poeta algum me proporcionou o mesmo encanto artístico que me foi dado desde o início por uma ode horaciana (…). Esse mosaico de palavras em que cada uma delas, como som, como lugar, como conceito, derrama a sua força à direita e à esquerda e sobre o todo, esse ‘minimum’ em extensão e número de signos, esse ‘maximum’ assim alcançado na energia dos signos – tudo isso é romano e, se quiserem acreditar em mim, ‘nobre par excellence’. Toda a poesia restante, em comparação, se torna algo popular demais – mera tagarelice sentimental.

(…) No fim das contas, tenho ao meu lado os mais refinados juízes de gosto entre os próprios antigos.”

(NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. “Crepúsculo dos ídolos – ou como se filosofa com o martelo”. Porto Alegre: L&PM, 2019, pp.128-129).

 

Sim, disse que, com pé desconcertado,

Corriam de Lucílio os duros versos:

E quem há tanto seu, que, estulto, negue?

Mas também, nesse escrito, eu mesmo o louvo

Do largo sal que há desparzido em Roma.

Nem por isto lhe cedo, o mais lhe outorgo:

Que assim devera de Labério os momos

Com pasmo olhar como ótimos poemas.

Não basta arreganhar com riso o ouvinte,

Bem que haja nisto algum merecimento:

Cumpre ser breve, e que a sentença corra,

Sem que os termos a lassa orelha onerem:

Cumpre de estilo usar, sisudo agora,

Gracioso muita vez, e em que transpirem

Já do orador, já do poeta as galas;

Ou já do cortesão, que acintemente

As próprias forças extenua, e poupa.

Um motejo, um ridículo frisante,

Grandes coisas melhor decide às vezes,

Do que a própria razão austera e forte.

Nisto apraz, de modelo nisto sirva

O que hão escrito os cômicos antigos (…).

(…) – Outrora

Eu, que sou daquém mar, uns gregos versos

Tentei fazer. – Quirino eis se me antolha;

(Era depois da meia-noite, quando

Não mente o sonho) e com tal voz me embarga:

‘Ao mato leva lenha, é doido aquele,

Que a turba imensa dos poetas gregos

Quer ainda aumentar.’

(…)

Com estes meus versos me deleito e folgo;

Não para que de Apolo o templo atroem,

Solicitando a aprovação de um Tarpa;

Nem para que uma vez, e outra, à cena

Vão mendigar os públicos aplausos:

Dentre os vivos só tu, Fundano, podes,

Polido ornar os cômicos escritos (…).

Nem tirar-lhe da fronte, certo, ousara

O laurel que com tanto aplauso a cinge (…).

E, por quem és, inteligente e douto,

Nada achas que arguir no grande Homero?

Não ris dos versos, menos graves, de Ênio?

Pois, se em si fala, não se crê mais digno?

E que nos tolhe os seus escritos lendo?

De ver, se escasso gênio, ou duro o assunto

Lhe nega o verso mais suave e culto

(…)

Que folga de escrever duzentos versos

Em jejum, e ceado inda outros tantos?

Tal o talento foi de Cássio, o etrusco,

Mais que um rio veloz, férvido e solto;

Que reduzido (é fama) a cinzas fora

Em pira feita de seus próprios livros.

Seja Lucílio gracioso, urbano;

Mais limado e puro que Ênio seja,

(Desta poesia autor, ignota aos gregos)

E mais que a turba dos antigos vates;

Que se o fado à nossa era o reservara,

Em muito se polira, cerceando

Quando excedesse do bom gosto as raias;

Muita vez ao poetar, esfregara a testa,

E se roera, até ao vivo, as unhas.

Quem, para lido ser, medita, e escreve

Uma vez, e outra vez revolve o estilo.

Nem tu, contente com leitores poucos,

Deves querer que a multidão te admire.

Preferirás, demente, que teus versos

Em vis escolas recitados sejam?

Eu não – basta que os nobres me elogiem (…).

(HORÁCIO. “Sátiras”. São Paulo: Edipro, 2011, pp.71-73).

 

ALCESTE

Senhor, assunto assim é sempre delicado,

Por todo beletrista o aplauso é esperado.

Mas um dia, a alguém cujo nome eu omito

Eu disse, sobre uns versos que havia escrito,

Que o homem precisa saber se controlar

Quando algum frêmito o tenta a versejar;

E deve ter no freio qualquer tentação

Que o leve ao mau passo de tal diversão:

E a fome de mostrar a outros o que escreve

Talvez a alguns papéis lastimáveis o leve.

(…)

Qual a necessidade que tem de rimar?

Que raios o levam a querer publicar?

(…)

Creia-me, e resista enfim à tentação

De revelar a todos tal ocupação;

Não chegue a abandona, manchando todo o resto,

A fama que na corte tem de homem honesto,

Para receber da mão de um ávido editor

A de um homem risível e péssimo autor.

(…)

Esse estilo figurado, que hoje é vaidade,

Falseia tanto o caráter quanto a verdade:

É só jogo de palavras e afetação,

E nunca fala assim a natureza, não.

Me assustam maus gostos dos versos dos senhores,

E nossos pais, mais rudes, faziam melhores.

E eu prezo bem menos seu modo de fazer

Que uma velha canção que aqui lhe vou dizer (…).

A rima não é rica, e o estilo antiquado;

Mas não vê mais valor nesse verso passado

Que em firulas nas quais bom senso mal perdura,

E nos quais a paixão se expressa toda pura?

(…)

(Para Philinte.)

Sim, o senhor que ri, apesar de galante,

Gosto bem mais disso que da pompa enfeitada

Da joia falsa que por aí é cantada.

ORONTE

Pois lhe garanto eu que são bons os meus versos. (…) A mim basta ver a importância que outros dão…

ALCESTE

É que eles têm a arte de fingir, e eu não.

(…)

PHILINTE

Já viu que ser sincero assim, sem qualquer trave,

O deixa agora a braços com um problema grave;

Eu vi que Oronte, pra ter seu aplauso, esperou…

(…)

ALCESTE

Não; tudo o que me disse está bem trabalhado,

Mas nada do que eu disse pode ser mudado

(…)

Por uma liminar coroa seu mal feito,

E achando pouco o mal que contra mim foi feito

Faz correr pelo mundo um livro abominável,

Do qual só a leitura já é condenável,

Um livro a ser punido com enorme rigor,

Do qual esse canalha inda me diz autor!

(…)

Ele, que é honesto, e na corte benquisto

A quem eu só fui franco e sincero – só isto –

E que me apareceu com ardor inesperado,

Para saber, de uns versos, o que tinha eu pensado,

Pedindo que eu falasse só com honestidade,

E que eu não traísse a ele ou à verdade,

Agora me acusa de um crime imaginário,

E eis que hoje ele é meu maior adversário!

Ele a mim não perdoa, e está assim frio,

Porque ao seu soneto eu neguei elogio.

E os homens, diabo, hoje são desse jeito,

E o que conquista a glória é esse tipo de feito (…).

(MOLIÈRE. “O Misantropo”. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, pp.34-39, 104-105).
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“Começo neste tom lamentoso, pois me agradaria muito mais estirar-me sobre o que restou do pavimento do salão de Catulo e esquadrinhar o azul lá embaixo e as colinas distantes em Salo e Riva, com suas divindades esquecidas a andarem por entre elas, sem empecilhos, do que discutir processos e teorias de arte. Preferiria jogar tênis. Não vou entrar em discussões.

(…) Vivo a sustentar que foram necessários dois séculos de Provença e um de Toscana para desenvolver os meios para a obra-prima de Dante; que o preparo dos instrumentos de Shakespeare exigiu os latinistas da Renascença, a Plêiade, e mais a sua própria era de linguagem pintada. É tremendamente importante que a grande poesia seja escrita; não faz a menor diferença quem escreva. As demonstrações experimentais de um indivíduo podem poupar o tempo de muitos – daí o meu entusiasmo por Arnaut Daniel; se as experiências de um homem ensaiam uma nova rima ou descartam de maneira conclusiva o mínimo que seja de algum absurdo corretamente admitido, esse homem, ao anotar seus resultados, está apenas fazendo jogo limpo com seus colegas (…).

Acredito que possa escrever poesia quem o queira; a maioria o faz. Acho que todo homem deve conhecer a música o suficientemente para tocar ‘God bless our home’ numa sanfona, mas não acredito que todo indivíduo possa dar concertos e publicar seus pecadilhos musicais. O domínio de qualquer arte é trabalho para uma vida inteira (…). É indiscutível que o caos atual persistirá até a Arte da poesia ter sido assimilada pelo amador, até haver uma compreensão generalizada do fato de que a poesia é uma arte e não um passatempo; um grande conhecimento de técnica, da técnica superficial e da técnica de conteúdo, para que os amadores deixem de procurar sobrepor-se aos mestres.

Se determinada coisa foi dita, de uma vez por todas, na Atlântida ou na Arcádia, 450 anos antes de Cristo, ou 1290 anos depois, não cabe a nós modernos sair por aí a redizê-la ou a obscurecer a memória dos mortos, repetindo a mesma coisa com menos talento e convicção (…). Cada época tem seus próprios talentos (…), mas só algumas os convertem em algo durável. Nunca se escreveu poesia de boa qualidade usando um estilo de vinte anos atrás, pois escrever dessa maneira revela terminantemente que o escritor pensa a partir de livros, convenções e clichês, e não a partir da vida; contudo, um homem que sinta o divórcio entre sua arte e a vida pode naturalmente tentar ressuscitar uma moda esquecida se encontrar nessa moda um estímulo qualquer, ou se julgar ver nela algum elemento que falte à arte contemporânea e que seja capaz de tornar a unir essa arte a seu sustentáculo, a vida.

(…) Quanto à poesia do século XX, e à poesia que espero ver escrita no decorrer da próxima década (…), creio que ela será o oposto da conversa fiada, que será mais rija e mais sadia, mais próxima do essencial (…). Será tão granítica quanto possível; sua força estará na sua verdade, em seu poder de interpretação (evidentemente, é sempre aí que reside a força poética); quero dizer que ela não tentará parecer vigorosa por via do fragor retórico e da stravagancia faustosa. Teremos um número menor de adjetivos artificiosos a comprometer-lhe o impacto e o efeito. Quanto a mim, pelo menos, é assim que a quero: austera, direta, livre de deslizes emocionais.

O que se poderia acrescentar agora, em 1917?

(…) Eliot disse-o muito bem quando escreveu que ‘Nenhum verso é livre para quem queira fazer um bom trabalho.’

(…) Eu teria preferido que as pessoas vissem a escultura de Brzeska e os desenhos de Lewis, e que lessem Joyce, Jules Romains, Eliot, e não o que eu disse a respeito desses homens, e não que me pedissem para tornar a publicar ensaios e resenhas polêmicos.

O máximo que o crítico pode fazer pelo leitor, ouvinte ou espectador, é levá-lo a focalizar o olhar ou o ouvido. Certo ou errado, creio que meus ensaios e invectivas cumpriram sua função e que um número maior de pessoas tem agora mais probabilidade de ir às fontes do que ler este livro.

(…) A prática particular da composição literária tem sido permitida desde ‘tempos imemoriais’, como o tricô, o crochê, etc. Serve para entreter o praticante, e enquanto este a guardar para si, ‘elle ne nuit pas aux autres’, não transgride a definição de liberdade.”

(POUND, Ezra. “Retrospectiva”. In: “A arte da poesia: ensaios escolhidos de Ezra Pound”. São Paulo: Cultrix, 1988, pp. 16-22, 32).

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Linguística pela USP. Escreveu em coautoria o material paradidático Arte e Cultura nos Anos 60 (Editora Anglo). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua PortuguesaDiscutindo LiteraturaArte & InformaçãoLivro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010, lançou o livro Toque de Letra (editora nhambiquara).  Tem parcerias com Tatá Aeroplano, Gustavo Galo e Cabelo (Trupe Chá de Boldo), Pélico, Juliano Gauche, Carlos Zimbher, Reynaldo Bessa e Wella Borges Costa. E-mail: carvalho70@gmail.com




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