Olhos de algodão
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Tudo era suavemente lúgubre, meio tosco, com um odor acre que despontava a distância. Mal comparando, tinha a aparência de uma grande sala de estar disforme, que nos repelia não apenas pelas cadeiras porcamente dispostas e parcialmente vazias, quase sem esperança de serem ocupadas, mas também pela música chinfrim e uma caçoada provocada por dois miúdos homens que mais pareciam saídos de algum regime fechado, tamanho o impropério libidinoso que um deles – o de calça de veludo e regata – desferia contra uma morena bunduda que lutava para equilibrar as bebidas, a fazer imaginar que não tinham contato com mulheres havia anos. Quase tenho pena dela, pois rapidamente fui forçado a esgueirar-me em direção a um silêncio e a um sorriso de canto d’e boca trazidos por olhos macios que fitavam o chão encardido. Por alguma razão, a minha aflição por estar naquele refúgio enfumaçado esvaiu-se em devaneio e solidão. De perto, muito perto, reparei-a mexer repetidas vezes no cabelo bem tratado, em movimentos inconscientes, mas cadenciados, despindo sua nuca cravejada por dois pontinhos marrons simétricos em paralelo. Enquanto ela dançava a própria mão pelo pescoço alvo, beijá-la passou a ser minha ânsia, a febre que na minha idade eu já não mais queria sentir. Parecia que no abismo de minha alma revel havia despertado em regozijo, desentravado uma ausência de culpa que me atordoava nos últimos anos, enfraquecendo-me tanto e mais outro tanto. Sou de quando a delicadeza era um manancial entre nós; agora, tudo parece tão rude, que olhos como os dela não se louva com facilidade, e eram de uma beleza inquietadora e embriagante. Não se via a luz do dia, mas o pouco que restava de luminosidade advinha daquele olhar fosforescente, que agora me fitava. Achei que ela quisesse dizer algo, tecer com cuidado suas dores intocáveis para alguém feito eu, que talvez não fosse suficientemente capaz de entender de que modo as sublimava para permanecer vivendo dentro de sua angústia, naquele lugar fétido, a cunhar outra dela a cada novo dia. Por que não a compreenderia, logo eu que sou parente próximo da tristeza? Ficamos tesos sem desviar um do outro, esperando que aquele acaso tomasse conta do destino, num misto de desejo e pavor. Ela umedeceu os lábios antes de pôr um cigarro na boca e acender. Assisti à aproximação de um homem ligeiramente gordo, com vestes refinadas e gestos galanteadores, utilizando-se quiçá de outra língua – um projeto de bon-vivant –, mas a mulher de olhos de algodão não se fez de rogada e desconstruiu a peça. Não estava disponível, foi a única coisa que consegui distinguir em meio àquele som terrível. O dito cujo foi injungido a afastar-se, mas não sem antes conferir-lhe a autenticidade da posse: descortinou do bolso um maço considerável de dinheiro feito um ser rastaquera. Não parecia ser isto que ela de fato desejava, mas, por alguma razão, a qual sequer ela conseguiria aceitar, era o meu olhar triste que a higienizava por dentro. Não houve a lide que imaginei travar com o homem, mas aquilo não diminuiu o meu torpor. Senti-me constrangido pela forma como me olhava insistentemente; recobrei-me rapidamente, pois sabia que tocava a minha alma, que já não era tão límpida quanto o céu de agosto. A bem da verdade, queria beijá-la por inteiro, tocar os seus pedaços íntimos, brincar com os sinais escondidos em seu pescoço e sentir seus dedos tortos, pequenos e grossos, mas não disse nada disto. Penso que não deixaria de permanecer mudo, havia dor na minha voz. O que eu estava fazendo, senão perceber que suas feridas também eram profundas, cheias de hiatos oblíquos, e que me portava como quem de fato não fosse capaz de entendê-las? Não se tratava de um rascunho das nossas dores, mas era no olhar que encontrávamos força e inspiração para perseverar num ciclo simbiótico que ela ou eu criou. O fato é que eu estava escalavrado pela mazela adormecida naqueles olhos desidratados, mas tudo dela era da vida, seu compromisso era com o imprevisível, e eu sou fugaz feito um sorriso de canto de boca, vivo para enganar a vida. Deixe-me com você e jamais abandone seus olhos de mim, pensei em me aproximar e dizer, mas estava atolado, tudo fazia parte de um plano irônico: sinceramente, ela, toda ela, apesar da minha súplica, jamais seria minha. E naquele lugar florescia uma estranheza fecunda e talvez ela quisesse um abraço tanto quanto eu, sentir-se igualmente segura, tirar a roupa e o sorriso torto, deixar saudade no olhar de besta-fera que desarvora certezas, abrir a porta da cavidade escura e solitária que nos achávamos agora. Os dois pequenos homens já tinham ido embora, o do dinheiro resolvera jogar algum para o alto, a morena bunduda não servia para garçonete e a mulher dos olhos de algodão, que antes me penetravam, sabia que um dia outro alguém olharia para ela como eu – somos em abundância –, mas ela tinha uma vida pela frente; levantou-se com certa malícia, sem açodamento, acendeu outro cigarro e caminhou decidida na direção de onde veio. Olhando para o piso absurdamente encardido, desolado, concentrei-me em admirar como a voz do José Augusto havia mudado desde que gravara “Cheiro de hortelã”, que agora tocava naquele cabaré.
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Mendes Júnior, nascido em Sobral/CE, é contista e autor do livro O engraxate e outros suicidas. Participou de algumas coletâneas e tem textos publicados em periódicos especializados. Atualmente, prepara seu segundo livro de contos. http://literaturaecultura-mendesjunior.blogspot.com/ E-mail: mendesjus@yahoo.com.br
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