Janaína


(fragmento de romance inédito)

 

Tudo é mar.

Ondas e areia, conchas e areia, algas e areia no ir e vir das águas do mar. Galhos secos flutuam nas ondas, folhas, flores, misturados ao sol e à areia. Sol, raios de sol iluminam os pés que entram nas verdes águas de Iemanjá. Corpos cobertos de areia namoram nos arrecifes, crianças correm na praia, jogam bola, empinam pipas coloridas. Idosos comem mariscos, bebem cerveja, sentados em cadeiras brancas, e observam mulheres de seios quase nus saindo das águas com os cabelos molhados. Tudo é mar, as espirais revolutas do mar, brilhos que se transformam em confusão de formas e cores no reino de Iemanjá, mãe cujos filhos são peixes. Odoyá, senhora do vestido azul, nascida na espuma das ondas, sob a luz do luar. Odocyaba! O ar é úmido, salgado, até o reluzir do sol é líquido, como ouro marinho feito luz. Filhas de santo vestidas com saias brancas rodadas e longos colares de contas cantam cantigas, dançam suas danças, trazem presentes, louvam a mãe do mar, enquanto jovens negros e brancos tocam tambores tocam tambores, tocam tambores. Arabô aiô Iemonjá / Arabô aiô Iemonjá / Iemonjá Ogun /  Ogun pá jare a oyô /  Padê lô jé /  Iemonjá Ogun a oyô. Odoyá, rainha do mar, que muda tudo em todas as coisas, dona de nossas cabeças. Faz alegria virar tristeza, e tristeza virar alegria; faz raiva virar amor, e amor virar raiva; ela, que muda tudo em tudo, a filha de Olodumare. Rainha do mar, permita que eu entre em seu reino.

Odoyá, Iemanjá!

 

***

 

Eu fui até o casebre do maroto, filho roto do capiroto, para conversar com meu irmão-irmãozinho, que estava nos fundos da choça, tocando a roça de milho e fubá; ele me recebeu com acenos de mano-oh-mano, ofereceu café, cachaça, cigarro de palha, e recusei, três vezes recusei, nem quis entrar no antro do ogro; conversamos na soleira do lá fora e eu disse ao mano-das-matas palavras duras, palavras-pedras, palavras-de-ferro; que ele saísse dos braços do bruxo e voltasse para casa, mainha esperava por seu retorno; disse a ele, o feiticeiro enfeitiçado, que estava encantado por um sortilégio, arte do endiabrado, o caboclo-das-folhas, o escroto, filho de um rato de esgoto; disse e redisse ao irmão fujão que ele deixasse o Cujo, o Cicatriz, o Rapaz, mas ele respondeu ríspido, rascante, que não voltaria para as bandas do lá atrás, estava feliz com seu amor-amado, amigo-marido; se aquele amor fosse feitiço, que durasse eternamente, no para-além-do-jamais-e-do-nunca. Tanto insisti que Tião, Tiãozinho, o feiticeiro enfeitiçado, aceitou fazer uma visita a nossa mãe. Caminhamos de volta pelas veredas de mato, barro, galhos e pedras, sob uma chuva de borboletas amarelas, vermelhas e azuis, até chegarmos ao sítio Alaketu, que tinha esse nome em louvor a Oxóssi. Mainha estava na cozinha, ajudada por  Maria do Rosário, a preta perneta, cortando cebolas na pia de mármore, para fazer o caruru; depois, era só misturar com o leite de coco, castanhas de caju, amendoins e caldo de camarão, pratos dela eram muito apreciados no lugarejo. Quando chegamos em frente à casa azul-turquesa, chamei-a uma vez, duas vezes, três vezes, até ela se aproximar da porta. Janaína era mãe amorosa, mulher-toda-mar, mas também rancorosa, mulher-toda-fúria, e recebeu o filho fujão com ares de desprezo; olhou para ele com olhos-faíscas, olhos de mãe-feiticeira, yami-oxorangá; e disse ao mano-das-matas, o gigante negro-verdoso: você vá embora, você nunca volte, você não tem mãe, suma, desapareça! E Tião, Tiãozinho, o feiticeiro enfeitiçado, voltou ao seu namorado, nos fundos da mata escura, andando devagar, as mãos pensas, fumando cigarro de palha.

Cena triste, de fazer chorar porco-espinho; de fazer sucuri voltar para o ninho; de fazer boitatá engolir o próprio lume, lacrimoso. São essas coisas do afeto, quem não entende, não adianta explicar, mais fácil é ensinar coruja a rezar ave-maria em latim no terço bizantino. Eu fiquei com mainha por mais alguns dias, naquele mês de outubro, novembro ou dezembro, não me lembro; ajudei-a com os trabalhos do sítio, consertei ferramentas, labutei nos roçados, alimentei os bichos de criação e tentei acalmá-la, fazê-la entender as sem-razões do amor amalucado, mas ela não me ouvia, cega e surda, apenas costurava, cozinhava e nada dizia, nada tinha para contar, por isso cantava, só cantava, como se estivesse encantada; cantava os seus cantos marinhos, cantos salgados de tristeza, como se estivesse meio viva, meio morta; como se não estivesse realmente lá, mas perdida em algum lugar entre esse mundo e o desmundo. Nada animava mainha, nada a distraía, nem a tirava da profunda dor; isso mudará com o tempo, revelou para mim a Tia Maria Menina, que nunca mente, depois de jogar o baralho cigano. Ela me mostrou uma carta, o arcano XIII, que é um esqueleto segurando uma foice, para carpir o que será jogado fora. Essa carta, ela disse, é o tempo, que como o mar, nunca fica parado, sempre se agita em viração. Tudo está em movimento, nem o poste fica sempre imóvel: quando é de madrugada e todos estão dormindo, ele sai para visitar os parentes. A montanha, por acaso, fica quieta? Quando ninguém vê ela se solta da terra e vai dar um rolê, vai visitar o rio, o lago e o riacho, isso foi o que disse a Tia Maria Menina, que nunca mente. Nesse tempo em que fiquei no sítio Alaketu, ajudando nas lides da casa, eu me  lembrei de quando éramos meninos, eu e os manos, na casa azul-turquesa, em nossas vadiagens de travessos. Jão-Jão era o mais maroto do bando desordeiro; pitava cigarro escondido, bebia cachaça, ficava de olho nas criadas da casa e, sempre que podia, levantava as saias delas, que riam ou não riam, choravam ou não choravam, chamavam o guri de abusado, atrevido, pervertido. Jão-Jão, moleque glutão, o  rolha de poço, comia tudo que via pela frente, carnes e legumes, frutas e verduras, doces e bolos, massas e pães, e  nunca ficava satisfeito, como um buraco infinito, sempre queria comer mais. Ele sabia putarias e ensinava o papagaio a dizer coisas feias, para irritar mainha. Sua maior alegria era semear a discórdia, só para assistir às pelejas dos outros, enquanto ele ria suas risadas, o diablim de cabelo pontudo. Um dia, o caralhudo foi embora-no-já-me-vou, tentar a vida no mundéu; ficou rico, pobre, rico e pobre novamente, até sumir de vez; ele está em algum lugar do mundaréu-mundão, sempre arrumando confusão.

Ele, João Mojubá. Ele, o baderneiro.

Do moleque-trovoada, nunca gostei; saíamos às turras e aos socos, fazíamos cara feia um para o outro, rolávamos na grama, em fuzuê de algazarra, até mainha nos separar e colocar os dois de castigo, moleques meliantes, assim ela nos chamava, aos berros. Jerônimo era o contrário de mim; ele, o folgazão, o encrenqueiro. Sempre corria atrás do mulherio, das pretinhas que viviam perto do sítio; e não se importava em roubar mulher do amigo ou do irmão. É um cachaceiro, esse meu mano, que saía atrás de saias em toda parte, até encontrar Bárbara, menina-ventania-tempestade, minha mina, que ele levou na lábia, no assim da conversa fiada; tivemos briga de feia, luta de faca, fomos presos, nós dois, por desordem, vadiagem e desacato às autoridades; soltos, nunca mais nos vimos, à exceção do casamento de Jerônimo, mas foi como se não o visse, pois meu olhar estava em outro canto, minha mente desalucinava. E sou sincero, não desejo encontrar novamente esse safado. Soube que estudou Direito na faculdade, virou doutor, de anel de ouro no dedo, e casou-se com Bárbara; que o diabo leve o doido e a doida.

Dos meus manos, eu gostava mesmo era do Zico-Lazinho, Zeca-Ziquinho, meu irmão de criação, adotado por mainha, que o encontrou, ainda bebê, abandonado na areia da praia; sua mãe verdadeira não suportou ver as marcas de varíola em sua pele, desesperou-se e preferiu largar a cria onde alguém o achasse, alguém o amasse, ou então, que o mar levasse o anjinho. Quando viu a criança chorando, desconsolada, mainha não teve dúvidas, levou-o para casa, deu banho, amamentou, cuidou dele, como se fosse de seu sangue, sua carne. Curou as feridas do menino e criou-o junto com os seus: Tião, João, Jeromão e eu mesmo, Jorjão, a seu dispor, o mais irado da matilha, o mano furioso. Vida no sítio Alaketu foi feliz; e nós crescemos, cada um seguiu sua jornada e mainha foi ficando cada vez mais solitária. Lazinho foi estudar Medicina em Havana;  ficou vários anos por lá, en la isla del Che, la isla de mar esmeralda, namorou una cubanita de la regla del oro, que o levou para a santería, depois voltou para cá, abriu clínica em Salvador, na rua da Cabeça, onde se vende de tudo, até o que você não deseja comprar, e virou o doutor-das-palhas, o médico dos pobres, sempre vestido de branco, usando chapéu de palha, fumando cigarro de palha. Tiãozinho, nem preciso dizer mais nada; estudou Agronomia na faculdade e continuou no sítio, até conhecer o mulato matuto, que jogou feitiço em seus olhos. Eu, que nada estudei, montei serralheria. Nunca fui dado a leituras, estudos; gosto do trabalho com as mãos, os metais, do som seco do martelo, do cheiro da graxa, da borracha, e tive sucesso em meu ofício. Ganhei dinheiro, sim; não enriqueci, mas faço o que gosto e nada devo a ninguém. Isto talvez seja tudo o que tenho a dizer de mim, eu não sou de dar surra em cego nem palavras ao vento.

 

 

 

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Claudio Daniel é poeta, ensaísta, tradutor e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese “A recepção da poesia japonesa em Portugal”. Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais. Curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo entre 2010 e 2014. Colaborou na revista CULT. Editor da Zunái, Revista de Poesia e Debates. Publicou os livros de poesia Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001), Figuras metálicas (2005), Fera bifronte (2009), Letra negra (2010), Cores para cegos (2012), Esqueletos do nunca (2015), Livro de orikis (2015), Portão 7 (2019), Cadernos bestiais (2019) e o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo (2004), entre outros títulos. Como tradutor, publicou a antologia Jardim de camaleões, a poesia neobarroca na América Latina (2004) e antologias do poeta cubano José Kozer, do argentino Reynaldo Jiménez, do uruguaio Victor Sosa e do dominicano León Félix Batista, além da antologia Ovi-Sungo, Treze poetas de Angola. Em Portugal, publicou a antologia poética pessoal Escrito em Osso. E-mail: claudio.dan@gmail.com




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