Três


 

[ 1 ]

 

A deus gritava, porque gritava pelas noites na cidade : eu quero dormir, eu quero dormir, eu quero dormir, eu quero dormir, eu quero dormir. Já o povo do lugar, em meio a que despertava, a seus gritos respondia : não enche o saco dorme, não enche o saco dorme, não enche o saco dorme, não enche o saco dorme, não enche o saco dorme e ele mais prosseguia, gritando : eu quero dormir, eu quero dormir, eu quero dormir, eu quero dormir, eu quero dormir com os outros vociferando : não enche o saco dorme, não enche o saco dorme, não enche o saco dorme, não enche o saco dorme, não enche o saco dorme. Ele, permanecendo, em seu acordar pasmado; no sempre quero dormir, esse tempo não queria. Mais assim, então, também, havia, no lugarejo, velhota de outra idade, de era já bem perdida, para ele observando : os seus gritos tricotando, sem noites, em suas horas : sendo assim e sempre indo, muitas feiras vãs passaram, com paixões se atravessando sem tempo de aleluia. Eis que em tão, atemporona, a velha se decidiu a ele se dirigiu, pedindo não dorme, não. Quando, então, ela encostou, no corpo dele, sua mão; desse modo lhe falou : dê as costas para o mundo desses céus sem coração. E ele no seu gritar, gritando quero dormir, foi fazendo o que devia, olvindo não enche o saco : para o mundo deu as costas, a esses tempos modernos, quando se vive sem ânus. Isto, ele recusando, se alterando, transformado, para em seu sono cair e desse sono acordar: sempre na hora certa, ainda que a cidade prosseguisse com seus gritos, o mesmo não enche o saco, o mesmo dorme mais dorme : ele, no seu trajeto, vivendo por fim tranquilo, atravessando estações de chegar e de partir, de despertar e :

 

 

[ 2 ]

 

Beletrando, se masturbava cotidianamente  Vertendo sémens por bueiros da cidade, nos banheiros, assim se engravidando de si, como quem prega cartazes nas ruas gritando: “Maçãs para o povo!”. Deixando com ventos, andarilhanças idas, seguindo estradas : sem tentar olhar para trás, procurando cortar as carótidas de seu passado, embora, sentindo nisso tarefa vã : ia mais, desse modo para se desviar dos roteiros das avenidas costumeiras, saindo consigo por ruelas, só percebendo, nos subterrâneos, as sementes do sementário que em si plantava, ficando com seus melhores passos, mesmo se sentindo em banheiros do tempo : em tanto, mesmo percorrendo unhas por seus calos, amolecendo as dores de seus mergulhos, mirando vidros em torno de todos : aí se contrariava, na querença de que limpassem ao menos o musgo das vidraças (por impossibilidades, pedindo a seus olhos que enxergassem claro o que viam) para seu sossego: desse modo se cuidava, rumando até onde não sabia, com sua plantação de si, no que assim sendo, ainda que um tanto enjoado do que  da cidade era rodeado, bem percebia, porque era do tempo: nisto para ele não havendo novidade, permanecendo com tudo em sua agricultura (muitas vezes então tentando mesmo arar terrenos até em pedras) por buscas de novas bíblias bussulares que lhe permitissem melhor trilhar outras andarilhanças, salmos além das velhas bíblias, vertendo destas apenas o sermão da montanha (disso lhe restando o que nele lia, vendo, na transparência das palavras, “Merda Merda Merda” – lendo assim, do que tirava ciência): na composição de seu corpo vivendo humanidades retalhadas sem a fecundação de novos nascimentos e, se a princípio, por isso matutava com interrogações, querendo só viver em paz nas ruelas com bueiros e banheiros nas avenidas costumeiras, percebendo esgotos, evacuava sem guardar amarguras, diariamente, com seus desejos dosados, assim simiscuindo até em tão presentes plantações de paraísos não vividos nele, brotando mesmo de suas aragens apenas o arcaico : no que encontrava os mais moventes motivos de si por quebrar os anúncios de neon dele desalojados com nascentes cascatas de recusas : assim ele, em suas travessias, se não vomitando, se não gargalhando, pela vida se querendo sem espelhos, continuava semeando porque, um dia, ir, ia :

 

 

[ 3 ]

 

Cortava correntes como quem tece: cordas de andanças, buscando o passo mais próprio no sentido do fogo de si : dizendo porque dizendo : eu vou conseguir, eu vou conseguir os nós indesatáveis (do amor), mesmo tropeçando nas evidências, auscultando silêncios, indo e assim indo, pelo que dormia, no acordar das contingências. Com a força de suas dores, passando por vielas, percorria colégios, neles vivendo o carcomido tragicômico dos mortos sem covas : assim gravando o que não queria das encomendas do cotidiano; salientando almoços satisfeitos por si, docisava consigo, alojado nas suas tulhas temporárias reservadas para o que pudesse acontecer, sempre se embrenhando em selvas de outras trilhas mais aromadas : no perceptivo dos cantos de toda cidade, tentando de si o seu mandato : à procura do brilho de suas numerações (pulsando como madeira demarcada por nós em traços profundos), erigindo em seu corpo as danças de cada instante; nas remoendas dos retornados das intempéries, trovejando com silvos para melhor expressar suas pegadas, perseguia tonéis de vinhos mais tenros, tragando de si a subordinação tão sóbria do desendeusar-se: coibindo suas façanhas com o esquecimento em sua vida viva, no que era, porque hera nele : assim se cultivava, conforme sempre fora, arredondando prazeres culminados nos diagramas de seus passos, pelo equilíbrio das diferenças perpassadas : até o dia em que (sentido mesmo nos universos de si) formou por fim certos sintomas contínuos de seus sorrisos, acalentando as horas com transparências, do que se removeu, para então melhor chegar ao instante de… (ir embora):

 

 

 

 

 

.

.

José Arrabal é professor, jornalista, escritor, autor de contos, romances e ensaios. Entre suas 50 obras publicadas sobressaem “O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira: Teatro” (Editora Brasiliense), “O Livro das Origens”, “Lendas Brasileiras – Vol 1/Vol. 2”, “Da Vinci das Crianças” e “A Chave e Além da Chave” (Editora Paulinas), “Stalin – Biografia” (Editora Moderna) “Histórias do Japão” e “O Lobisomem da Paulista” (Editora Peirópolis), “Contos Brasileiros (Editora Expressão Popular), “A Sociedade de Todos os Povos” (Editora Manole), “Anos 70 – Ainda Sob a Tempestade” (Aeroplano Editora) e “Nouvelles Brésil” (Antologia de contos/com outros autores) –CollectionArchipel–ÉditionsRefletsd’Ailleurs–France.  Blog: http://josearrabal.blogspot.com.br/ E-mail: josearrabal@uol.com.br




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook