poesia na era do poste da ku klux


 

conceição

o sistema literário (feiras, festivais e editoras) retranqueiro e branquelo, não tolera mais do que um escritor negro por vez para simular seu compromisso com a ampliação da diversidade. ao entronizar um espécime apenas do conjunto (silenciando muitos outros), não desfaz seu caráter excludente e endogâmico: ao branco o que é do branco. trata-se de uma “representatividade” a contragosto, mais para angariar crédito. a máxima segundo a qual é melhor um do que nenhum é o fim da picada.

 

estudos literários

o esforço de interpretação de muitos pesquisadores diante de um poema é semelhante ao do criado de servir que passa desde os antros de sua área de trabalho para o mundo aqui fora as iguarias de uma linguagem estranha ao seu próprio apetite.

 

os sentidos

dizer que o feminismo é o machismo com sinal trocado é o mesmo que dizer que a luta dos negros contra o racismo é racismo reverso. argumentando segundo a lógica da peppa pig.

 

refém do negócio

vem chegando a época da feira do livro (de porto alegre) e as gentes começam a perguntar: “tem algum livro novo pra lançar?” respondo que não. exceto para o ponto de vista do mercado livreiro editorial, livros não são escritos apenas para feiras e festas literárias. além do mais nem sou prosador.

 

mercado inflacionário

10 mil santos tem a igreja católica. é muito santo. no entanto, esse número é menor se comparado, por exemplo, ao de poetas geniais em atividade na poesia brasileira. o brasil é um milagre.

 

irmã dulce

a necropolítica e a caridade andam de braços dados.

 

a nobreza do nobel

o ganhador de um nobel, por exemplo, de literatura, que é um rematado malparido, não deixa de sê-lo logo após receber a honraria. octavio paz, à época de sua consagração, havia se transformado num neoliberal defensor do imperialismo dos eua. e ainda há os dreads de um dos recentes ganhadores, mas eu não direi nada além disso.

 

nossa cordialidade

no brasil casos de racismo entram no quadro de situações que apenas “geram polêmica”.

 

os erros da maju

algum autor afrofuturista disposto a escrever uma narrativa de caráter distópico, onde pessoas estariam sempre sob suspeição pelo mero fato de serem brancas? quem vai encarar?

 

lugar de fala

aos defensores e detratores do conceito: debater a eventual insuficiência de um discurso não é o mesmo que censurá-lo. falar por não é o mesmo que falar sobre ou falar de. porém existe um hábito incivilizado que determina “quem pode falar sobre quem”.

 

marra

a afirmação de um estilo como garantia de que o sujeito desse estilo não será acusado de falsidade ideológica. o estilo mata quando vira um qualificativo. quando se diz, p. ex., “dantesco”, a imagem sempre tem relação com o inferno da commedia, jamais com o paradiso. uns e outros são chatos porque são fiéis a um estilo ou reféns de um estilo. escapar ao estilo antes que isso se converta em cacoete.

 

inclua-me fora dessa

o clichê “representatividade importa” não pode ser reivindicado nem se aplica ao fato de não haver negros na equipe de governo do poste da ku klux. para todos os efeitos isso é uma boa notícia.

não haver negros no governo, e ainda mais nesse, não é de espantar. no mais é a rotina que segue. seria contraditório e um insulto se o poste da ku klux convidasse um negro para a sua equipe de governo, basta rememorar suas palavras sobre os quilombolas.

 

negação

o problema que detecto na costumeira opinião-clichê “ah, acho que isso não tem nada a ver com racismo” diante de evidentes casos de racismo, é que ela, de ordinário, sai com naturalidade da boca de gente branca.

o sujeito é branco e por isso mesmo já está com a vida praticamente encaminhada (ele nem percebe as vantagens embutidas no pacote). só que o cara ainda quer mais, ele, por exemplo, quer ser coach sobre racismo para abrir nossas mentes. lacrador.

a branquitude (de esquerda, inclusive) é particularmente atenciosa e receptiva com aqueles negros conscientes e empreendedores que enfrentam o racismo, sim, porém com leveza e serenidade.

 

boa relação com a imprensa

goiás. bolsonaro desce do carro presidencial e se posta junto ao microfone. jornalistas e bolsonaretes o aguardam. começa a entrevista. bolsonaro não gosta da primeira pergunta (sobre o transporte de familiares em helicóptero da força aérea), diz que é uma pergunta idiota. os bolsonaretes aplaudem e apupam o seu mito. outro jornalista questiona a reação do presidente. ele encerra a coletiva e sai jogando as tranças.

eis o problema: o aplauso, a concordância com a grosseria. em razão disso o poste da ku klux se sente autorizado a ser violento e refratário diante dos conflitos naturais em um regime a princípio democrático.

 

feira de livro em território inimigo

o problema não era não poder garantir a segurança da miriam leitão na feira do livro de jaraguá do sul (óbvio que isso é terrível). o problema foi o fato desse ódio intimidador de uma parte da sociedade ter conseguido se sobrepor ao direito de pensar e à liberdade de ir e vir (garantias universais e democráticas); o problema é essa obtusidade fascista ter vencido sem grande esforço. o brasil acabou.

 

na esportiva

tudo vai bem quando o time dos seus grandes amigos está numa situação pior do que a do seu. porque quando a situação não é bem essa, é muito chato controlar a vontade de vê-los balançando numa árvore à beira do rio, afinal de contas, são seus camaradas. acontece que aquele sorriso no rosto deles, enquanto oscilam ao sabor do vento, compensa todo constrangimento. amigos para sempre.

 

o leitor crédulo

o leitor consegue suportar um livro ruim em prosa, vai até o fim; listas dos mais vendidos comprovam isso. mas um livro de poesia, nem digo ruim, mediano, é intolerável. muito leitor não percebe no momento. o rebote vem com o tempo. alguém já afirmou com otimismo que “um livro de poesia na gaveta não adianta nada”. se é ruim, não há lugar melhor para ficar. pior do que poesia ruim é poeta chato que fica falando da sua mais recente obra, assim, bem perto da cara da gente. meu…

 

disco arranhado

quando a pessoa faz literatura negra? sempre? apenas quando se predica (se reconhece) negro? quando lança mão de elementos da cultura afro? quando faz ativismo (ou escreve) contra o racismo? e quando esses quesitos são atendidos de forma intermitente? quem é o poeta palestrinha daqueles que não têm voz? me aborrecem coisas do tipo: o poeta do povo negro, o dante negro. um dia resgatarei o poeta do povo branco, o solano trindade branco. castro alves era chamado “o poeta dos escravos”.  quem seria então o poeta dos senhores?

quando me deparo com coisas como, por exemplo, rappers conservadores ou de direita, confirmo que essa noção de que a poesia salva ou liberta é pura mistificação. vejo selfies de poetas jovens (e dos que ainda tentam aparentar juventude) e penso: na idade deles eu também era assim marrento?

 

a culpa é do patrão e ele põe em quem ele quiser

a predação capitalista e o mercado sempre estressadinho inventaram a disciplina “educação financeira”. agora sabemos que nosso endividamento, nossa pobreza e nossa fome são porque nunca demos bola para as regras de como lidar com o dinheiro. abençoadxs, vamos estudar direitinho que tudo melhora.

 

uma coisa, outra coisa

ainda tem gente que acha que lula e o poste da ku klux são a mesma coisa, que só estariam provisoriamente, por exemplo, em lados opostos de um campo de jogo. no próximo tempo apenas trocariam de lado, para nossa desgraça. os que pensam assim são os mais perigosos. os isentões. e não vão para lugar nenhum. não chovem nem saem de cima.

você não precisa beber o conteúdo inteiro de um barril para saber se está cheio de vinho ou vinagre. para os isentões tudo é vinagre. exceto o hidromel que um dia lhes será facultado por zeus tronitroante.

 

 

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Obs.: Onde encontrar/comprar o livro da editora cartonera Butecanis Editora Cabocla: Instagram @butecanis; Editor Daniel Santos, Camboriú/SC.

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Ronald Augusto é poeta, letrista e crítico de poesia. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Letras na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), À Ipásia que o espera (2016) e A contragosto do solo (2020). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com




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