Tecnologia siriana


Um item fantástico da tecnologia siriana

Quase sempre na sexta-feira à tarde, o escritor Willard Kirk, editor da prestigiosa revista de FC & Fantasia Kirkosmos, costuma fazer suas compras no supermercado Xtra, em Newark, Nova Jersey. Sua revista digital já conta mais de quinze anos de existência, e vem colecionando prêmios importantes, voltados para a literatura fantástica. Assim, se não chega a ser uma supercelebridade, Will Kirk é certamente um nome significativo no universo da FC.
Agora mesmo, ele suspeita que está sendo seguido, sorrateiramente, há vários minutos, por outro cliente do estabelecimento. Deve ser um fã querendo um autógrafo na capa de alguma revistinha de FC.
Kirk se detém numa esquina do corredor de gôndolas e procura avistar a pessoa num grande espelho redondo, estrategicamente postado numa coluna do prédio. Lá está um camarada grandalhão, vestindo um macacão desbotado de mecânico ou eletricista.
Quando o homem se aproxima, o editor arma um meio sorriso receptivo. A expressão do outro não é nem um pouco amigável, o cara tem um crânio esquisitamente quadrado, como Boris Karloff caracterizado como a criatura de Frankenstein. Weird. Agora, o homem usa seu próprio carrinho de compras vazio para barrar a passagem de Kirk. Mira fixamente o editor, como um entomologista que examinasse um espécime de inseto não classificado.
— Deseja alguma coisa, amigo? — Kirk interpela o importuno, observando que o macacão parece um tanto encardido.
— Só olhando.
— Já não olhou o bastante?
— Queria ver que cara tem um editor de revista de FC e Fantasia.
— Uma cara comum. Um cara normal.
— Pelo menos, até o ponto em que um editor de revista de FC e Fantasia pode ser normal.
— Qual é o seu problema, amigo? – Kirk reage à atitude hostil do estranho.
— O problema é que enviei um conto para a sua revista, que foi rejeitado com uma desculpinha indigente: “não é bem o tipo de material que estamos procurando”. Me pergunto se você leu de fato o conto, e se prestou atenção a detalhes da maior importância.
— Ah, então é isso. Lamento, amigo. Eu não leio tudo o que recebemos, só alguns textos que meus assistentes me indicam.
— Achei mesmo.
— Você leu as diretrizes de nossa publicação? Descartamos de saída o material clicheresco, derivado de filmes dos anos 50: invasão de aliens, monstro do espaço etc. E diluições ou pastichos de autores clássicos do gênero. Grande parte do que recebemos é puro “Plano 9 do Espaço Exterior”.
O outro não dá sinal de ter reconhecido a menção a Ed Wood, o famigerado pior diretor de cinema de Hollywood. Kirk acha melhor ser diplomático:
— Do que tratava o seu conto?
— De um humano que foi capturado por alienígenas sirianos e conseguiu escapar da nave deles, trazendo consigo um item muito valioso, verdadeiramente emblemático da civilização siriana. A nave é descrita com precisão. O engenheiro Bob Lasar reconheceria os motores de energia gravitacional.
— Ah — Kirk respira fundo e redobra sua cautela. — Bem, esses caras que alegam terem sido abduzidos, e escapado, costumam abrir canais no Youtube e vender lembrancinhas pelo correio. O seu conto, por acaso, descreve uma, hã, experiência pessoal?
— Pode ter certeza que escrevi sobre algo que conheço bem.
— Hum —Kirk já se prepara para dar marcha à ré com seu carrinho de compras e disparar em direção aos caixas. — Bem, não fique muito aborrecido, camarada. Nem Asimov, Bradbury ou Philip K. Dick acertavam no alvo sempre. Leia com atenção as diretrizes da nossa revista e continue mandando seus escritos pra gente, tudo bem?
— Farei isso, Will. Agora, com sua licença, eu gostaria de mostrar a você um item extraordinário da tecnologia siriana.
O homem mete a mão no bolso do macacão e saca um objeto cônico, translúcido, com um brilho leitoso. Aponta para o carrinho de compras de Kirk. Um raio alaranjado banha as embalagens multicores com um intenso clarão dourado. E, voilá!, não há mais nem traço dos pacotes, latas, legumes, bistecas e hambúrgueres para o churrasco do sábado à tarde. Nem mesmo sucata do carrinho. Volatilizados.
Estupefato, Kirk olha para o teto, se perguntando se as câmeras de vídeo terão registrado aquele fenômeno. Encara com assombro o homem do macacão surrado, que já embolsou a dita arma siriana.
— Você vai ter notícias nossas muito em breve — diz o criador de caso, virando rapidamente a esquina e sumindo de vista.
…..Fitando sua imagem no grande espelho fixado numa coluna, o catatônico editor da revista Kirkosmos está absolutamente convencido de que deveria ler o relato daquele contista sem nome.

 

 

***

 

 

A fantastic piece of Sirian technology

 

     Almost always on a Friday afternoon, the author Willard Kirk, editor of the prestigious SF & Fantasy magazine Kirkosmos, usually does his shopping at the Xtra grocery store, in Newark, New Jersey. His digital magazine already has over fifteen years of existence, and has been collecting important awards, focused on fantastic literature. So, if not a super-celebrity, Will Kirk is certainly a significant name in the sf universe.
Right now, he suspects he’s being followed, surreptitiously, for the last several minutes by another customer of the store. It must be a fan wanting an autograph on the cover of some sf magazine.
Kirk stops at the end of the aisle and tries to catch sight of the person in a large round mirror, strategically placed on a column in the building. There’s a big fellow there, wearing faded mechanic’s or electrician’s overalls. As the man approaches, the editor flashes a welcoming half-smile. The other’s expression is not at all friendly, and the guy has an oddly square skull, like Boris Karloff’s character as Frankenstein’s creature. Weird. Now, the man uses his own empty shopping cart to block Kirk’s way. He stares at the editor like an entomologist examining an unclassified insect specimen.
“Do you want something, my friend?”, Kirk snaps at the heckler, noting that the overalls look a little grimy.
“Just looking.”
“Haven’t you looked enough already?”
“I wanted to see what an SF and Fantasy magazine editor looks like.”
“An ordinary face. A regular guy.”
“At least, to the extent that an SF and Fantasy magazine editor can be normal.”
“What’s your problem, my friend?”, Kirk reacts to the stranger’s hostile attitude.
“Trouble is, I submitted a story to your magazine, which was rejected with a poor little excuse: ‘not quite the kind of material we’re looking for”. I wonder if you actually read the story, and if you paid any attention to details of the greatest importance.”
“Oh, so that’s it. I’m sorry, my friend. I don’t read everything that’s submitted to us, just some texts that my assistants point out to me.”
“I figured this much.”
“Have you read our publication’s guidelines? We discarded from the outset the cliché material, derived from films of the 50’s: alien invasions, monsters from space, etc. And dilutions or pastiches of classic authors of the genre. Much of what we get is sheer Plan 9 from outer space.”
The other gives no sign of recognizing the mention of Ed Wood, soi-disant Hollywood’s infamous worst film director. Kirk finds it best to be diplomatic:
“What was your story about?”
“About a human who was captured by Sirian aliens and managed to escape their ship, bringing back with him a very valuable item, really emblematic of Sirian civilization. The spacecraft is accurately described. Engineer Bob Lasar would recognize gravitational energy engines.”
“Ah”, Kirk takes a deep breath and redoubles his caution. “Well, these guys who claim to have been abducted, and escaped, tend to set up YouTube channels and sell souvenirs in the mail. Does your story, by any chance, describe a, er, personal experience?”
“You can be sure I wrote about something I know well.”
“Hmm”, Kirk is already preparing to reverse his shopping cart and dash toward the checkouts. “Well, don’t get too upset, pal. Even Asimov, Bradbury or Philip K. Dick weren’t always right on target. Carefully read the guidelines of our magazine and keep sending us your writings, all right?”
“I will… Will. Right now, if you’ll excuse me, I’d like to show you an extraordinary piece of Sirian technology.”
The man reaches into the pocket of his overalls and pulls out a conical, translucent object with a milky sheen. He points at Kirk’s shopping cart. An orange ray bathes the multicolored packaging in an intense golden glow. And, voilà!, there is no longer a trace of the packages, cans, vegetables, and steaks for the Saturday afternoon grill out. Not even scrap from the cart. Volatilized.
Stunned, Kirk looks up at the ceiling, wondering if the video cameras have captured the phenomenon. He stares with astonishment at the man in the shabby overalls, who has already pocketed the alleged Sirian weapon.
“You’ll hear from us very soon”, says the troublemaker, quickly turning the corner and out of sight.
Staring at his image in the large mirror mounted on a column, the catatonic editor of Kirkosmos magazine is absolutely convinced that he must read the account of that nameless storyteller.

[Translation: Beta Guedes Cummins]

 

 

 

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Luiz Roberto Guedes é poeta, escritor, publicitário e compositor. Publicou, entre outros, O mamaluco voador (2006), e Alguém para amar no fim de semana (2010). E-mail: poetburo@gmail.com




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