Fibonacci Blues


para Ernesto de Melo e Castro

 

Para quem tem olhos que detectam padrões, é fácil perceber uma espiral formada pela folha de uma bromélia ou pela concha do Nautilus marinho. Um matemático diria que esses padrões são a manifestação da sequência de Fibonacci, que se configura por meio da composição de quadrados com arestas de medidas proporcionais aos elementos da sequência, por exemplo: 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13…, tendentes à razão áurea. Quando esses padrões se entrelaçam com os compassos melancólicos e estendidos da existência (12 compassos, 12 signos, 12 meses do ano, 12 horas-dia, 12 horas-noite, 12 notas musicais, 12 arcanos iniciais, …) pode-se dizer que aí se deu um Fibonacci Blues.

 

 

 

 

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Está escrito. A literatura é como um fósforo. Não serve para iluminar a escuridão, mas sim para nos darmos conta da imensidão da escuridão.

 

 

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Nos sonhos, os trilhos ondulam. Serpentes de aço. A vida esfuma-se em um traço de shodo. Bafejos de sumi. Cada gesto tem sua importância devida. Os espaços em branco adquirem potência de significados. Aquele trajeto que fizera ainda bebê entre a Bahia negra e uma São Paulo fria tornara-se um borrão azul escuro. A pequena odisseia entre a Pirituba com ruas de barro e o bairro da Luz e seu asfalto fumegante ainda faiscava indistinguível. Uma reta, aprendera, nunca foi a menor distância entre dois pontos. A massa pegajosa do tempo permeia o espaço. Uma infância nublada de despedidas e de ausências é um buraco negro.

 

 

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Um amigo de Adilson acordava todos os dias com o som das patas de seu gato sobre as teclas do piano. Ao se levantar, encontrava-o junto à porta que levava ao jardim. Esperava que a abrisse. Nas manhãs de sábado, isso era recorrente. Um cientista olharia para tal evento e pensaria que, para o dono do gato, seria natural descrevê-lo como “significando” o desejo do gato de sair para o jardim. Dessa forma, ele estaria fazendo uma descrição semântica da conduta de seu gato. O cientista sabe, porém, que as interações entre eles só ocorreram como um desencadeamento mútuo de mudanças de estado, segundo suas respectivas determinações estruturais. Presume-se que um bom cientista saiba diferenciar o operar de um organismo da descrição de suas condutas. Há muitas ocorrências como a do amigo de Adilson em que poderíamos aplicar uma descrição semântica a um fenômeno social. É um frequente recurso literário ou metafórico, que torna a situação comparável a uma interação linguística humana, tais como as fábulas.

 

 

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Um imperador chinês, no século 12, sonhara com um magnífico palácio adornado de todo tipo de pedras preciosas e, como lhe era possível, ordenou que ele fosse edificado de acordo com a sua visão. Acontece que, no século 18, um poeta inglês, que não tinha como saber que a construção desse palácio havia sido gestada a partir de um sonho, sonha com um poema que lhe mostra a grandiosidade de tal palácio. Como descrever o significado de tais simetrias a articular almas que vivem em séculos e continentes tão diferentes?

 

 

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O escritor espanhol Agustín Fernández Mallo esteve em São Paulo para falar sobre seu trabalho. Adilson estava lá. Agustín contou que, antes, passara alguns dias no Rio de Janeiro e havia se hospedado em um hotel que lhe gerara uma experiência de escrita. Descobriu Agustín que o hotel tinha várias salas e salões para conferências com nomes de artistas espanhóis. Dalí, Velásquez, Goya, Garcia Lorca, entre outros. Curiosamente o salão Garcia Lorca era o único que eles mantinham fechado e ao perguntar o porquê responderam que por questões técnicas e, evidente, porque não estava em condições de receber ninguém. Mallo, que é poeta, além de físico, e respeita a obra de Lorca, ficou muito impressionado com o fato de o salão ficar fechado e constantemente vazio. Em sua cabeça, um salão vazio era como uma vala comum, um lugar onde se enterram indigentes e outros defuntos sem nome. Lembrou que Garcia Lorca havia sido enterrado em uma vala comum depois de ter sido assassinado durante a Guerra Civil Espanhola. Seu corpo nunca foi encontrado. Mallo arquitetou um plano para remediar esse vazio. Em cada uma das notas de reais que havia trocado no aeroporto anotou um verso de Lorca. Pagou o restaurante, as lembrancinhas, a cerveja que tomara na Lapa, o táxi e o próprio hotel com essas notas tocadas pelo elã poético de Lorca. Aquela sala nunca mais estaria vazia. Em algum lugar do Brasil, alguém balbuciaria em mau ou bom espanhol um verso de Lorca. Um duende que começaria a fazer estragos por onde passasse.

 

[…]

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Se há algo que nos transcende, talvez seja adequado admitir também que esse algo possua alguma misericórdia, ou quem sabe uma pitada de benevolência, e que conhecendo a fragilidade característica do ser humano tenha criado um mecanismo que possa nos redimir, ou que pelo menos nos traga algum consolo. Os católicos apostólicos romanos consideram que esse mecanismo é o sacramento da confissão e da penitência. Os cínicos estão convictos que o nome do mecanismo é entertainment.

 

 

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Procurar ou inventar uma geometria é sobrepor uma ordem à desordem ou um saber à ignorância. Ou, se preferirmos, a nossa ordem à desordem dos outros. Isto porque estaremos sempre presos à visão conceptual do Universo de que formos capazes, embora o Universo permaneça da forma que é a sua (expandindo-se ou contraindo-se, tanto faz…) que não depende de nós e da qual pouco ou nada sabemos.

 

Ernesto M. de Melo e Castro

 

 

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Em agosto de 1998, o cineasta inglês Peter Greenaway esteve no Rio de Janeiro para mostrar sua ópera ‘100 Objetos para Representar o Mundo’ e aproveitou para conhecer o acervo do negro e ex-paciente psiquiátrico Arthur Bispo do Rosário. Bispo foi um caso único de ser que se dedicou a, como dizia Borges, ‘la tarea de dibujar el mundo’. Ao longo de cinquenta anos, confinado em uma instituição psiquiátrica, Bispo criou peças, indumentárias, objetos, fichários, coleções de miniaturas, navios de madeira, rodas de bicicleta, séries, com o que tinha à mão e que até hoje nos desafiam. Para Bispo seu trabalho consistia em um registro de sua passagem sobre a terra e seria apresentado a Deus no dia do Julgamento Final. Era seu passaporte. Ao término de sua visita ao acervo de Bispo, Greenaway admitiu: “Ele é mais obsessivo do que eu; a obsessão dele é infinita”.

 

[…]

 

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Comentários sobre o livro:

 

Nelson de Oliveira 

Fiquei positivamente impressionado com a leveza e a beleza elíptica de “Fibonacci blues”. Que breve romance delicioso! (Na verdade, eu classificaria esse livro como “novela”, mas esse é outro papo.) Preciso confessar que, dos muitos autores que eu conheço e leio há bastante tempo, entre eles você, eu nunca espero me surpreender quando surge um novo livro. Depois de vários livros, todos nós já cristalizamos um estilo poético ou ficcional. Porém, pra minha grata surpresa, “Fibonacci blues” me pareceu algo realmente novo, na esfera da tua produção.

Rapaz, você conseguiu me surpreender, começando pela numeração dos minicapítulos… Em tempo… Acabei de ler tua conversa com o Carlos Emilio, e adorei a classificação “novela fractal”. É isso mesmo. “Novela”, não porque seja uma narrativa curta (eu gosto mais da definição do Massaud Moisés, que leva em conta a forma, não a extensão do texto), mas porque é uma narrativa fragmentada, com muitas entradas e saídas. E “fractal” porque… bem… porque é totalmente fractal, rs.

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Criação radioativa

 

Desde já este spoiler: o autor não degenera. Ao contrário, sai impoluto aos seus e aos que lhe aguçam a memória, o esquecimento e os sonhos.

E cujo objetivo é atomizar a metáfora que mescla, arrojada e impunemente, finitude e angústia.

Onde começa uma e termina a outra é blues!

A criação pode tudo, sim! É radioativa. Romance, conto, poema, pode ser a criatura que vier. “Até um fósforo”.

Mixagem de Bahia e São Paulo, preto-e-branco como se fora looping de filme, “Fibonacci Blues” alumia vida e estro até seu quântico ponto final.

Eis, então, uma ciclópica vilegiatura textual fiel ao renomear a atávica insurreição dos cancelados pela cor, o sexo e os pés descalços.

É quando o autor assume de vez o discurso para dizer: eu importo, a linguagem é fóssil, queima a cada leitura.

 

Sylvio Back, cineasta, roteirista e poeta.

 

 

 

 

Onde comprar: Kotter Editorial

 

 

 

 

 

 

 

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Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta e editor do site Musa Rara. Fundou e editou o histórico site de literatura, Cronópios. Graduado em Letras e mestrando em Escrita Literária (USP). Seus textos críticos aparecem no Jornal Rascunho e no site Musa Rara. Tem 12 livros  publicados. Lançou em 2020, Pandemônio (poemas) pela Kotter Editorial e, em 2021, Fibonacci blues – uma novela fractal, pela mesma editora. Em 2022, lançou Negrura, também pela Kotter.




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