Primeira Dama


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No conto “Primeira Dama”, publicado em 1959 por Augusto Monterroso, o autor utiliza uma estratégia comum em seus textos: a de provocar a ironia ao fazer comentários que se enquadram à visão de mundo de um personagem específico, mas não com o mundo que efetivamente existe ao seu redor.

A estória se passa em um país não nomeado, cuja Primeira Dama se envolve em um evento para arrecadar fundos e alimentar crianças desnutridas nas escolas, crianças que ocasionalmente chegam a desmaiar de fome. Ela auxilia no evento especialmente através da recitação do poema “Os Motivos do Lobo”, de Ruben Darío, que, para auxiliar na compreensão do conto, também traduzi, e segue abaixo.

O poema de Darío parece inspirar a formação de todos os personagens do conto, ajudando o autor a criar a ironia. Um exemplo está na visão do diretor da escola a respeito das mulheres, de que é preciso, por exemplo, “se preocupar se estão sentadas ou não”: a primeira dama não é, de modo algum, como ele supõe que seja, mas ele desde o início a compreende segundo seus preconceitos, e mesmo quando ela toma atitudes diferentes daquelas que ele espera, ele as atribui a uma ironia da parte dela.

A visão dos personagens é muito escancaradamente ditada por preconceitos e moldes sociais, para o bem e para o mal, e é interessante pensar até que ponto existe uma relação entre as crianças desmaiando de fome na escola e o Lobo do poema de Darío – poema cuja escolha parece indicar que a Primeira Dama não é uma personagem tão simples, ainda que ela pareça ser a única a pensar a respeito, e que a qualidade ou não de seu recital caiba ao leitor definir.
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***

 

Primeira Dama

 

— Meu marido disse que são bobagens minhas — pensava —; mas o que ele quer é que eu só fique em casa, me matando como antes. Isso sim é que não pode acontecer. Os outros tem medo dele, mas eu não. Se eu não houvesse ajudado quando estávamos quebrados, ainda assim. E por que não poderia recitar, se gosto? O fato de que agora ele seja o Presidente, ao invés de ser um obstáculo devia fazê-lo pensar que assim o ajudo mais. É que os homens, sejam ou não presidentes, são muito sistemáticos. E além disso, não vou andar por aí recitando em qualquer lugar como se fosse uma louca, mas apenas em atos oficiais ou em eventos beneficentes. Portanto sim, se não tem nada de mal.

Não tinha nada de mal. Terminou seu banho. Entrou em seu quarto. Enquanto se penteava, viu no espelho, atrás dela, as estantes repletas de livros em desordem. Romances. Livros de poesia. Antologias das mil melhores poesias universais, titãs e recitadores sem paralelo nos quais havia marcado com pedacinhos de papel os poemas mais belos. Reír llorando, La cabeza del rabi, Trópico!, A una madre. Meu Deus, de onde tiravam tantas ideias?

Em breve não caberiam todos os livros na casa. Mas ainda que nem todos fossem lidos, eram a melhor das heranças.

Sobre a penteadeira tinha vários exemplares do programa dessa noite. Se animava-se a dar um recital sozinha. Até agora não havia organizado nenhum, por modéstia. Sabia, ainda assim, que de qualquer modo ela era a figura principal.

Desta vez se tratava de um evento preparado algo às pressas para o Café da Manhã Escolar. Alguém havia notado que as crianças nas escolas andavam meio desnutridas, e que algumas desmaiavam ali pelas onze, quando o professor talvez estivesse em seu melhor. A princípio atribuíram tudo a indigestões, depois a uma epidemia de lombrigas (Salubridade) e só ao fim, durante uma de suas frequentes noites de insônia, o Diretor Geral de Educação, nebulosamente, suspeitou que podiam ser casos de fome.

Quando o diretor geral convocou numerosos pais de família, a maioria se indignou em altos brados ante a suposição de que seriam tão pobres, e por orgulho, ninguém estava disposto a aceitar aquilo diante dos demais. Mas enquanto a reunião se dissolvia, vários deles, individualmente, se aproximaram do Diretor e reconheceram que em algumas ocasiões — nem sempre, é claro — mandavam seus filhos para a escola sem nada no estômago. O diretor se assustou ao confirmar sua suspeita e decidiu que era necessário tomar uma atitude imediatamente. Por sorte lembrou-se de que o Presidente fora seu amigo de escola e se dispôs a vê-lo o quanto antes. Não se arrependeu. O Presidente o recebeu com toda a simpatia, provavelmente com muito mais cordialidade do que haveria demonstrado se estivesse em uma posição menos elevada. De modo que quando começou: “Senhor Presidente…” ele riu e disse: “Deixe essa bobagem de Senhor Presidente pra lá e diga de uma vez a que veio”, e sempre risonho o obrigou a se sentar, mediante uma leve pressão no ombro. Estava tranquilo. Mas o Diretor sabia que por mais que lhe desse palmadinhas já não era o mesmo dos tempos em que iam para a escola juntos, ou simplesmente que há dois anos, quando ainda tomavam um trago com outros amigos no El Danubio. De qualquer modo, percebia-se que começava a se sentir confortável no cargo. Como ele mesmo dissera recentemente, levantando o indicador após a refeição em uma ceia na casa de seus pais, ante primeiro a expectativa e depois a calorosa aprovação de seus parentes e companheiros de armas: “No início é um pouco estranho; mas a tudo se acostuma”.

— Pois bem, o que faz por aqui? — insistiu — Aposto que já está com problemas no Ministério.

— Então, se quer mesmo saber, é verdade.

— Verdade? — disse triunfante o Presidente, aprovando a própria sagacidade.

— Mas, se me permite, não é por isso que vim; outro dia eu conto. Olha, para não desperdiçar seu tempo, vou direto ao assunto. Aconteceram vários casos de crianças desmaiando de fome nas escolas e eu queria saber o que podemos fazer. Prefiro dizer a você de uma vez porque é osso duro ficar andando de lá para cá. Além disso, é melhor que eu mesmo conte porque não vai faltar quem venha dizer que eu não faço nada. Minha ideia é que você me autorize a conseguir algum dinheiro e fundar alguma espécie de Gota de Leite semi-oficial.

— Você não está virando comunista, né? — ele interrompeu, soltando uma gargalhada. Aqui sim se mostrava o excelente humor em que estava naquele dia. Os dois riram muito. O Diretor alertou brincando que tomasse cuidado, pois andava lendo um livrinho sobre o marxismo, ao que ele respondeu sem deixar de rir que não fosse procurar o Delegado de Polícia porque esse podia ferrar com ele. Depois de trocar mais algumas outras frases espirituosas sobre o mesmo assunto, ele disse que lhe parecia ótimo, que ele visse de quem conseguia tirar dinheiro, que dissesse que ele estava de acordo e que talvez a UNICEF poderia dar um pouco mais de leite. “Os gringos têm leite para dar e vender”, afirmou ao fim, ficando de pé e dando por encerrada a entrevista.

— Ah, olha — acrescentou quando o Diretor já se encontrava na porta —: se quiser fale com minha esposa para que ela ajude; ela gosta dessas coisas.

O Diretor disse que estava de acordo e que falaria com ela em breve.

Ainda assim, isso mais o deprimiu que qualquer outra coisa, porque não lhe agradava trabalhar com mulheres. Eram as piores funcionárias. A maioria era sistemática, vaidosa, difícil, e era preciso ficar o tempo todo com cortesias, se preocupando se estavam ou não sentadas e ficando nervoso quando alguma circunstância obrigava a lhes dizer não. De modo que não a conhecia bem. Mas era melhor interpretar a sugestão do Presidente como uma ordem.

Quando falou com ela, ela aceitou sem vacilar. Como poderia duvidar? Não só lhe ajudaria fazendo propaganda entre suas amigas, mas também trabalharia pessoalmente com entusiasmo, fazendo parte, por exemplo, dos eventos que fossem organizados.

— Posso recitar — ela disse —; você sabe que sempre fui aficionada. “Que bom”, pensou enquanto o dizia, “que haja essa oportunidade”. Mas ao mesmo tempo se arrependeu de seus pensamentos e temeu que Deus a castigasse quando se lembrou das crianças que desmaiavam de fome. “Pobrezinhos”, pensou rápido para aplacar o céu e eludir o castigo. E em voz alta disse:

— Pobres criaturas. E de quando em quando desmaiam?

O Diretor explicou pacientemente que não eram sempre os mesmos que desmaiavam periodicamente, mas que algumas vezes era um e outras outro, e que o melhor era ver como poderiam dar café da manhã ao maior número possível. Teriam que fundar uma organização para arrecadar fundos.

— Claro — ela disse —. E qual será o nome?

— Que tal “Café da Manhã Escolar”? — disse o Diretor.

 

Passou sua mão pelo programa, um pedaço quadrangular de papel acetinado impresso com elegância:

1º Palavras preliminares, pelo Sr. Hugo Miranda, Diretor Geral de Educação do Ministério da Educação Pública.

2º. Barcarola dos Contos de Hoffman, de Offenbach, por um grupo de alunos da Escola 4 de Julho.

3º Três Valsas de F. Chopin, por Rene Elgueta, aluno do Conservatório Nacional.

4º. Os Motivos do Lobo, de Rubén Darío, pela Ex.ma. Sra. Eulalia Fernández de Rivera González, Primeira Dama da República.

5º. Os Céus de minha Pátria, pelo compositor nacional Sr. Federico Díaz, seu autor, ao piano.

6º Hino nacional.

Lhe parecia bom. Ainda que talvez fosse música demais e pouca recitação.

— Gosta do que vou recitar? — perguntou a seu marido.

— Desde que você não se esqueça do poema no meio do caminho e passe vergonha — respondeu ele, mal-humorado mas incapaz de se opor seriamente —. Não sei mesmo para que você se meteu com essa bobagem. Parece que não conhece os rapazes, o jeito que são sacanas. Já já vão começar a fazer piadas. Mas quando você põe uma coisa na cabeça ninguém tira.

Nos tempos em que namoravam ele gostava que ela declamasse, e até pedia que ela o fizesse para ficar bem com ela. Mas agora era outra coisa e suas aparições em público o irritavam.

“Verpedapadepe opo quepe dipigopo?” — pensou ela — “não podem ver que a esposa tenha alguma iniciativa que logo começam a inventar apesares e as querer deixar complexadas”.

— Que vou esquecer que nada — disse em voz alta, se levantando e buscando um lenço —; o conheço desde criança. O que está me incomodando é que estou com um pouco de coriza. Mas acho que é nervosismo. Sempre que tenho que fazer algo importante em uma data específica fico com medo de me adoecer e começo a pensar: vou me encher de catarro, já me vai dar catarro, até que realmente me dá. É isso, então. Devem ser os nervos. Fica provado porque depois passa.

Se virando bruscamente para o espelho, começou a levantar os braços e testar a voz.:

— El varóooooon que tiene corazóooooon de liz

aaaaaalma de queeeeeerube, lenguaaaaa celestiallllll

el míiiiiinimo y dulce Francisco de Asíiiiiis

estacón un rudui

torvoa

nimal.

Pronunciava liz. Era bom alargar as sílabas acentuadas. Mas nem sempre sabia quais eram, a menos que tivessem o acento ortográfico. Por exemplo: “varón”, óooooon; “mínimo”, miiiiii; “corazón”, óooooon. Mas em “alma de querube, lengua celestial”, não tinha como saber. Enfim, o importante era sentir, porque quando não se sente de nada adianta conhecer todas as regras.

— O varão

….o varão que tem

….o varão que tem um coração

….o varão que tem um coração de fé.

 

Quando chegou à escola ainda era muito cedo. Ainda assim, se sentiu desalentada porque poucas pessoas ocupavam os assentos. Mas pensou que por aqui nós sempre chegamos atrasados e quando é que vamos abandonar esse costume. Em um pequeno cenário, atrás da cortina improvisada, as alunas da Escola 4 de Julho ensaiavam em voz baixa a Barcarola. O professor de canto, muito sério, lhes indicava o lá com um pequeno apito de metal prateado que só produzia essa nota. Ao perceber que ela estava ali, e o observava sorridente, lhe saudou brevemente com a cabeça e parou de mover seus braços; mas pela brevidade, ou para não parecer servil demais, ou mesmo porque simplesmente não o fosse, não interrompeu seu ensaio. Ela agradeceu por isso, pois naquele momento repassava mentalmente o poema e se a interrompessem teria que voltar a seguir seu fio desde o início. Como se realmente a estivesse usando, clareava a garganta a cada cinco ou seis versos, apesar de saber que com isso apenas conseguiria irritá-la mais, assim como aquele professor a quem os alunos, só para chateá-lo, disseram que estava com o olho vermelho e ele começou a esfregá-lo e esfregá-lo, até que o deixou tão vermelho que eles não conseguiam mais conter o riso; ou como os macacos, que basta lhes colocar um pouco de excremento na palma da mão para que não parem de cheirá-lo até a morte. Como funcionam as obsessões. O que a deixava mais irritada era saber que tudo passaria assim que terminasse seu número. Certo então. Mas era incômodo, enquanto isso, pensar que lhe sairia um cacarejo no meio do recital.

A verdade é que seria uma estupidez ter medo do público. No suposto caso de que suas intervenções não o agradassem, isso não seria culpa dela, mas do público em geral que é muito ignorante e não sabe apreciar a poesia. Ainda lhes faltava muito. Mas precisamente por isso aproveitaria todas as ocasiões que se apresentassem para lhes dar a conhecer os bons versos e se revelar como declamadora.

 

— Mas senhora — repreendeu preocupado o Diretor Geral quando chegou transpirando —, se eu a buscaria em casa. Não está certo que tenha vindo sozinha.

Ela o olhou compreensiva e o tranquilizou com cortesia. Desde que se converteu em Primeira Dama se alegrava quando tinha a oportunidade de demonstrar que era uma pessoa modesta, possivelmente muito mais modesta que qualquer outra no mundo, e até havia estudado no espelho um sorriso e um olhar encantadores que significavam mais ou menos: “Como assim! Imagina que por ser a esposa do Presidente tenha me tornado orgulhosa?” Mas o Diretor preferiu entender que era tratado com ironia, e, deprimido, se pôs a falar sem tom nem som disso e daquilo. Mal os outros artistas se aproximaram e começaram a rodeá-la, aproveitou a oportunidade para se retirar. Depois se podia vê-lo, gordinho, dando ordens e organizando tudo, de acordo com o princípio de que se você não faz as coisas pessoalmente ninguém as fará.

Só se aproximou dela novamente para dizer: — Prepare-se, senhora. Vamos começar.

Como contava com uma certa prática, o Diretor explicou sem dificuldades que estávamos ali movidos por um alto espírito de solidariedade humana. Que havia muitas crianças subalimentadas coisa que o Governo era o primeiro em lamentar porque como lhe havia dito pessoalmente o Presidente quando o chamou para lhe mostrar que era preciso fazer algo por esses meninos no interesse da pátria mova as consciências remova céu e terra comova os corações em favor dessa nobre cruzada. Que já eram muitas as pessoas de todas as classes sociais que haviam oferecido sua desinteressada ajuda e que nossos amigos norte-americanos essa nobre e generosa nação que com justiça poderíamos chamar de despensa do mundo haviam prometido fazer um novo sacrifício de latas de leite em pó. Que nossa tarefa principiava modesta mas que estávamos dispostos a não omitir esforço algum para convertê-la não só em um fato real e concreto do presente mas em um estimulante exemplo para as gerações futuras. Que tínhamos o grande orgulho de contar também com a ajuda da Primeira Dama da República cuja requintada arte teríamos a honra de apreciar dentro de poucos instantes e cujas entranhas generosamente maternais haviam se comovido até as lágrimas ao saber da desgraça desses meninos que fosse pelo alcoolismo de seus pais ou por descuido de suas mães ou por ambas as coisas não podiam desfrutar em seus modestos lares da sagrada instituição do café da manhã o que ameaçava sua saúde e diminuía o aproveitamento da instituição que o Ministério que éramos honrados em representar essa noite estava empenhado em lhes fornecer convencido de que o livro e somente o livro resolveria os seculares problemas que a pátria enfrentava. E que havia dito.

Depois dos aplausos as meninas da Escola 4 de Julho cantaram com sua costumeira doçura o la, lalá, lalalalalá, lalalalalá, lalá da Barcarola, enquanto o pianista em um nervosismo ansioso atacava suas valsas que, como tantas outras coisas nesse dia em diversas regiões do globo, começaram e também terminaram com toda a felicidade e a glória.

Ela inclinou a cabeça, agradecendo mentalmente. Cruzou as mãos e as contemplou por um momento, esperando que surgisse a atmosfera necessária. Logo sentiu que de sua boca, através de suas palavras, se assomava ao mundo São Francisco de Assis, mínimo e doce, até tomar a forma do ser mais humilde da terra. Mas em seguida essa ilusão de humildade caía por terra porque outras palavras, consequentes não se sabia como das primeiras, mudavam seu aspecto até convertê-lo em um homem iracundo. E ela sentia que tinha que ser assim e não de outra maneira porque ele se encontrava chamando a atenção de um lobo, cujas presas haviam horrivelmente dado cabo de pastores, rebanhos, e qualquer outro ser vivente que se lhe colocasse no caminho. Então sim. Sua voz tremeu e em seguida lhe escapou uma lágrima no preciso instante em que o santo dizia ao lobo que não fosse mau, que por que não deixava de andar por aí semeando o terror entre os aldeões e se por acaso vinha do inferno. Ainda que imediatamente depois era quase visível ao brotar de seus lábios uma grande tranquilidade quando o animal, não sem ter refletido por um momento, seguia o santo à aldeia, onde todos se admiravam ao vê-lo tão mansinho que até uma criança poderia dar-lhe de comer com as mãos. As palavras lhe saíam então doces e ternas e pensava que o lobo também poderia dar comida ao menino para que não desmaiasse de fome na escola. Mas voltava a se angustiar porque em um descuido de São Francisco o lobo ia novamente ao monte acabar com as pessoas do campo e com seu gado. Sua voz adquiria aqui um tom de condenação implacável e a elevava e diminuía conforme era necessário, sem se lembrar nem um pouco do catarro ou dos malditos nervos dos dias anteriores, como ela sabia de antemão que aconteceria. Pelo contrário, uma grata sensação de segurança de segurança de segurança a envolvia pois era fácil notar que o público a escutava fortemente impressionado pelas barbaridades da fera; apesar de que ela já sabia, nesse momento, que os papeis se inverteriam e o lobo se converteria de acusado em acusador quando São Francisco o buscasse novamente com sua acostumada confiança para apontá-lo outra vez na direção certa. Por mais que não se desejasse, era preciso ficar do lado do lobo, cujas palavras eram facilmente interpretáveis: Sim, verdade? Muito bonito; eu estava lá todo manso comendo o que eles decidiam me jogar e lambendo as mãos de todos como um cordeiro, enquanto os homens em suas casas se entregavam à inveja e à luxúria e à ira e guerreavam uns contra os outros e perdiam os mais fracos e ganhavam os maus. Dizia as palavras “fracos” e “maus” em tons tão diferentes que ninguém poderia ter a menor dúvida que estava do lado dos primeiros. E se sentia segura de que a coisa ia bem e que sua recitação era um sucesso, porque verdadeiramente se indignava ante tantas cretinices que deixavam pequenas as do lobo, que afinal de contas não era um ser racional. Sem sequer perceber como se aproximou o instante em que sabia que já, agora, agora, as palavras deveriam brotar de sua garganta nem muito fortes, nem muito ternas, nem furiosas, nem mansas, mas impregnadas de desesperança e amargura, pois o santo não deve ter sentido nada além disso quando deu razão à fera e se dirigiu finalmente ao pai nosso que estáaaaaaaaas en los cieeeeeeeelos.

Permaneceu alguns segundos com os braços levantados. O suor lhe descia em pequenos fios entre os peitos e pelas costas. Ouviu que aplaudiam. Baixou as mãos. Ajeitou com discrição o vestido e agradeceu modestamente. O público, afinal, não era tão bruto. Mas estava custando um bom esforço fazê-lo chegar à poesia. Era o que ela pensava: pouco a pouco. Enquanto apertava as mãos de todos aqueles que a felicitavam se sentiu embevecida por um doce e suave sentimento de superioridade. E quando uma senhora humilde que se aproximou para cumprimentá-la lhe disse que bonito, esteve a ponto de abraçá-la, mas se conteve e contentou-se em perguntá-la: “A Senhora gostou?”, pois a verdade era que já não estava pensando nisso mas sim em quanto seria bom organizar de imediato um outro ato, em um local maior, quem sabe em um teatro de verdade, em que apenas ela se encarregaria inteiramente do programa, porque o problema desses eventinhos é que os músicos entediavam o público, apesar de que no outro dia também foram elogiados no periódico, o que não era justo. Portanto não.

Já na porta de sua casa convidou o Diretor Geral e a dois ou três amigos para tomar um whisky “para celebrar”. Queria prolongar um pouco mais a conversa sobre seu triunfo. Quem dera estivesse ali seu marido para que ouvisse o que lhe diziam e para que se convencesse de que não era coisa de sua cabeça. Que bom havia sido o resultado, não é mesmo? E quanto haviam lucrado?

O Diretor Geral lhe informou muito elaboradamente que houvera um lucro de aproximados $7,50.

— Tão pouquinho? —disse ela.

Ele pensou com amargura mas disse com otimismo que por ser o primeiro não estava tão mal. Que havia faltado propaganda.

— Não — disse ela —. Creio que isso se deve ao lugar, que é muito pequeno.

— Bem, é claro — disse ele —. Tem razão quanto a isso.

— Como faremos? — disse ela — Precisamos fazer algo para ajudar a essas pobres crianças.

— Bem — disse ele —; o importante é que já começamos.

— Sim — disse ela —; mas a coisa é continuar. Temos que preparar algo mais sério.

— Eu creio que com sua ajuda… — disse ele.

— Sim sim podemos conseguir um teatro e eu vou recitar você verá mas precisa ser um teatro grande porque senão já viu o que acontece você se esforça preparando as coisas e no fim quase não se tira nada de qualquer modo vou falar com meu marido sempre está me incentivando a recitar é meu maior estímulo você percebeu? o povo tem vontade de ouvir poesia se visse a emoção que senti quando uma senhora que nem me conhece me disse que havia gostado muito eu creio que um recital de poesia seria um sucesso o que você acha? — disse ela.

— Claro — disse ele—; as pessoas gostam muito.

— Saiba que estou preocupada — disse ela — com o pouco que lucramos hoje. O que acha de eu lhe dar 100 pesos para que o resultado não seja tão ruim? Tenho muita vontade de ajudar. Acredito que pouco a pouco vamos conseguir.

Ele disse que claro; que pouco a pouco conseguiriam.

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***

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Os Motivos do Lobo

 

O varão que tem um coração de lis,

alma de querubim, língua celestial,

o mínimo e doce Francisco de Assis,

está com um rude e feroz animal,

besta temerosa, de sangue e de roubo,

as presas da fúria, os olhos de mal:

o lobo de Gubbia, o terrível lobo,

raivoso, assolava por seus arredores;

cruel, desfazia a todos os rebanhos;

devorou cordeiros, devorou pastores,

e são incontáveis as mortes e danos.

 

Fortes caçadores armados com ferros

foram destroçados. O marfim lupino

deu cabo até do mais feroz dos cachorros,

como de cabritos e outros caprinos.

 

De Assis se ausentou:

do lobo buscou

o esconderijo.

Já próximo à toca encontrou o bicho

enorme, que ao vê-lo lançou-se feroz

sobre ele. Francisco, sua doce voz,

levantando a mão,

ao furioso lobo, diz: “Paz, meu irmão

lobo!” E então a fera

contemplou o varão de aniagem mera;

deixou o ar arisco,

fechou a aberta presa agressiva,

e disse: “Está bem, meu irmão Francisco!”

“Como! Exclamou o santo? É lei que tu vivas

de horror e de morte?

O sangue que vertes

o possesso focinho, a dor e o espanto

que espalha, o pranto

dos campesinos, o grito, a dor

de tantas criaturas de Nosso Senhor,

não hão de conter teu rancor infernal?

Vens tu do inferno?

Acaso infundiram-te o rancor eterno

Luzbel ou Belial?”

 

E o lobo, grande e humilde: “É duro o inverno,

e é horrível a fome! No bosque gelado,

não há alimento; e busquei o gado,

e por vezes comi juntos gado e pastor.

O sangue? Eu vi mais de um caçador

sobre seu cavalo, levando o açor

nas mãos; ou correndo atrás do javali,

do urso ou do cervo; e, a mais de um vi

se manchar de sangue, ferir, torturar,

de rudes cornetas ao surdo clamor,

várias criaturas de Nosso Senhor.

E não foi por fome, que os vi caçar.”

 

Francisco responde: “No homem existe

Cruel levedura.

Quando nasce já vem com pecado. É triste.

Mas a alma simples de uma besta é pura.

Tu agora vais ter

Desde hoje o que comer.

Deixarás em paz

rebanhos e pessoas nesse país.

Que Deus melifique teu ser montaraz!”

 

“Está bem, meu irmão Francisco de Assis.”

“Frente ao Senhor, que tudo ata e desata,

em promessa de fé me estenda uma pata.”

O lobo estendeu a pata ao irmão

de Assis, que a sua vez lhe estendeu a mão.

 

Foram à aldeia. O povo via

e quem quer que observasse quase não cria

Atrás do religioso ia o lobo fero,

e, baixa a fronte, quieto lhe seguia

como um cão de caça, ou como um cordeiro.

 

Francisco chamou as pessoas à praça

e ali predicou.

E disse: “Aqui está uma amável caça.

O irmão lobo vem comigo;

me jurou já não ser vosso inimigo,

e não repetir seu ataque sangrento.

Vós, por sua vez, lhe dareis alimento

a essa pobre besta de Deus.” “Assim seja!

Contestou toda a gente da aldeia.

E logo, em sinal

de contentamento,

move a fronte e a cauda o bom animal,

e entra com Francisco de Assis no convento.

 

Algum tempo esteve o lobo tranquilo

nesse santo asilo.

Suas orelhas toscas os salmos ouviam

e até seus claros olhos se umedeciam.

Aprendeu mil graças, fazia mil jogos

quando ia à cozinha juntamente aos leigos.

E quando Francisco sua oração fazia,

o lobo as pobres sandálias lambia.

Nas ruas andava,

seguia pelo monte, descia ao vale,

entrava nas casas e lhe davam algo

de comer. Olhavam-no como a um manso galgo.

Um dia, Francisco se ausentou. E o lobo

doce, o bom e manso lobo, o lobo probo,

de lá se afastou, retornou à montanha,

e recomeçaram seu uivar e sua sanha.

 

Outra vez o alarme, o temor se sentia

entre os vizinhos e entre os pastores;

repletos de espanto eram os arredores,

toda arma e coragem de nada servia

pois a besta fera

não deu tréguas a seu furor jamais,

como se tivesse

fogos de Moloch e de Satanás.

 

Quando voltou ao povo o divino santo,

todos o buscaram com queixas e pranto,

com mil querelas testemunho foi dado

dos que então sofriam e perdiam tanto

por aquele infame lobo do diabo.

 

Francisco de Assis fez-se mais severo.

Foi até a montanha

buscando o desleal lobo carniceiro.

E a fera encontrou de sua toca na entranha.

 

“Em nome do pai do sagrado universo,

te conjuro”, disse, “ó lobo perverso,

que me responda: Por que voltaste ao mal?

Responda. Te escuto.”

Como em surda luta, falou o animal,

a boca espumando e o olho fatal:

 

“Irmão Francisco, não te aproximes muito…

Eu estava tranquilo, lá no convento;

ao povo saía,

e se algo me dessem, em contentamento

bem manso comia.

Mas comecei a ver que em todas as casas

estavam a Inveja, a Sanha, a Ira,

e em todos os rostos ardiam as brasas

de ódio, de luxúria, de infâmia e mentira.

Irmãos a irmãos enfrentavam em guerra

perdiam os fracos, ganhavam os maus,

fêmea e macho eram cão e cadela,

e num belo dia espancaram-me a paus.

 

Me viram humilde, eu lambia a mão

e os pés. As seguia a todas as leis sagradas,

todo e qualquer animal era meu irmão:

irmãos os homens, irmãs as vacas,

irmãs as estrelas e cada camaleão.

E assim, me espancaram e me jogaram fora.

E seu riso foi como uma água fervente,

e em minhas entranhas reviveu a fera,

e me senti ali lobo mau de repente;

mas sempre melhor que essa cruel gente.

E recomecei a lutar aqui,

a me defender e a me alimentar.

Como faz o urso, e como o javali,

que para viver precisam matar.

Deixe-me no monte, deixe-me no risco,

deixe-me existir em liberdade,

vá a teu convento, meu irmão Francisco,

siga teu caminho e tua santidade.

 

O santo de Assis não lhe disse nada.

Observou-lhe com uma profunda olhada,

e com lágrimas e com desconsolos partiu,

e falou ao Deus eterno com seu coração.

O vento do bosque levou sua oração,

que era: “Pai nosso, que estais no céu…”

 

 

 

 

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Bruno Nogueira é um tradutor e escritor mineiro, e procede à publicação de contos por aí, para posteriormente ajuntá-los numa coletânea. E-mail: bsnoguera@gmail.com

 




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