Naufrágio, poesia e tradução


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Se a tradução literária é a arte de naufragar com dignidade e nobreza – e sobreviver ao mar profundo, aos sabores e dissabores corsários, o certo é que de sua navegação depende boa parte dos ventos do processo cultural, dos que promovem passagens, diálogos e tesouros, que antes haviam de estar irremediavelmente perdidos. Uma aposta de abertura e finitude, onde a tessitura poética não é mero acidente, mas um apelo profundo que a demanda de um texto deve guardar e transmitir em formas infinitas, com seus mapas incertos e ilhas distantes. Trata-se mesmo de uma rede de coisas sobrepostas, de palavras que descansam umas sobre as outras, de uma teia de fenômenos – levados a uma fonte incomparável de possibilidades que nascem como dunas levadas pela ação dos ventos.

No entanto, essa rede de inúmeros acenos, esse reclamo de possibilidades intermináveis dão ao horizonte um saber infinito e às vezes certa nostalgia real da coisa. Apesar dos naufrágios de grande beleza – que podiam evocar uma história trágico-marítima da tradução, ou então uma perspectiva quinto-imperial da tradução, quando um Sebastião-Texto pudesse regressar de um infinito sempre adiado – apesar disso, aqueles naufrágios não apagaram o desejo de me pôr a salvo das águas – tanto quanto possível. Mas uma tentativa de terra, sabendo e sofrendo, e celebrando, e esquecendo que a poesia não é mais que um laivo – a tentativa de dizer a labareda através da cinza.

Mas será preciso recordar a presença, a memória do fogo na cinza?

Isso foi quando decidi pôr fim aos meus dias. Ou seja, quando o tradutor que nunca existiu em estado puro, como coisa em si, foi assassinado pelo poeta, que passou a administrar o profundo e a superfície de seu mediterrâneo. Mandei-me uma carta – de condição póstuma, dizendo:

“Declaro para os devidos fins, que acabo de morrer como tradutor e que não ressuscitarei para vestir de português e de poesia os poemas de outras plagas e os romances complexos deste mundo. Peço que não guarde saudades. Que me esqueça de uma vez por todas. – Never More!”.

Foi uma espécie de manobra psíquica (fortemente marcada por Brás Cubas), de me livrar não tanto dele, mas de sua tirania exclusiva, e de uma visão que nosso ambiente cultural, tão vivisseccionado, costuma ter do risco literário – para usar o termo de Maurice Blanchot – de que poetas não traduzem e de que tradutores não fazem poesia. Como se as duas atitudes fossem inimigas. Tentei demonstrar o contrário no texto “Tradução e alquimia”, onde eram sugeridos outros caminhos: poeta e tradutor se alimentavam das suas diferenças, como num laboratório alquímico.

Cada linha de Umberto Eco ou do Pseudo-Dionísio sempre mereceram não apenas o necessário tratamento científico, mas a sua sinergia poética. Não podia abrir mão disso, pois que não dispunha de duas naturezas, mas de uma, apenas, embora multívoca e aberta – com seus fantasmas e missivas póstumas, tal como a carta acima, onde coincidem remetente e destinatário. O que muda é o endereço, não as personagens em questão.

Meu pensamento seguia esse fluxo, quando me veio, inesperada, uma carta de Curt Meyer-Clason com poemas de Alma Vênus, traduzidos para o alemão. Algo não entrópico acontecia: remetente e destinatário começavam a divergir. Tesouros eram transportados de ilhas distantes. Naufrágios. Portulanos. Desenhava-se um diálogo de nobre impressão.

Deparei-me com o poema “Reparação do abismo”, onde procurei dizer:

No dorso
luminoso
da manhã

procuro

o espólio
de teu canto

e os nomes
alusivos
do segredo…

…………………………..

procuro
nas alturas
um resquício

do bem supremo
e grave
que perdi

……………………………

procuro
no sabor
das outras línguas

o verbo
escuro
de tamanha ausência

………………………..

e assim
procuro a luz
que me confunde

e segue
essa procura
a procurar-me

A tradução congenial de Curt Meyer-Clason diz:

Auf dem leuchtenden
Rücken
des Morgens

suche ich

den Nachlass
deines Gesangs

und die betreffenden
Namen
des Geheimnisses…

…………………………

öhen
eine Spur

des Höchsten
und wichtigsten Guten
das ich verlor

…………………..

ich suche
im Geschmack
der anderen Sprachen

das dunkle
Zeitwort
solch grosser Abwesenheit

…………………………..

und so
suche ich das Licht
das mich verwirrt

und diese Suche
fortsetzt
mich zu suchen

Percebi então que os ventos do diálogo – quase ausentes para as navegações culturais de nossos dias – sopravam aqui com tamanha força, que o papel do tradutor e do poeta deixavam de ocupar um modo de exclusão. E que o seu contrário seria possível. E que o Pirata e o Capitão, o Naufrágio e a Terra Firme podiam e deviam ocupar um mesmo espaço e atitude.

Dediquei – portanto – um poema em alemão a Curt Meyer-Clason, intitulado “Himmel” (Céu) – atualmente no livro Sphera. Essa homenagem se resolve no elogio de duas cidades. Duas línguas. E pátrias. Todas sob o mesmo céu da literatura. E duas presenças vivas: do lado luso-brasileiro, Camões: suas cidades e lágrimas, que formam um rio tão vasto, capaz de atingir o Grande Sertão (maravilhosamente traduzidos por Curt); do lado alemão, Hölderlin e a ilha de Patmos, além de uma citação indireta de Trakl – em modos imperceptíveis.

Der Wortfluss und das Helle Wasser des Denkens – Zwei Sprachen und Ihre Flügel: – Die alt-geträumte Babel, Die neu- gegründete Sion – Und derselbe Wortfluss atmet die Entfernung:- Die Tränen von Camões und die Luft der Sertões – (das Erdgeschriebenewasser!) – Der Abgrund und die schwin-delnde Rettung und Gefahr – Das erste Wort des Himmels – Das ungeborene Antlitz – Wasser für deinen Tiefsemantisch -Garten – wo die Uardi Rosa strahlt – Ein Himmel und zwei Länder – Ein Himmel aus dem neuen Gestirne blühen

Em tradução quase literal, sem aliterações e demais recursos que inventei no original diria mais ou menos o seguinte:

O rio-palavra e as águas claras do pensamento – Duas línguas e suas asas: – A antiga entressonhada Babel e a nova entretecida Sião – E o mesmo rio-palavra respira essas distâncias: as lágrimas de Camões e a brisa dos Sertões (água escrita de terra!) – O abismo e a vertigem do riso e do socorro… – O verbo celeste – E o rosto inascido… – Água para o teu fundo semântico jardim, onde brilha a Rosa Uardi… – Um Céu e duas pátrias – Um Céu em que florescem estrelas novas.

Uma carta para o futuro e sem um destinatário preciso. Ó viva Poesia!

 

 

 

[Texto publicado na parceira Revista Agulha]

 

 

 

 

 

 

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Marco Lucchesi (Brasil, 1963). Poeta, ensaísta e tradutor. Autor de livros como Bizâncio (1999), O sorriso do caos (2000), e Sphera (2004), entre outros. Traduziu obras de Umberto Eco, Vico e Primo Levi . E-mail: marcolucchesi@terra.com.br.




Comentários (2 comentários)

  1. Ana Lucia Vasconcelos, Muito interessante esta reflexão do Marco Lucchesi sobre ser poeta e tradutor e de como ele pretendeu um dia deixar de ser tradutor para ser apenas poeta e de como não conseguiu pela chegada inesperada de um poema seu traduzido por um poeta alemão traduzido por ele.Beleza!!!!
    4 julho, 2012 as 16:46
  2. CHICO LOPES, Marco Luchesi, sempre te considerei um dos maiores poetas deste país. Trocamos breves e-mails e um dia nos perdemos de vista. Mas, sempre que te leio (leio pouca poesia), acho muito bela a tua navegação literária.
    4 julho, 2012 as 21:48

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