Paisagem marítima


 

I

E eu que amava o sonho dos pássaros,
dizia as vozes imprevisíveis
que dormiam no mar:

“Como posso sonhar,
se a exatidão em que navegam as aves
é maior que a própria vida?”

E as sombras do silêncio repetiam:

“É preciso cantar para invadir o segredo”.

 

 

II

O silêncio invade
as rotas da indagação.

Existo?

E as flautas do mar recobram o olvido.

 

.

III

Imagino através das cítaras.
Ouço pelo esquecimento.

Levanto.

Respiro.

Sei que o mundo é imenso.

 

 

V

Colossal angústia
da muda serpente
que passa rente
à inexistência.

O inefável labirinto absoluto
está em tudo.

A essência é o enigma,

e a morte toca as margens
com dedos surdos.

Somos o estigma do vento
na estiagem do infinito.

 

.

NOTURNO

Nos estreitos breves
a arte íngreme
de ser,
frente às faces do mundo.

A margens se re-
dobram nas entranhas das luas.

As barcas sonham a distância das flautas.

Fendido ao tempo feito
um canal,
nos orifícios cegos do fôlego,
basta
aquilo que arrefece.

A inocência do mar submerge as cítaras.

 

 

.

A Carlos Drummond de Andrade

.

Todo abismo está no ato,
sonhou o cantor do sono.

O mundo suporta teus ombros,
e eles não cabem nas mãos de um menino.

O breve é vasto,
diz o bailarino.

E não tenho dedos para tecer
dentro do corpo
os estigmas do vento,
a mudez das luas.

Vivemos da fome, da fuga,
do exílio.

O resto é a bruma
que resta do impossível.

 

.

(Sem Título)

.

A menina tem medo.

O mar invadirá as casas.

O céu engolirá o mundo.

A terra engolirá os homens

Mortos de fome.

 

Do Sol vem a luz

E o calor que esquentam seu corpo.

O mar bate em suas costas pequenas.

Por que o medo menina?

 

Brinca.

O calculo é irmão da angustia

E tece esse poema.

 

Brinca apenas.

Deixa a agonia para mim.

 

 

.

(Sem Título)

.

João era homem do mar. Pouco a dizer. Enfrentava marés. Pescava. Morreu com um tiro no peito, sobre os rochedos. Encontrado na ponta da praia. Pele fina, enrugada pelas águas. Nada foi dito. Ninguém lamentou. João era incógnito como o mar, quieto como o mar, impenetrável como seus segredos mais longínquos. Ninguém sabia quem era João. Ninguém sabe o que é o mar. Alguns, às vezes, se perguntam; João teria existido ? Tão calado, tão discreto, quase nulo. O mar nunca responde, apenas suspende as barcas. Ninguém sabe o nome oculto das águas. Ninguém sabe nada. Nos mercados fala-se muito. A vida continua. O mar não diz nada. A barca flutua.

 

 

 

Interiormente era uma flecha que morria

.
Interiormente era uma flecha que morria.
Uma flecha que nascera agora, maravilhosa dentro da carne.
Uma flecha que sabia cantar luas enlouquecidas,
da a boca ao sexo pendendo
tanto.

Tanto interiormente essa flecha que um trajeto alucinante,
muito antigo, subia até o cú porque sondava até o nascimento
e almejava as margens fugitivas.

Uma flecha tão lúcida nos bosques do corpo
que supunha o ser ter uma massa alagada com campos inexistentes,
onde uma mulher se deita sobre todas idades do mundo.

Uma flecha violeta dormindo
pelos anos e anos dentro da música,
dentro do poeta sangrando.
Sangrando flores pelos ouvidos
aos pés, enlouquecendo terrivelmente.
A flecha amando em sua boca.
(A lucidez da flecha invadindo os poros da musa).

Tanto inexistia como era uma mulher. A flecha
ressurreta nas cores do ser eu via.
Uma vez vi a flecha mudamente migrando
no violeta das margens fugitivas, dentro do ser.
Flecha raríssima como pedra louca, que cobre e desvela-se.

Tão interiormente nascera, sondava e morria.
Girassol sombrio contra o ser-não ser. Sou,
mas não a flecha dentro de mim.
.

Relato

.
Deste tempo em que estamos
(de onde escrevo este relato),
uns dizem o fim de uma era,
outros, o início de um fraternal estágio.
Eu bebo meu chá.

Sou do tamanho da minha janela
e nela cabe até o mar.

Quando os cargueiros somem no horizonte
deixam de existir aos meus olhos carpinteiros.
Talho o mundo a minha medida.
Usei amores, naufrágios, despedidas,
e já não eram sentimentos,
eram versos.

Leitores do futuro
desculpem a falta de decoro,
falo de um tempo meio cego,
meio caolho.
Sei que Camões via só com um olho.
Pessoa via com oito.
E eu, com três, vejo por um vidro embaçado,
um tanto roto.

De minha janela vejo comícios,
revoluções. Lá embaixo gritam muito,
todos sabem de tudo.
Falam em recriar a escrita,
reverter o status.
Mas além do mar,
do mar sem fim,
vejo deuses e mitos antigos,
seus nomes ainda intactos.

Então meus olhos navegam,
conquistam novas terras,
alçam guerras,
cantam presságios.

E finalmente se apequenam,
como gota de sal
do imenso mar de Portugal,
em uma síntese impossível.

Ó mundo antigo, nós te recriaremos!

 

 

 

Paisagem Marítima

 

“Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular”

T. S. Elliot

I

Os sudários do Sol eunuco
fertilizam as águas
das sombras profanadas
pela luz do imenso declínio.

O esplendido teatro interior
nos saltos transparentes da paisagem.

O grito agônico da treva
no instante do enigma,
cortado pelo canto infinito de uma gaivota.

No cais
o baile emaranhado de redes e pescados
sacraliza a idade incongruente do esquecimento,
mesmo que os Salmos da manhã
desvelem a dobra do inferno
nos cabelos das mulheres loucas.

Enquanto a areia movediça da visão
joga seus dardos
ao redor do arco das cotovias.

No vagar arcaico das crianças na areia,
no tombo algébrico e eterno dos peixes,
o mais perverso sacrilégio,
enraizado no vento,
torna-se música
tocada pelos dedos
de infindáveis labirintos.

Um entre-
ato de ressacas
no nascimento continuo do mundo.

Parte a caravela
rente ao sono profundo.
.

.
II

O mar tem o sexo lançado
contra o ar zodíaco dos marinheiros.

As cabeças,
nas línguas das marés,
batem nas metades
remendadas pela treva,
pelo anjo infecundo do sono.

O anzol faísca a esfinge solar
no seio do vento.

Os sepulcros do céu
pendem cegamente
sobre as ondas infindáveis,
suplicantes.

Só a morte escala,
com mãos ensurdecidas,
a criança inaugural,
o assombro maculado.

Mergulhado nessa treva inominável,
o espetáculo sufocante
da meditação marítima.

Diante da lua, diante do vício.
Até as águas se esgotarem em segredo,
na idade inimaginável do silêncio.

 

.

(sem título)

 

Um poeta que encontrasse as palavras puramente.

Migrando através de cidades diria,

por exemplo: a casa é rosa, sua boca azul,

seu ânus (o céu) é da cor das seivas invisíveis.

 

As palavras seriam alegria nas mãos do poeta.

 

Por exemplo: casa roxo festa ilimitado lodo estrela dançou lua.

Ou seja, tudo.

 

Adentraria as cidades e elevaria tudo.

Gatos raptos vestido de moça o moreno da pele

notas de jazz astros invadindo o escuro

a cigarra trama atrás das luas oblíquas notas colidem.

 

Um poeta assim bem antigo.

 

 

 

 

.

[Desenho by Felipe Stefani]

 

 

 

 

 

.

Felipe Stefani é poeta e artista plástico. Nasceu em São Paulo em 1975. Tem os desenhos publicados no site www.pbase.com/sodesenho . Ilustrador, já ilustrou muitos livros de outros escritores, e também seus dois livros de poemas já lançados: “O Corpo Possível” (2008), pelo coletivo Dulcinéia Catadora e “Verso Para Outro Sentido” (2010), pela Escrituras Editora. Prefere que sua arte fale por si mesma. Escreve também em seu blog: www.cultuar.blogspot.com E-mail: felipe.stefani@uol.com.br




Comentários (3 comentários)

  1. Sandra Lagua, Belo, muito belo, nos leva para bem longe. Parabéns poeta Felipe.Conheço seus versos, mas eles sempre me surpreendem, emocionam e fazem voar minha alma.
    14 novembro, 2012 as 14:49
  2. Sandra Lagua, Belo, muito belo. Parabéns poeta Felipe. Conheço eus versos, mas eles sempre me surpreendem e fazem minha a alma voar longe, no tempo e no espaço.
    14 novembro, 2012 as 14:52
  3. Marcelo Ariel, Um poeta assim bem antigo e muito bom, seus versos me transmitem uma nítida idéia da etérea leveza da experiência, mais um belo livro está para nascer?
    14 novembro, 2012 as 17:56

Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook