Poesia angolana
O poeta e jornalista angolano João Melo publicou este ano no Brasil, com a editora Urutau, o livro de poemas Diário do Medo.
Em tempo de pandemia e de novos e velhos ódios acirrados, a poesia de João Melo vem confirmar a necessidade que todos temos de ler e viver a poesia. A necessidade que os povos têm de ouvir seus poetas e antenas da raça.
[…]
Toda a poesia
aparentemente simples
e desesperada
é radical e necessária…
Afinal das contas, o que será a poesia, pergunta o autor.
[…]
Uma visão?
Ou simplesmente uma narrativa corrompida
pela absoluta impossibilidade de
salvação e, por isso,
ávida
de auto – exibicionismo inútil: rimas
fosforescentes, quebras de ritmo
sem sentido, espaços
impassíveis como espantalhos
para assustar pássaros?
João Melo, na esteira de Luandino Vieira, utiliza-se da língua portuguesa como um espólio de guerra. A língua que também a nós, brasileiros, é um butim soerguido com orgulho e ânsia efetiva e afetiva de comunicação. Além disso, como poetas, a erguemos como objetos e obras artísticas a iluminar nosso futuro comum.
Ele nos diz:
[…]
A libertação da língua portuguesa
foi gerada nos porões
dos navios negreiros
pelos homens sofridos que,
estranhamente,
nunca deixaram de cantar,
em todas as línguas que conheciam
ou criaram
durante a tenebrosa travessia
do mar sem fim.
Por mais condenados da Terra que sejamos, enterrados vivos ou mortos por descaso ou arquitetada necropolítica, é preciso não desistir, diz o poeta. Ou // talvez // seja preciso desistir a tempo.
Depois da leitura dos poemas, algo se agarra à nossa consciência. Uma pergunta monocórdia e feroz: Onde foi que nós erramos?
Na apresentação do livro, Debora Ribeiro Rendelli nos alerta sobre Diário do Medo:
Neste livro, há sempre algo saltando das páginas, alguma dor dele, minha, tua, secular, que nos afunda. Mesmo quando Melo trada de amor, não é um amor qualquer, mas sim, como disse Heiner Müller em seu poema, das matemáticas que resultam em nada, o deus-zero das hienas.
Poucos conseguem pôr em palavras as angústias, os anseios e os ódios compartilhados sem cair nas repetições cotidianas, lamentadas e repetidas incessantemente. Melo faz. Provoca todos os dias feios e cruéis que já vivemos.
O tempo, apesar de vil e traiçoeiro, resume-se ao presente histórico nutrido pelos homens. A ação humana é o motor inconteste da história. A poesia pode, deve ser salvadora.
O dia em que o mundo mudou
Um homem colocou amorosamente,
disse ele,
ou talvez o tenha apenas imaginado,
o seu ossudo e másculo joelho
no pescoço de outro homem,
para, digamos assim,
pô-lo no seu lugar,
ou seja,
enquadrá-lo historicamente
O gesto indiferente
e orgulhoso
foi transmitido
por todas as veias abertas
de todos os homens e mulheres
do planeta,
conectados
pelo mesmo espanto, a mesma dor,
a mesma raiva inconsútil
Num relance,
todo o tempo da História
desfez-se e espalhou-se
pelos quatro pontos cardeais
como fragmentos de uma bomba adormecida,
suja e contudo
translúcida
Então, de repente,
o mundo mudou:
crimes, verdades, monumentos
rolaram pelas praças públicas
perseguidas por multidões
que dançavam e cantavam,
anunciando manhãs desconhecidas
… … … … … … … … … … … … … … … … … …
Isso aconteceu mesmo
ou amanhã acordaremos todos
com a cabeça na mesma almofada
puída, ensanguentada e acomodada
da História?
***
Para adquirir o livro, clique aqui: editora Urutau.
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No sábado, dia 11/12, dialogaremos com João Melo na Confraria da Palavra. Fique ligado!
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João Melo estudou jornalismo e fez o mestrado em Comunicação em Cultura no Rio de Janeiro. Foi publicitário, professor universitário, parlamentar (1992-2017) e ministro (2017-2019). Membro fundador da União de Escritores Angolanos e da Academia Angola de Literatura e Ciências Sociais, foi correspondente de imprensa no Brasil de 1984 a 1992. Em 1992, após a abertura política e econômica em Angola, foi um dos fundadores do primeiro jornal angolano independente, o Correio da Semana. Em 2006, criou e dirigiu a revista África 21, especializada em temas africanos. Publicou 21 livros, entre poesia, contos e ensaios.

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