Rockabullying – a saga de um poeta


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Glauco organizou seus 5.555 sonetos (‘acrescidos de índices e notas’, como ele diz) para uma edição em e-book ainda sem data para publicação. O título será SONNETTUDO ou OPERA INSOMNIA. Enquanto ela não chega, você pode degustar alguns dos sonetos de sua ópera.

 

 

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#3301 ROCKABULLYING (I) [26/4/2010]

Fui victima de bullying e planejo
depor sobre esse evento malfazejo.

Tentei narrar, em prosa e verso, mas
apenas de passagem fil-o e não
do jeito que eu queria, as scenas más.

“Que jeito?” Detalhando tempo e espaço
num typo de romance joyceano,
que faça passar lento um mez, um anno,
até que eu desabbafe, passo a passo.

“Por que não conseguiu?” Me faltou gaz
p’ra tanto canto em texto de ficção:
difficil é lembrar, voltar attraz.

“E agora? Está disposto?” Um novo ensejo
é dar-lhe esta entrevista, ao que antevejo.

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#3302 ROCKABULLYING (II) [26/4/2010]

“Onde a difficuldade? É doloroso?
Ou falta só memoria ao ‘eu’ Mattoso?”

De facto, foi traumatico, mas nada
me custa relembrar. O que complica
é a mente do poeta, hallucinada.

“Complica como?” Accabo mixturando
veridico e phantastico: à punheta
da epocha se somma o que intrometta
a penna do escriptor, e eu tudo expando.

Si eu desexaggerasse um pouco, em cada
capitulo, o occorrido, aquella rica
historia ficaria bem contada.

“Então vamos tentar! Serei curioso!”
Pois seja! E eu serei serio até no gozo.

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#3303 ROCKABULLYING (III) [26/4/2010]

“Primeiro, o tempo certo, inicio e fim.
Como é que começou, e coisa assim.”

Eu tinha nove e a serie era a terceira.
Só classe masculina, e a professora
achava-me o melhor da turma inteira.

Os outros me invejavam, por um lado;
por outro, bem sabiam que eu só era
melhor no que a leitura recupera.
No resto, um semicego está alleijado.

Na rua, em qualquer jogo ou brincadeira,
levava eu desvantagem. Si não fora
o estudo, quem não fede alli não cheira.

Mais velhos que o philosopho mirim,
impunham meus collegas medo em mim.

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#3304 ROCKABULLYING (IV) [26/4/2010]

“Você não tinha amigos? Mais alguem
que fosse, talvez, alvo do desdem?”

Ninguem! Peripheria brava, aquella:
emquanto num sobrado eu residia,
em volta, alem do matto, só favella…

Eu era, tambem, filho de proleta,
mas nosso sobradinho geminado,
alli, cheirava a luxo, e fui chamado
de “rico” pela turma analphabeta.

“Na certa isso aggravou a raiva della,
não é? Não foi apenas a myopia
a causa que esse assedio nos revela…”

Sem duvida! Si eu fosse são, porem,
tão facil não me expunha a ser refem!

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#3305 ROCKABULLYING (V) [26/4/2010] (*)

“Sem rede virtual nem cellular,
que typo de aggressão tinha logar?”

Havia disciplina, então: na frente
da nossa professora, um “repetente”   (*)
daquelles me tractava normalmente.

Na hora do recreio ou na sahida,
comtudo, de “cegueta” e “veadinho”
xingavam-me e, debaixo de escarninho
sorriso, alguem sozinho não revida.

Às vezes, a rasteira, de repente,
me desequilibrava: é duro a gente   (*)
sentir-se, contra os chutes, impotente…

Vexado, eu não tardava a levantar,
safando-me da eschola para o lar.

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#3306 ROCKABULLYING (VI) [26/4/2010]

“Seus paes sabiam disso? Não achava
você que assedio assim cresce e se aggrava?”

Admeacei contar ao director,
à minha mãe, mas elles, em resposta,
zombavam: “Conta, conta, por favor!”

Sujar-me no uniforme eu ja temia,
sabendo que mamãe me encher o sacco
iria… alem dum outro poncto fracco:
meus oculos, depois da cirurgia.

Sem lentes, tudo aquillo que me impor
quizessem, poderiam: quem não gosta
de ver um cego morto de pavor?

Pensei: será que à septima ou à oitava
eu chego illeso, ou mando o estudo à fava?

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#3307 ROCKABULLYING (VII) [26/4/2010]

“Qual fora a cirurgia?” De glaucoma.
“São muitos os cuidados que se toma?”

Privei-me dos esportes e da pista
de dansa. Nem siquer no quarteirão
coragem tive para ser cyclista.

Somente na leitura eu conseguia
refugio, da chartilha até o gibi:
ja bem precocemente percebi
que aquillo eu perderia, qualquer dia.

E, emquanto fraquejava a minha vista,
um thema ganhou força, desde então,
razão de me tornar um fetichista:

O pé, como o meu proprio, cujo aroma
me excita e meu desejo tange e doma.

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#3308 ROCKABULLYING (VIII) [26/4/2010]

“Mas, antes dos abusos, ja você
sabia ser podolatra? Por que?”

Brinquei, emquanto tinha uns seis ou cinco
anninhos, com o filho da vizinha
(e agora, mentalmente, ainda brinco):

Luctavamos, brincando de “inimigo”,
bandidos sem mocinho e sem pudor,
e, sendo elle mais forte, ousava pôr
o pé sobre meu peito, a sós commigo.

Até no rosto o punha e eu, com affinco,
fingia resistir. A gente tinha
limites, claro: a tara tem seu trinco.

Talvez o pé na cara a idéa dê
daquillo que, hoje, almeja quem não vê.

 

 

 

 

 

 

 

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Glauco Mattoso (paulistano de 1951) é poeta, ficcionista e ensaísta, autor de mais de trinta títulos, entre os quais as antologias “VÍCIOS PERVERSOS: CONTOS ACONTECIDOS” e “POESIA DIGESTA: 1974-2004″, além dos romances “MANUAL DO PODÓLATRA AMADOR: AVENTURAS & LEITURAS DE UM TARADO POR PÉS” e “A PLANTA DA DONZELA”. E-mail:mattosog@gmail.com




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