Quatro poemas
Por Claudio Daniel
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2019
Para Bao Dei
Caminho
de um escuro
a outra treva
no esqueleto da noite.
Palavras são corvos invisíveis.
Tudo é silêncio
num tempo de desaparições.
Apenas no mercado negro
da memória
revisito as cenas
da triste comédia.
O relógio é mudo
as horas abolidas.
Vem, cavalo negro
da insanidade.
Borra o mapa de mim mesmo.
Listas negras
silêncio imposto
execuções nos campos
execuções nas ruas.
Jornais mentem como juízes.
Esta é a rosa dos corvos
companheiro Bao Dei.
Este é o reflexo sujo
da faca nas águas do rio.
Que venham os carrascos.
Que venham os açougueiros.
Nunca deixarei de rebelar-me
nem que seja neste poema
pesado como um navio.
Nunca deixarei de amar o meu amor.
Nesta noite imensa como um sanatório
soldados removem seus rostos
e mostram-se nadas de nada.
2019
***
BOITATÁ
fogo que mora nas águas do rio —
fogo que já foi menino
e dança nas águas do rio
fogo que dança
na lama do mangue
e mora nas águas do rio
fogo que dança
no fumos do mato
e mora nas águas do rio
ele é a cobra-menino
come-olhos-do-mundéu
protege dona cotia
dona anta, seu mutum
dona paca, seu teju
protege dona onça
seu tatu, seu jaós, seu uru
cuida de todos os bichos
todos os bichos, todos
os bichos da mata
não atice a íris-fogaréu
tição-azul-da-luz-do-lume
não irrite os escuros
do relvado, seu branco
ou ele comerá teu olho
aquele que é fogo-serpente
come-olhos-do-mundéu
osso-branco-escarra-tripa-
olho-brenha-escarcéu.
passarinho estava aqui?
passarinho caiu no chão
e virou pedra.
2018
***
MATINTA PEREIRA
todas as flores
têm olhos
na noite funda
da mata
todas as flores
são luas
na noite funda
da mata
todas as flores
espiam
na noite funda
da mata…
— lá vem,
lá vem ela vindo!
todas as luas
são olhos
na noite funda
da mata
todas as flores
vigiam
na noite funda
da mata…
— lá vem,
lá vem ela vindo!
a velha-da-noite
negra-oh-negra!
coruja ou corvo
rasga-mortalha!
— cê viu, ouviu?
não viu, não ouviu?
seu assobio, fiu-
fiu-de pavor, sim,
fio-de-pavor!
— lá vem,
lá vem ela vindo!
arrulho-assobio
rompe-esterco
rompe-navalha!
— lá vem,
lá vem ela vindo,
dança-dançando
com uma só perna!
— lá vem,
lá vem ela vindo,
zomba-zombando
com uma só perna!
ela quer fumo
todos os fumos
fumo ou peixe
fumo ou café
fumo ou cachaça!
— lá vem,
lá vem ela vindo,
— cê viu, ouviu?
não viu, não ouviu?
seu assobio, fiu-
fiu-de pavor, sim,
fio-de-pavor!
arrulho-assobio
de medo-pavor!
manhã de amanhã
dê fumo a matinta
a velha-oh-velha
com asas de corvo
manhã de amanhã
dê fumo a matinta,
velha-treva-trevosa!
matita, dona coruja
gritos de gralha!
se ela disser:
“quem quer?”
“quem quer?”,
maninha,
nada responda!
se ela disser:
“quem quer?”
“quem quer?”
maninha,
nada responda!
“eu quero! eu quero!”
— disse a moça
“eu quero! eu quero!”
— disse a moça
antes de virar velha.
2018
***
LABORATÓRIO DO OUVIDO
Para Dziga-Vertov[1]
relampagueia
cirro-borrifo
nas ramagens //
caule requeimado
azul-ferrete
cemitério da lua //
espectrar lupino
arroxeado
assombra-cães //
misterioso
repactuado
escarabídeo //
formigas
avançam
no esterco //
lunares
arrefecem
nos buritis //
tentaculoso
remorde-se
enigma-de-ecos //
ventos desfolham
flores vermelhas
de cupuaçu //
igarapés
olhos-centúrias
medusa-das-águas //
escoiceadas
despossuídas
de tudo
2014
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[1] Poema pensado como se fosse um breve documentário de Dziga-Vertov (“cine-olho”) sobre a floresta amazônica. Publicado inicialmente na plaquete Cadernos bestivais (volume II), foi incluído neste volume pela afinidade temática.
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Claudio Daniel é poeta, professor e crítico literário. Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), defendeu a tese “A recepção da poesia japonesa em Portugal”. Curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo entre 2010 e 2014. Colaborador da revista CULT. Editor da Zunái, Revista de Poesia e Debates. Publicou os livros de poesia Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001), Figuras metálicas (2005), Fera bifronte (2009), Letra negra (2010), Cores para cegos (2012), Esqueletos do nunca (2015), Livro de orikis (2015), Portão 7 (2018), Cadernos bestiais – breviário da tragédia brasileira (2018) e o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo (2004. Como tradutor, publicou a antologia Jardim de camaleões, a poesia neobarroca na América Latina (2004), entre outros títulos. Em Portugal, publicou a antologia poética pessoal Escrito em Osso.
13 setembro, 2019 as 12:25