Poesia para o fim de semana


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A poesia é que nos salva…
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Tenho para mim que sim. Mormente quando o Poeta se chama António Salvado.

Eu creio que os confrades concordarão, ademais de o saberem (sentirem?). Mas nunca será de mais sublinhá-lo.

Em setenta e picos, por razões muito próprias, tive ensejo de em Paris, num dos cafés emblemáticos daquela cidade, estar um bom pedaço (levado por confrades que sabiam juntar o conhecimento material ao espiritual) a conversar com um dos homens que se iria tornar uma lenda no século transacto… Falou-se de muita coisa e, de entre elas, de arte nas suas diversas vertentes.

Depois,levado por dois desses…cavaleiros, almocei num bistrot de ali ao pé (tripas à moda de Caen…parecidas com as do Porto mas com um travo peculiar e específico). No final, para acompanhar as maçãs de Sermoncelle, um petit Napoléon para rebater. E foi então que um deles, tirando-se de seus cuidados, me contou uma pequena estória que muitos anos mais tarde eu encontraria citada, ainda que de modo mais ligeiro, num livro doado pelo confrère Cesariny: sendo membro destacado da Resistencia, o tal nosso anterior conviva foi a dada altura capturado pelos nazis e encafuado em Neue Bremme, um dos mais sinistros campos de concentração do universo hitleriano. Cerca de três meses depois de lá chegar tinha de se apresentar, em certos dias marcados de antemão, numa dependencia específica para ser espancado, o que era feito com requintes. Ora acontece que ele, assim que entrava, antes de receber o primeiro murro ou bofetão, punha-se a tocar por dentro da cabeça trechos de música, dos muitos concertos a que assistira. Umas vezes era Bach, outras Schubert, outras mesmo Beethoven ou Chopin…

“Foi isso, conta ele no tal livro (e aqui uma pequena maldade minha: não digo quem era essa lenda humana, pesquisem um pouco, ora toma…!) que me ajudou a resistir. Nunca conseguiram quebrar-me”.

Não sei se essa receita serviria para mim. O que posso dizer é que em alturas dolorosas da minha existência, a frequentação da grande poesia, nacional e estrangeira, me ajudou a ultrapasar esses tempos enegrecidos.

E, em todo o caso, em qualquer período difícil a arte é uma boa companheira. Como dizia Rilke, “um verso, um trecho de pintura ou uma melodia podem iluminar o nosso céu interior”.

Então, para um pouco mais de claridade no fim de semana que aí temos à porta, hoje proponho-vos a voz límpida e fremente, ainda que serena, de António Salvado.

Que tudo vos siga correndo bem é o que vos deseja com estima o

 

ns (por e-mail)

 

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António Salvado

 

Há, neste acervo, um verso que a meu ver descreve com exactidão o mundo da escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”, diz ele a dada altura no poema dedicado a Claudio Rodriguez. (Claudio Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas europeus onde a natureza se confrontou decisivamente com os sons duma modernidade assumida, reencaminhada nos troços vicinais de um continente que não perdera de vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a tentar reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).

Poeta da natureza, António Salvado? Sim, mas também da linguagem que a certifica, perpassa e ultrapassa. Conhecedor dos clássicos, sempre soube viajar – como fica patente nesta pequena antologia – pela comovida desconstrução da escrita.

E, assim, é um contemporâneo tanto dos que se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo.

Por último e ainda no continente da Poesia, gostaria de relevar o trabalho incontornável de AS enquanto tradutor – e dou ao termo trabalho, aqui, o seu exacto perfil e conteúdo não só de labor mas de encantamento partilhável, uma vez que é disso que se trata: ser António Salvado, como a meu ver tem sido, o poeta do seu poeta vertido em português sem jaça e com o ritmo próprio e a figura de quem escreve como se em língua lusa este escrevesse.

ns

 

 

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CLAREAR AS ANSIEDADES

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Descem ao coração angústias lentas e, de repente, encanecem de medo os zumbidos carinhosos do verão, pulverizam-se os arvoredos frondosos dos aromas.

Desafogadamente, acreditei nas lisonjas e nos degelos das cercanias: o azul remanescia como fonte a correr, o horizonte sinalizava contínuas alvoradas e, pela terra, as videiras resplandeciam maduras e luzidias. Cruzei os descaminhos ignorando onde refulgia a fronteira entre a noite e o dia, padecendo assombros imprevistos, abrigos fortuitos, amparos maculados. Daí que à minha volta as ladeiras de promessas desertificassem e que nem as montanhas de exaltações tivessem fecundado a raiz por mais humilde que fosse a coesão d’esta ao húmus. A lassidez dos frutos na sua tumescência contribuiu , também, para que a revoada de certezas desterrassem as probabilidades os lances triunfantes. Permear tempos de indigência elevava, sem dúvida, relevos quase arrasados: e quando ouviria eu de novo uma flauta a tanger? Quando descortinaria no pomar as áleas verdejantes? Quando, pelo rio, haveria de correr a limpidez insaciável da água?

Que não se aguardem músicas improvisadas ou linhas de palavras balanceantes: o porvir cristaliza sem pejo as placas de xisto ou desboroa falsamente os elementos do granito… Os sulcos debuxados nas palmas das mãos iluminam idolatrias arenosas, venerações amargas.

Que refluxo de firmezas conseguiria clarear as ansiedades que me afogam o coração?

 

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EPITÁFIO PARA MINHA MÃE
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Porque sabias os caminhos

que encontrarias na viagem,

sem desaires nem labirintos

a tua vida foi a simples

maneira de atravessares

no mundo brenhas e neblinas.

 

Não precisavas de milagres

para aqueceres a tua crença:

afagos de serenidade,

os dias chegavam passavam

com a mesma limpidez quente

e mansa que a fé torna clara.

 

Desfolho rente à tua campa

os ramos de malvas: lembranças

do cálido peregrinar

das contas puras do rosário

que os dedos do amor rezaram

à espera de um céu alcançado.

“AGUARDARÁS O TEMPO…”

 

Aguardarás o tempo da vindima:

que as uvas sofram, como bem-fazeja

dádiva férvida, o calor de enlevos

que aproximar vai o verão do fim.

 

E só depois as poderás colher,

e só depois tu poderás  fremindo

esmagá-las sem dor    com a leveza

com que se beija um corpo em cio unindo-se.

 

Aguarda pois. E faz da tua espera

a certeza insuspeita de que um dia

há-de num copo rutilar o vinho –

 

e nos teus dedos    em papel modesto

fulgirá o mistério da vindima

transformado nos versos que nutriste.

 

 

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CASA DO AMOR

 

Foi nas perenes coisas que aprendi

a ser: a casa do amor cercada

de ruas que subiam junto ao fim

do céu que sempre mais se prolongava,

 

de longo mudos maternais jardins

onde as eternas flores eram lagos

de fragrância ofegante colorida

e os lagos sol em água mergulhado.

 

E nela: o pão cantado sobre a mesa,

a bilha da ternura a renascer,

a pureza do linho a dedilhar

as palavras nos lábios entoadas…

 

deito longe a saudade: permanece

a casa do amor, em mim, perene.

 

 

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“VER UM BROTO SURGIR…”

 

Ver um broto surgir entre a secura

(um fruto anunciado, ante-manhã

que ao fim da noite s’esclarece   e tão

prestes a ser o dia   que é só luz)

 

na árvore não morta   quase murcha

mas que teimou   em ganhar seiva   errante

e alçando-se    – feliz –   na cor da esp’rança

a vigorar-se no que era um tronco inútil.

 

E cobre-se de verde e ganha forma,

de surpresa em surpresa   desafia

futuras tempestades, imprevistos –

ali: como a palavra que borbota

natural   singular   silenciosa

no início um verso a construir-se.

 

 

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“E DE SORRISO EM SORRISO…”

 

E de sorriso em sorriso

isso bastou   para amarem-se:

dizendo frugais palavras

mas sonoras de sentidos.

Nas langues horas vividas

era no silêncio grave

que os seus olhos se exaltavam,

que as suas bocas bebiam.

E quando os dedos se uniram,

quando as mãos s’entrelaçaram,

a noite havia surgido

como intenção desejada.

Depois    sem rumo partiram

para o amor consumarem.

 

 

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MEDITAÇÃO

(à memória de Claudio Rodriguez)

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Dos olhos e das mãos brotam as coisas:

inocentes paisagens onde a vida

e a morte se insinuam e comprazem.

Feitas indagação, elas entregam

– mesmo longínquas – o fluir constante

do sangue atravessando o pensamento.

De há muito que o sabemos caminhando:

somente a natureza purifica os sons

da chama inviolável que destrói

enganos: uma flor desabrochada,

rapariga no curvo do distante,

calor do oiro na melancolia.

Daí, que a claridade estenda os braços

a resvalar-se à voz: e invada os veios

exaltados da pureza   e bafeje

para que ouçamos dela o sussurrar,

como um astro súbito   inesperado,

como a verdade plena de harmonia.

Em segredo, o pulsar do coração

traça novos destinos entre areia,

reconstruindo a casa à beira do abismo

solidifica a água das correntes.

Em segredo. Os olhos abrem-se mais

e as mãos, hirtas p’lo frio passageiro,

modelam ouro espaço e outro tempo

para que o canto seja eternidade.

 

 

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“UM FIO D’ÁGUA…”

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Um fio d’água foi o teu passar

tão fugidio que os meus olhos    presos

àquele movimento de surpresa

quase sem ver    mas vendo-te    ficaram.

 

Tua figura esguia meneava-se

como folhas vernais dum arvoredo

que uma brisa veloz tivesse aflado

subitamente para mais crescerem.

 

E assim cruzaste a minha solidão

sorrindo tão de leve que nem lembro

se para mim olhaste    em tal exílio.

 

Mas satisfez o que me deste    então:

que uma fonte escondida existe sempre

capaz de brotar água: seja um fio.

 

 

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“A COROA DE NÉVOA…”

 

A coroa de névoa

que sobrevoa a vila

será a porta aberta

ao começo do dia.

Permite penetrar-se

lenta    serenamente

por cores matizadas

que a coloram    também.

A pouco e pouco deixa

em pequenos fragmentos

que por ela se veja

o casario    além.

E janelas    que se abrem,

escancaradas portas:

o bulício usual

de tudo o que se move –

o repassar das gentes

trocando vãs palavras,

ou animais que arrastam

consigo iguais lamentos…

A névoa fugiu    longe,

e outra névoa começa

em diverso horizonte

d’incertezas    nublado

e cada vez mais perto:

do dia a dia as mágoas

e ninguém que as impeça.

 

 

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ANOS SE LEVA

 

Anos se leva a descobrir a pátria:

a terra onde existir   p´ra sempre a salvo,

o barro que há-de    modelar a alma,

a língua a ser sabida   a ser falada.

E que os rios e serras e que mares

e que cidades grandes    ou lugares,

que plantas  animais   vão habitar

essas paisagens virgens   a brotarem.

 

Porque o amor  — uma conquista lenta —

precisa de passado e de presente

quando constrói os elos do futuro;

 

que a pátria seja    em ânsia   toda a gente —

de mãos nas mãos   e olhos indif´erentes

a quem não queira partilhar o fruto.

 

 

 

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(Nota – Este pequeno acervo antológico foi anteriormente dado a lume na “Revista do TriploV” e na “DiVersos – revista de poesia e tradução”. Alguns destes poemas foram por mim ditos em programas radiofónicos no Brasil, França e Portugal. Finalmente, desejo muito boas melhoras ao Poeta, que se encontra doente há já algum tempo)

 

 

 

 

 

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Nicolau Saião é poeta, pintor, publicista e actor/declamador, nasceu em Monforte do Alentejo em 1946. Vive em Portalegre, Portugal. Como pintor participou em mostras de Arte Postal em diversos países (Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Austrália, Mali…), além de ter exposto individual e colectivamente em diversas localidades (Paris, Lisboa, Porto, Elvas, Tiblissi, Portalegre, Messina, Borba, Campo Maior, Sevilha…). Organizou, com Mário Cesariny e Carlos Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”, patente no Teatro de Xabregas e na Soc. Nac. de Belas Artes ( tendo traduzido diversos autores incluídos no livro-catálogo) e, com João Garção, a mostra de mail-art “O futebol”.Está representado em diversas antologias de poesia e pintura. Traduziu “Os fungos de Yuggoth” de H. P. Lovecraft e “Vestígios” de Gérard Calandre, bem como poemas avulsos de Benjamin Péret, Derek Soames, Jules Morot, Emílio A. Westphalen, Jacques Tombelle, Edward Burton, Philipe Dennis, Juan Ramón Jimenez, Philip Jose Farmer, etc. Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes” (Editorial Caminho). Outros livros: “Flauta de Pan, “Os olhares perdidos, “Assembleia geral”, “Passagem de nível”, “Os labirintos do real“ – publicados. “Cantos do deserto”(poemas relacionados com o deserto de Tabernas, Espanha), “As vozes ausentes”(crónicas e textos diversos), “As estrelas sobre a casa”(teatro), “Em nós o céu”(novela policial). E-mail: nicolau19@yahoo.com



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