Poesia em tempos de cinismo e aridez
Uma nova geração de poetas pode surgir em meio ao caldo de cultura proporcionado por oficinas literárias e cursos de formação para jovens escritores. Fenômeno recente nas letras nacionais, parecem não ter ainda exaurido seu formato. E isso é bom. Enquanto nos Estados Unidos os cursos de escrita criativa são comuns, abraçados pelas universidades e formadores de centenas de escritores e roteiristas premiados ou não, no Brasil, as oficinas e cursos sérios ainda estão restritos a poucos espaços e nem sempre baratos ou gratuitos – como os oferecidos pela Casa das Rosas e o circuito da Poiésis em São Paulo. No entanto, eles existem e continuam de forma sistemática ou esporádica: Estação das Letras, no Rio de Janeiro; Instituto Vera Cruz, em São Paulo; Academia Internacional de Cinema, em São Paulo e Rio de Janeiro; na PUCRS; entre outros menos conhecidos. E não podemos esquecer os escritores pioneiros que se dedicam há anos a esse ofício: João Silvério Trevisan, Luiz Antonio de Assis Brasil, Raimundo Carrero, Charles Kiefer, Nelson de Oliveira, Marcelino Freire.
A meu ver, estas oficinas e cursos preencheram uma lacuna deixada pelos “movimentos literários”, efetivos ou pseudos, que aglutinavam autores e postulantes em torno de uma revista, um projeto, um local de encontros, de leituras e trocas efervescentes.
Os tempos são outros, mas a troca e as leituras críticas compartilhadas são fundamentais para a formação de jovens escritores. Ler é imprescindível, mas ser lido com um olhar um pouco mais crítico é uma dádiva para o aprendizado. E continuar a escrever, reescrever, rascunhar e projetar, independente do que digam os que não são do ramo é a única lei.
Colocar o trabalho ainda em gestação na janela, antes da primeira ou segunda publicação, para que os passantes deem tapinhas ou tapões em seu bumbum, é um pré-requisito para quem pretende trilhar as sendas tortuosas e nem sempre gratificantes do fazer poético no Brasil.
Dito isso, cá está uma pequena seleta de jovens e corajosos novos poetas. Eles não pedem complacência.
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Sabe por quê?
…………………“Autobiografia não autorizada”, por Rogério Passini.
Esse jazz que pulsa no coração da cidade
O saxofonista tocava
um bebop improvisado
diante da escadaria do trem
em busca de uns trocados.
Mas só aos transeuntes
que a desciam
era possível ouvir os aplausos
cadenciados
das solas dos sapatos.
***
Entenda: nem me darei ao trabalho
Pois hoje li um poema “filé com fritas”
e quando a autora,
com a metade da minha idade,
me propôs que: “ceci n’est pas
amor de verdade”,
senti um quentinho no coração,
seguido de um sorriso,
e foi impossível, diante da alegria,
conter as lágrimas que
pelas íris desciam
(na hora e agora).
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***
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Hoje você não vai me atrapalhar
Indo para o trabalho, eu empunhei
o meu air bass e acompanhei
Ayse Hassen em todas as toadas
paulatinas que a mesma dedilhava
enquanto o público-subúrbio observava,
estupefato, a minha performance
e quando abri os olhos,
no meio da jornada,
mirei as boquiaberturas ao redor
e me senti bem.
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Marcio Fernando Campos tem 35 anos e se formou em jornalismo (embora se considere muito mais literato do que jornalista). Toca air guitar a esmo pela cidade quando está com seus fones de ouvido, considera a cerveja mais igualitária e humana do que qualquer religião do mundo e prefere Jagwar Ma a Tame Impala. E-mail: campos.marcio@gmail.com
***
Poeta em CV
não é Pessoa
nem Drummond
nem Rimbaud
é mais criança
(plutôt)
Não é atleta
atleta corre
escorre o poeta
não morre
não ensina nada
não briga
não fascina
(non plus)
não incendeia
não molha
nem floreia
não desce
não aumenta
não está na sombra
nem na luz
das coisas
(pas par tout)
não mata
nem ressuscita
ninguém
(pas ça)
não é pequeno
nem brando
nem pobre
nem fértil
não tem palavra
nem nome
nem fome
não come
não tem cor
nem corpo
nem raça
nem voz
(cá entre nós:
Será?)
pas non plus
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No meio do caminho
tem uma baleia azul
no inverno
no centro da praça
cinza
chama neve
atrai olhares
de espanto e assombro
demônio em forma de príncipe
é empalhada
totem de béla tarr
No meio do caminho
tem uma baleia azul
no verão
pelas bordas
da falsa praia
do Sena
cheira à baleia
sangra
encalhada
morta
enche o peito de dor
mas é falsa
trazida por artistas belgas
que se vingam
da hipocrisia
mudando as coisas de lugar.
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No meio do caminho
tem uma baleia azul
que me chama
prometendo tudo
vou
cego
me atirar
quando vejo
o negro do azul
o abismo do azul
quero desviar
mas é enorme
quero pular
escorrego
meu grito
sai mudo
quero fugir
é tarde
quero retornar
ela me olha
caio dentro
***
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Poema Cansado
Queria que meu poema
fosse forte
e pudesse dizer
o que não sinto
o que não penso
o que não sou.
Queria que meu poema
fosse mais além.
Quero me afastar do meu poema
a fim de que ele me toque de perto.
A palavra é maior que meu poema.
Ele
cansado
dorme na rua.
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Patrícia Cabianca Gazire é paulistana, psicanalista, cursou um ano de mestrado em criação literária na École d’Art & Université du Havre (Normandia, França) em 2014/2015; é doutoranda em Escrita Criativa na Faculdade de Letras da PUC-RS (Porto Alegre); seus escritos podem ser lidos no blog Saperlipopette, no endereço https://patriciacabiancagazire.wordpress.com/.
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“Me contrate” diziam meus olhos na foto que não anexei ao currículo. (É imoral colocar foto porque as empresas usam para checar a branquitude do candidato.)
“Contrate-me” deveria dizer a foto, para impressionar o possível patrão que entenda de pronome oblíquo. (Nunca entendi esta regra, quando penso que te amo, penso sempre que te amo, não amo-te.)
Melhor seria que a foto dissesse “Me contrate”. Para não correr o risco do contratante perceber nos meus olhos como olho as palavras; que quando eu olhava a lente da câmera de um desconhecido ao lado do Poupatempo passou pela minha cabeça que eu não gostaria que aquela foto acompanhasse minha lápide. 3×4 é tão pouco centímetro.
Minha irmã está grávida. Hoje me mostrou a imagem do bebê que tem dois centímetros e é a metade da altura da foto que eu enviaria junto ao meu currículo se não fosse imoral, se a foto não tivesse um problema de pronome, nem contasse que eu sei que a gente morre.
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Monde monde
vast monde
Si je m’apellais Drummond
ceci n’est pas un poèm.
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Carmen
linha escrita – pele do nome
onde mora meu corpo
……………………………………………………..*
Pele
linha do corpo
onde mora meu nome
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Carmen Garcia nasceu em São Paulo, 1989. Poeta, Artista Visual e Educadora. Produtora do TRANSarau e co-editora do Livro Antologia Trans. Publicações na Revista Artéria 11, Revista CTRL+Verso e Antologia Poesia Livre 2017. E-mail: carmencarmim@gmail.com
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Minha cidade sem meu nome
Os loucos distribuem verdades nos cantos das vielas foscas
roucos maconheiros se acossam nos corredores da cidadela dormitório
fuligem de Fepasa e vespas enferrujadas
A morte certa é servida em colheradas na hora do chá em dias úteis
na previsão do tempo nenhuma tormenta nenhuma seca nenhum dilúvio ou
[invasão bárbara
somente o clima estanque que entoa a lira da cidade do novo século.
Do novo século
Ladainhas ao satã engravatado com línguas de velhice dominical
doce discórdia desfilando cinturas finas deus pátria família
entre Campinas e São Paulo há uma esquálida vitrine com panópticos vendidos à
[prestação
Intacta e frígida urbe onde ninguém fica mas todos passam
latrina grande banheiro público escondida nas vísceras do meu desespero
algo em você me carcome intenso, em vida e alma
Mortalha azul cinza e dor incandescente em pequenas praças
encrava-se no fundo das minhas retinas uma Ponte Torta
concreto esturrando em pancadões de funk febre sexo flagelos
Tombo.
Caído entre suas pernas de conhaque barato e beleza difusa
cheias da fúria que se arreganham nos leitos do Japi
eu sei que sou um rabisco nos panfletos do seu amordaçado amor
Pálidas ruínas manjedouras dos bebês choramingas
à sombra de novinhas em flor que se abrem fundamental e médio
gemem, gemem, gemem sentindo-se ninfas livres de suas mães carolas
Em algum canto fumega meu dolorido amigo anjo esquizofrênico
deixado à própria sorte apagando no braço o último cigarro
mascando Risperdal com verduras agrotóxicas ao som de fraudulentas canções
[de ninar
Confinado no esôfago do seu quarto, Jundiaí, ele teve noites tresloucadas
após se empanturrar de Huxleys e Goethes, injetar num dínamo
de angústias Gracilianos e Ginsbergs e tomar porres difusos de Baudelaires e
[Nietzsches
Enquanto isso eu saía às ruas agourento camaleão albino fosforescendo na paisagem
tinindo numa consternação devoradora de botecos e padarias
bêbado na nostalgia sem ontem amanhã ou hoje ninguém nada nunca nos
[quintais da minha loja de conveniências
Eu só queria tragá-la num infindo smoked kiss de alucinação e vertigem
calibrado com o vinho das cloacas entornado por dois pontífices
Num abraço à Terra Querida sou soterrado ao percorrer suas vidas
Dolorosas e vigilantes tábuas da lei que em mim se contorcem
numa escuridão em você despenco sendo seu filho amante no bordel da minha
[infância
.
***
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Avesso
.
No chão de névoas se quebraram
minhas retinas, após voo-rasante,
em gestos de misericórdia onde explodo
é tudo para o-dentro-e-fora de mim,
reviro-me, convulso, por-fora-dentro
da beleza narcótica de suas rijas pernas,
súbito, sou eu, trêmulo, atropelado
por cem mil líricos sem licenças poéticas.
Numa ressaca de delírios amenos, indago,
ao avesso, quem me engoliu sem mastigar?
.
***
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Melancólera
.
Venha até mim meu destino
rasgar-me com suas garras selvagens,
meu gentil assassino
que me afoga, num manso rio sem margens.
Venha até mim minha vida
com prazerosa agonia
girando, girando,
entre cem anos e o final de um só dia.
Venha até mim suicida
feliz pela infelicidade alheia
jurando a mim sua dor
faceira, faceira.
Venha então meu silêncio
que reina em trono vazio,
crivado de glória e espinho,
só, solitário e sozinho
.
Hildon Vital de Melo nasceu em Jundiaí e formou-se em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP – campus Guarulhos. Atualmente é professor de filosofia no ensino médio e desenvolve o doutorado em história social na Universidade de São Paulo – USP. E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br
***
…………………………..[Josiane Cavalcanti, sem título, 2014]
.
experiências anteriores:
pedra concha grão infinito
costumava ficar espalhada
estado selvagem antes do dilúvio
pedra pura
fogo azul
sem forma
sem temperatura
o grão de areia
um começo um fim
a qualidade de ser transparente
o pássaro preto invisível na noite
agora a vida vive nessa forma acabada em ossos perfeitos
um coração fraco
um emprego
duas centenas de e-mails não lidos
na caixa de entrada
penso naquelas estrelas binárias
uma girando em torno da outra
até se apagarem
e que deve ser assim
(alguém disse)
quando acontece
um amor feliz
ninguém se importa
acho mesmo que ninguém se importa
com o que se aprende
sendo uma concha
.
***
.
voltei ao apartamento vazio
as janelas fechadas
a única luz entrando
pelas frestas
disfarçando os cantos mofados do teto
e a marca do piano que ficou na parede da sala
era azul
como os seus olhos
.
***
.
binóculos
notícias nunca mais
O pão de açúcar
anda meio opaco esses dias
deve ser por causa dessa capa
branca
que o outono deixa nas coisas
Pra amanhecer
demora mas é de repente
a que horas amanhece
lá
no fundo do mar
na cidade submarina
Ontem à tarde encontrei essa fotografia
com esse céu
azul
turquesa
mascavo
entre as páginas do água-viva
Sempre me perguntei
o que se toma no café da manhã
nas outras cidades, que horas
se amanhece
Nunca adivinhei
Essa foto
eu só guardei porque você tirou
não era nada importante
aqueles pássaros pretos
os urubus de sempre
mas
de repente nos encontramos de novo
contemplando a paisagem
um navio passando
.
Josiane Cavalcanti é artista visual e sua pesquisa poética se articula principalmente entre o desenho e a palavra. Possui graduação em Artes Visuais (FASM, 2009) e especialização em Crítica e Curadoria (PUC-SP, 2016). Desde 2006 atua como arte educadora em instituições culturais de São Paulo. E-mail: josianescavalcanti@gmail.com
.
***
Oásis que não seca por chorar o tempo
Verdume, nascente
extensão de pernas abertas
onde
repouso o desabamento dos dias
não encolho nem estico memórias
pelo vai e vem dos ventos
resulto esculpida
nômade em estado bélico
fito as areias que passam
.
***
.
tristeza é quando me despeço
do sol, de um cacto
e dos meus cabelos
tristeza é quando
tenho vontade de sumir e durmo
de olhos abertos
no escuro de dentro
.
***
.
sai dessa rede
vem ver o mar
e os seus cardumes
vem amanhecer comigo
ideias não carcomidas
vem atirar arpão
no ordinário pensamento
vem lacear as mãos
adornar manhãs
vem propor
aos ventos
o teu cheiro humano
vem gestar a atenção
da não-palavra
que te digo
.
Marcela dos Santos é formada em História e professora. E-mail: marcelakns@gmail.com
.
***
.
.
Par (ou A teus pés)
.
entre patadas
e pisadelas
os pés
se apegam
a um passo
do cadafalso
onde dormem os dedos
os pés
se negam
coturnos
soturnos
esquivos
os pés
vagueiam
descalços
desnudos
os pés se perdem
pelo não
.
***
.
Inventário perene
.
primeiro
medir as coisas que duram
calos
nódoas
cortes
restos
traços
letras numa carta rasurada
depois
poder a dureza das coisas
cupins
angústia
morte ou desejo de
.
e finalmente
inventar no curto espaço
uma saída de reminiscências
.
****
.
garçon
chega sempre
de mãos
dadas
com o nada
banca de gentleman
com todas
e todos os andarilhos
que lhe acompanham em sua taça
de um vinho barato
de devaneio barato
aposto que veio brindar
a morte da tartaruga
ou o último desquite
se esses olhos fundos
vissem o fundo do copo
seu nome seria último
.
Fabrício Donizete da Costa. Mineiro de São Roque de Minas, da Canastra, o berço do Rio São Francisco. Atualmente é médico psiquiatra da Casa da Aids / FMUSP e psicanalista em formação. Pr(escreve) poemas desde a adolescência. Membro do CLIPE 2017 / Casa das Rosas.
.
***
.
lampejos ou kara-o quê
lábios e tédio
limpos,
os dedos no túnel dos tímpanos
passagem de som:
caracol
.
(
…oco
……………….)
.
***
Rota das línguas
.
Condiment
(Noz-moscada
sobre a língua)
Poetry
Code name
(Emboscada
virando à esquina)
Poem
Morse code
(Intérprete
bilíngue)
Poet
.
***
Corte entre hemisférios
.
Pulsante tal qual sangue introjetando-se na seringa
a calibrosa veia
da lúcida razão,
Por entre sinapses e sinais
elétricos,
Os olhos vedam-me os
)estímulos externos
e os ouvidos amplificam
os ruídos interinos.
A tez e a visão se confundindo diante da tela de led
em máxima resolução
do franzir do cenho,
Por entre pixels e bytes
periféricos
Os dedos teclam-me os
(ruídos internos
e os lábios encerram
<uma criptográfica
Mensagem
desco-nexa.
.
Daiane Lima é paulistana, vinte & três anos, graduanda em Letras pela FFLCH-USP, se dedica desde os 16 a escrever o que quer, na hora que a ideia vem, enquanto percorre a cidade; sempre sem relógio ou celular, apenas com algumas folhas em branco. E-mail: daiane.lima.s.2010@gmail.com
.
***
.
a primeira coisa que fiz
quando você saiu pela porta
foi colocar uma pequena toalha
com flores bordadas
– aquela que você não gosta –
na mesinha de cabeceira.
troquei os lençóis
para tirar o seu cheiro
varri o chão
para que não sobrasse
nem um fio
de cabelo seu.
limpei as portas
as janelas
os azulejos
podei as plantas
tudo
para não sobrar nenhum rastro
nenhuma partícula
que tenha tocado o seu corpo.
.
***
quando deito
assim de lado
sobre meu ombro direito
pernas encostadas paralelas
mexo o dedão do pé
e ao mesmo tempo
esfrego o indicador da mão
lembro de você.
***
.
alguma coisa nesse caminho
me fez pensar em você
algo como
e se tudo terminasse nessa avenida
quem varreria as flores secas que não limpei na entrada da casa
quem é que acharia meus pares de sapato deixados no último degrau da escada
e quem encontraria a louça racionalmente posicionada no escorredor da pia:
pratos fundos de um lado
rasos do outro
copos no centro
talheres na lateral
quem saberia que aqueles vasos estão temporariamente na varanda porque precisam [de sol
quem saberia que a roupa largada no chão é para ser lavada quando voltar
o batom vermelho – que uso às vezes – ficou sobre a mesa porque sei que você não gosta
o livro sobrou no sofá por preguiça
quem.
Julia Bac é aluna do CLIPE – Poesia da Casa das Rosas. Recentemente, criou o blog papelpele onde coloca seus textos experimentando de forma lírica e livre a poesia. Publicou, em 2013, o livro “os dias” pela editora Giostri.
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***
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Agenda cheia
Via Facebook, não me dê “Feliz Aniversário!”.
Não ser querido só por logaritmos automáticos
é o filtro do carinho, quando a memória em lapso.
No caso, o Facebook que lhe fez o trabalho pesado.
Sem clichês na minha timeline:
“Parabéns! Muitas felicidades”.
No autômato virtual não há carne
que vibre no tempo-espaço que a lace.
Não espere ciclos de velhice dar a volta
a brindar a carne e mente de quem te importa.
Velhice é de toda hora; uma cúmplice do agora.
Puxe, da tessitura da memória, vivas histórias
ceda melhor o presente pra viver histórias novas.
.
***
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Cúmplice do agora
Livre
com ou sem maquilagem
ou qualquer grade na face.
Firme
na extensão horizontal da base
não no crescimento vertical da trave.
Um brinde
em todos corpúsculos da eternidade
não só nos crepúsculos da carne.
.
***
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Desafeição, a erupção da fissura
.
Fissura afiada na fina tortura;
tortura abusada na burla sem bula;
bula calada diante da falsa conduta;
conduta em uma falta funda e crua.
Crua na feitura dum estranho cozimento;
cozimento na emanação de relapso tempero;
tempero estragado se excede por dentro;
por dentro, gosto amargo com face de azedo.
Azedo, mas com um tempo açucarado no coração;
coração bomboniere agora em cheiro de limão;
limão espirra suco acre e cheio no corpo grão;
grão na cura insossa desta paliativa desafeição.
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John Monteiro nasceu em abril de 1988, na cidade de São Paulo. Cresceu na periferia da Zona Leste paulistana. Formado em jornalismo, trabalha com redação web e revisão de textos acadêmicos. E-mail: jc.nsm88@gmail.com
***
.
SP
nasci aos 13 anos de meus próprios sonhos
em uma cidade repleta de chicletes
pizza. rota na rua. gravata. notícias. mega-shows. bicicleta.
cidade-documentário
de secos vômitos
dos barracos aos pallets, as madeiras percorrem,
formigas white collar pelas oportunidades são atraídas
e as filhas fugidas vivem no quarto quarenta e três
start-ups. grafite. shopping. crack. trem. cultos.
na cidade herodes
esperanças
atraídas pela
ascensão econômica
são devoradas
(sem ketchup)
ambulantes correm do rapa, prefeitos se fantasiam,
bolivianos costuram, blocos chegam a roosevelt,
moleques apanham no restaurante,
as favelas ardem
.
e os cobertores somem, na cidade de ar opaco e céu-chumbo sem estrelas
.
***
.
Sem Título
depois que cortou o cabelo,
perdeu o ar pesado que tinha,
devia ser promessa
sonhadores são cativantes,
mas não compensa a longo prazo
é monótona,
panfletária, confusa,
adora divagar,
se eu fosse você, pegava o
outro
gosto de tipos assim,
ar desolado e acabado,
inseguros tem seu charme,
sabendo manejar, dá certo
logo se percebe,
que é fracassado
mesmo com diploma,
não casou
era mais saudável,
já gabi,
ao se despedir,
disse que nunca soube quem era
tampouco eu
.
***
.
Infância
olhos grandes e frescos engolem
titubeantes
signos gastos que rondam
prédios
sem história
O sentido, bruto,
sem caminho,
imediato,
tece sulcos
nos miolos molhados
erva-doce se mistura à louça marrom,
onde os abraços dos velhos cheiram ocre
sem calor
e
dentro dos ombros miúdos,
encolhidos
.infiltram
o tempo espesso
e as utopias
. solitárias
.
Carlos Seizem Iramina é natural de Santo André, São Paulo. Cientista social, mestrando em Desenvolvimento Econômico. Atualmente realiza pesquisa na área de História do Pensamento Econômico, além de escrever alguns poemas. E-mail: carlosiramina@gmail.com
.
***
.
Dizferente
.
Caiu um olho no cisco do dia
Abriu um buraco no espaço vazio
Adiou o passo do réptil sem patas
Engasgou a palavra na barragem estourada
Silenciou o cansaço com três analgésicos
Remou ao contrário ao encontro do abismo
Implodiu a vontade no escudo da inércia
E sentou cinza na tarde laranja de um fim de primavera.
.
***
.
Buscador de nada
.
procuro construir um poema
que me desmonte
no instante antes da batida
esparramado como carne de segunda no fim do congelador
cabendo em toda gente que é pouca
para pouca gente que é muita
tomar de empréstimo a ferida alheia
salivar pela boca estreita do tímido
devassar um copo inteiro de algo etílico
procuro um poema que desista de me procurar
que não saiba nada de mim
que não consiga mais do que o tempo
que limpe a sujeira deixando mais sujeira ainda
procuro
e lá no alto-escuro
a impossível lua branca
desconcentra o meu buscar.
.
***
.
In(color)
Há duas metades
Metidas num inteiro
Uma estepe metida no lobo
O espasmo rouco metido na ânsia
Há uma distância metida no tempo
Um cavalo raio metido no espaço
E há essa coisa interina, melada e necessária
Que é ser feito de água
Para que você me tome!
.
Antonio Hélio publica diariamente na página Amuleto Poético do facebook; tem poemas em coletâneas dos Poetas do Tietê e no projeto Veia e Ventania. Escreve porque não sabe voar. E-mail: antoniohelio77@gmail.com
.
***
..
sem título
ele é bonito?
.
(noite passada descobri sua dádiva eu tripulante subsolo imerso num emaranhado de pêlos pacíficos oceânicos violentamente sinceros
.
perdi o fôlego.
rarefeita,
peso.)
ele é bonito?
(camisa
calça
botina
cinto
zíper
calcin)cueca
.
ele é bonito?
(disco
riscado
troca
toca
cássia
ele r)
ele é bonito?
(bonit
@
poesia
despenca
…dispara
tiro
arma rio
afogo
afeto)
ele é bonito?
.
(odeio natal sempre aquela mescla de tender e desacerto tias inconvenientes com fome de saber namoradinhos alheios)
.
ele é bonito?
.
(solta
s olta
s o lta
s o l ta
s o l t a)
ele é bonito?
(muda o pronome
rota de fuga
foda-se
entre o muito
e o quase
kamikaze:
.
ele é bonito?
el(a)
el(a
ela.
.
***
.
Tudo é trêmulo e avassalador
Tudo lá fora supõe uma queda
E por isso eu fico do lado de dentro da casa
Com o vento trêmulo na janela
E a vida acontece
E eu me encerro
Com os pés gélidos na parede
Tudo é trêmulo e feito de um deslumbre irregular
Cada perímetro machuca
Cada saída é uma terra de ninguém
Tenho vontade de explodir essa merda toda
Mas tudo me atinge na velocidade de um dia ruim
Como injeção de urgência no sanatório
Urgência é uma placa toda fodida na rua depois de um vendaval
.
odeio ser minúscula.
.
***
.
definições práticas
.
velhice:
a água respingada na minha pele
quando as crianças lá de casa
pulam na piscina,
as travessias itinerantes
pulsando nos corpos
na mesma intensidade
que minha flacidez
epidérmica
endêmica
afunda no banco rijo do quintal.
afogo-me.
–
tristeza:
a passagem de metrô
esquecida no bolso.
a máquina de lavar se alimenta
das migalhas
do que não fomos
no fim do carnaval.
.
.
Julia Leite é fotógrafa, tem 23 anos e se formou em Cinema. Reescrever a bíblia em versos alexandrinos lhe parece mais fácil que escrever sua biografia em 3 linhas. E-mail: jupcl@hotmail.com
.
***
.
Eu
faço tudo com o coração
cuido dos filhos
com um laço de fita
cor de rosa na cabeça
varro a sala com os ovários
lavo a louça com a buceta
e a privada com as minhas
as suas e as nossas
tetas
invado os quartos
onde trepam as pessoas livres
com as veias que correm
no sentido contrário
cheias de ciúme
lilás
espumando pela boca
sustento o mundo com o útero
que é do tamanho de um punho fechado
o mesmo que me corta um cruzado
nas ventas
cada vez que faço tudo errado
decoro bolos com menstruação
e alimento a todos
nas festas infantis
com minhas longas e grandes unhas
igualmente decoradas
em movimentos pueris
faço pensamento com sutiãs
e traves de impedimento com
vidros de esmalte
a vida se passa entre a cozinha
a feira e o supermercado
escrevo no livro de receitas com batom
e corro em muito altos saltos
por cima dos obstáculos
em direção ao final feliz
dentro de uma abóbora
conduzida por ratos
.
***
.
Fome
para alasdair gray
a fome
o vazio
da barriga
(de) um homem
é o próprio
movimento
aceleracionista
dos intestinos
como uma torta
ou pastelão
que a si mesmo assa
que a si mesmo come
é o nome
a fome
o vazio
da barriga
e do homem
.
***
.
Peixe
um peixe gordo e grosso
com os olhos puxados lá atrás da cabeça
do tamanho de uma carcaça de fusca
coberto de penas brancas
e a pele prateada cinza por baixo
deixava entrever a estranheza
em pequenas escamas
por debaixo ainda das penas enormes
como arte plumária por cima de si
não sabia ir
nem se nadava
ou estava no ar
.
Milena Durante é bacharel em artes plásticas, mestre em urbanismo e pesquisadora das áreas de arquitetura, arte e cultura. Atualmente trabalha como tradutora, intérprete e redatora. E-mail: milenabatistadurante@gmail.com
.
***
.
Amanhecer
.
o horizonte vaza os olhos da noite
e desvertebra a lua
feito pássaros acontecidos
de suas larguras
cores e íris se rascunham
na ossatura das horas
o céu em carne viva
se derrama na confluência
da manhã
mas se alcova dia adentro
na vertigem dos homens.
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Cais sem data
toda saudade é cais sem data
rio peregrino serpenteando
vestígios
lua fraturada
sob unhas sujas de cólera
onde era contentamento
talvez amanhã
brote de minha janela
um sol sem permuta
então inventarei tua presença
cobrirei de hinos teu nome
e direi alhures os sabores adiados.
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Estranheza
carne póstuma
colhida na possessão das horas
eis a poesia
insuspeitável e túmida
como quem presume distância
num apetecer de véspera
quando se conjuga a deserção dos mares
e a exatidão do mundo
exaspera os olhos mornos dos mortos
então adivinho teu esquecimento
e dou-me conta de que todo poema
são palavras grávidas de outros sentidos.
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João Nery, maranhense radicado em São Paulo, transita pela prosa e pela poesia sempre à busca de novidades estéticas. Tem quatro livros publicados e participação em dezenas de antologias, nacionais e internacionais. E-mail: jotanery7@hotmail.com
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iluminuras
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naquele veraneio algoz, pulsamos em atmosfera suculenta e sentimos, extáticos, o selo espumante da paixão nos lábios.
naqueles dias febris, queimamos em dança superior nossas peles cansadas, e com elas fizemos incenso de céu, escarlate e pêssego.
naquelas noites sem zodíaco, fomos águaviva entrelaçada, tapeçaria frenética de dedos e cabelos em ciranda pagã.
tremíamos, diante de enorme deus-sem-nome – nem só de luz se faz a vida. mas molecávamos, doidos por beijo, e da teologia se fez divina companhia.
já nessas calmas primaveras, desdobramos o peito amado com cuidado botânico, e regamos a rama que nos envolve com carinho imenso de pais.
já nesses dias pacatos, um toque evapora todas as leis externas do homem e nos lança aos ecossistemas maternos – nadar e respirar um no outro, sem mais.
já nessas noites suaves, a janela faz estrela vulgar da nossa tecnoginga e ofusca a rua dominical como viva em nós. já vivemos por nós.
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metaikai
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a fôrma e a forma
pro vulcão de jade e soma
só goma só gosma
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anhangabaú
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Vejo macunaímas de Nike domando Camaros
e suas filhas dedilhando feminismos sanguíneos
vejo executivos sorrateiramente lendo budismo
buscando deuses no horário de almoço
vejo cachorros vadios de olhar decidido
que arrepiam minha humanidade
Enquanto a Nuvem, de maconha e ginga
persegue os relógios com desforro indígena
Há mendigos arregalados com a vida
com a promenade matinal dos Cavaleiros do Apocalipse
engravatados ferozes sapateando capitalismos-em-fuga
e capitães-do-aço com verminoses gringas
vertigem existencial em fortalezas de papelão
Tudo que poderia ter sido e que não foi!
Eu percorro os teleféricos das rotinas
em busca da Estação Central da marcha histórica
eu visito porões alcoólicos de terra batida
à procura de zabumbas sinceras
eu me apoio em mitos de pau-a-pique
eu não quero mais me apoiar
Ah Anhangabaú dos umbrais indígenas
onde árvores adestradas morrem de desgosto
onde estátuas evaporam ferrugens morais
onde os monstros mansos de Tarsila foram devorados
por pombas mais realistas
onde o progresso fez cateter de rio
onde democracia cobra fome com juros
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Felipe Mamone, interiorano radicado na janela, vintedois. Graduando em história com manias cyberpunk. Experiência em arte-educação e oficinaria. Email.: femamone@gmail.com

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