O dorso arrebentado de sol
PRIMEIRO
O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.
A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes
sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria
e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.
*
MANHÃ
a –
Notícias da manhã
informam que o tempo, de
……………………………fato, passou,
e que a noite foi só uma
de fato.
b –
O dorso arrebentado do sol,
surge o dia.
c –
A manhã ruge
nos dentes das árvores.
*
CANTO DE DISSOLUÇÃO
Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.
Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.
Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.
Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.
Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.
*
CANTO APAZIGUADO
O que sobra das mãos são as sombras de gestos
que, já feitos, nos jazem nas mãos sepultados.
O que sobra de olhares: o breve relance
que, de breve, se perde entre o feito e o lembrado.
O que resta de risos são luzes de dentes
entrevistos por entre a cortina do lábio.
O que resta da vida é a vida que fica
e ficando é que parte ao eterno adiado.
*
说
“Dedicado a Wlademir Dias-Pino”
e surpreender-se
de
falar
se a gar-
ganta
já se
intui
inútil
quem quem quem
Deus
quem tem coragem de
de abrir
a boca
para ouvir outra coisa que o silêncio
para ouvir coisa que
o silêncio diz
……………………………………….[melhor
quem tem coragem
de
falar
sabendo sabendo
que a fala morre
antes de
passar
do porto
da língua
quem pode quem se lança a
quem tem coragem
de
falar
sabendo que a fala
resvala
e cai na quina do quarto
sem som
quem quem quem
quem
tem coragem de falar
e de ouvir o que
diz
quem então tem coragem
de
falar
quando vê, sabe, escuta
pressente
que o que se sente
não há onde se assente
no ouvido do outro
quem tem
coragem
de
falar
quando a fala
sabe
que sua única voz
verdadeira
é quando cala
*
POEMA AMARELO
a faca tem de ser eloquente
e falar sabendo o porquê
e falar o discurso de chaga
ferida
na carne que a faca lê
*
POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO
“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo”
– Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.
a)
os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.
b)
a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer
pois
a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras
fechadas de pôr do sol
c)
e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios
até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr
flor
que anoitece
– e o eclipse do corpo meu
é violento
*
POEMA EXTREMO
Pega na mão a pedra
pega na mão a cadeira
pega na mão o pão
mesa escada copo d’água
pega
puxa pro lado
…………………..e descobre ali
a poesia.
*
INÚTIL
Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
………………..[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
………………………[e próprio
Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente
e essa vontade de amar.
.
[Todos os poemas acima são do livro A máquina de carregar nadas.]
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Matheus Guménin Barreto (1992) é poeta e tradutor. Nascido em Cuiabá – Mato Grosso, é pós-graduando da Universidade de São Paulo (USP), onde traduz a poesia de Ingeborg Bachmann. Barreto estudou também na Universidade de Heidelberg (Alemanha). Publicou traduções de Ingeborg Bachmann em Dito ao anoitecer (2017) e Lira argenta (2017), de Bertolt Brecht em Cântico de Orge (2017) – parcerias entre Selo Demônio Negro, Editora Hedra e a editora portuguesa Douda Correria. Também disponíveis no Brasil e em Portugal estão alguns de seus poemas, publicados (ou com publicação confirmada) em: Enfermaria 6, Revista Lavoura, Escamandro, Revista Escriva – PUC-RS, Diário de Cuiabá e Ruído Manifesto; entre outras. É editor do site cultural mato-grossense Ruído Manifesto e participa do Printemps Littéraire Brésilien 2018 a convite da Universidade Paris-Sorbonne. Matheus Guménin Barreto lançou em 2017 o livro de poemas A máquina de carregar nadas (Editora 7Letras). E-mail: matheusgumenin@hotmail.com

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