Esqueletos do Nunca
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À memória de Wilson Bueno
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CONFISSÃO
No apodrecer de mim, caranguejos copulam em minhas órbitas.
(Mademoiselle Mélancolie)
INFÂNCIA
Caveira de macaco com rubis nas órbitas. Reprodução de mapa do século XVI. Estátuas dos sete sábios da China. Espátula de bronze na forma de demônio. Brinquedos de infância.
(Moema, s/d)
JEUNESSE
Renée gostava de revólveres, conhaque, música de Bach, jogos de memória, lenços de seda indiana, livros de Jung.
(Sabiá, 1985)
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AEROPORTO
Roubava revistas de jardinagem e culinária japonesa com a tranquilidade de um colecionador de térmitas.
(Congonhas, s/d)
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ENIGMA
“É preciso me amar até os ossos.” Com a intensidade da cremalheira, com o silêncio de um enigma que nunca se completa.
(Delfos, era mítica)
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LAFORGUE
“Praia de ossos”, mamilo que traduz a lua; minúsculo esqueleto branco, Schopenhauer, música essa flor que saboreia minha língua.
(Quando?)
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OBSCURO
O sempre fascínio por essa gargalhada, essa fome, essa lâmina, música que destroi a floresta dos peixes.
(Universidade, 2011)
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ÓBVIO
O desprezo ao óbvio de anúncios, epitáfios, crônicas, bilhetes, memorandos, maus poemas, sociologias, cartões-postais.
(Universidade, 2011)
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MÃE
Concerto para cordas, flores sintéticas, rosário nas mãos magras, caixão desce pelo fosso, no centro da plateia mal iluminada, até virar cinzas.
(Vila Alpina, 2005)
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PAI
Pele fina como folha de papel. Grossas veias. Dedos amputados, barba por fazer. Um sorriso implorando pela desmemoria.
(Hospital, 2005)
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BILHETE
Madame La Mort passou por aqui.
(Allemonde, s/d.)
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FIBRA
Drenavam seus fluidos, não sua fúria.
(Terra do Não, s/d)
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PESSANHA
Releio Clepsidra. “Oh cores virtuais que jazeis subterrâneas”. Sem ópio ou cápsula para abolir a percepção do tempo. “Fulgurações azuis, vermelhas, de hemoptise”. Numa autópsia de mim, mapas aloprados que não conduzem a parte alguma.
(Aqui, 2011)
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PESSANHA (II)
“Abortos que pendeis as frontes de cidra”. Formigas saem de meu olho esquerdo. Penso num verso com esquifes e sequóias. A página em branco rasura minha completa falta de imaginação.
(Aqui, 2011)
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VISION OF PARADISE
Botas de cano longo. Meias de seda preta. Saia curta xadrez. Trança marrom jogada para um lado. A passante de Baudelaire, que nem olha para mim.
(MASP, s/d.)
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VISION OF HELL
Botas de cano longo. Suspensórios. Cabeça raspada. Cruz de ferro tatuada no braço. Longo mergulho até espaço prisional.
(MASP, s/d.)
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ARIADNE (I)
Papila, vermelhidão, nunca de corvos, qual é a palavra? (lontra ou testículos), vontade cíclica de beber um chá com a Morte.
(Início da página, 1994)
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ARIADNE (II)
Desfolhá-la até os maxilares, ao me transformar em Labirinto.
(Fim da página, 1984)
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ARIADNE (III)
Quem é a Fera?
(Fora da página, 1987)
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DIFAMAÇÃO
Bombas de fósforo branco sobre Gaza – e a difamação dos mortos.
(Palestina, até agora)
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JERUSALÉM
Al-Quds. Pequenos restaurantes, lojas de roupas, chá, tabaco. Não é permitido fotografar o espancamento.
(Ethos, 2007)
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AL-NAKBA
Feras aladas relincham, relincham (oh filhas de Jerusalém!), enquanto se espalham cabeças.
(Ethos, 2007)
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PAISAGEM
Flores amarelas. Sentado no banco do jardim, vejo a dança das três meninas e não escrevo nenhum poema.
(Num setembro qualquer)
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METAFÍSICA
Ombro tatuado. Sapatos baixos, escuros. Pele muito clara. Leque madrilenho. Dança de passos breves, curtos, infinitos.
(Idem)
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RUÍDOS
Flores primitivas, tetas são ruídos na brancura.
(Buenos Aires, s/d. )
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LIRISMO (I)
Noite reinventa estrela, estuque, escaravelho: permaneço vivo por uma questão de etiqueta.
(São Paulo, a Horrível)
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LIRISMO (II)
Só acredito na ferocidade do corpo, na música epidérmica, quando você me desnasce.
(Apócrifo de Restiff de la Bretonne)
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REPLICANTE
Anfibiamente — ou talvez lupino, retrátil, sombra, lacraia (…). Monstro que devora seus pedaços, como um espelho que comesse o próprio vidro.
(Refabulando Ridley Scott)
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CRASH
Pernas mecânicas. Saia de couro preta. Um mapa da Lua desenhado nas costas, à maneira de cicatriz.
(Refabulando Cronenberg)
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GOTHIC
Dama inglesa desoculta olhos nos mamilos. Toda paisagem é uma ficção?
(Refabulando Ken Russell)
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DOGVILLE
A compaixão dispara balas calibre .45
(Refabulando Lars von Trier)
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NO RESTAURANTE AZUL
Autópsia de uma saudade: máscaras japonesas, delicadas taças de laca, olhos que se afastam, aéreos, até se tornarem palavras.
(03/12/2011)
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PALAVRA INCÓGNITA
I
Replicando cacos, desentranhado, com fome de lobo: indecifra-me, desatina-me, desvirtua-me, desacerta-me, escurece-me, ilumina-me.
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II
Aracnídea, tantaliza-me.
(Do Pequeno Tratado de Intertextualidade)
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RIMBAUD, MON FRÈRE
“Oisive jeunesse / A tout asservie / Par délicatesse / J’ai perdu ma vie”. O comércio na Abissínia foi um esplendido disfarce para o retorno ao anonimato.
(Madame Désolation)
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SOMBRA (I)
Mortos habitam meu poema. Defraudam a sombra. Esqueletos do nunca, mastigam cada palavra, depois lambem os ossos.
(Entre as pálpebras, cuándo, mi señora?)
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SOMBRA (II)
Paul Celan veio aqui, fumou um cigarro, depois jogou-se no rio Sena.
(Paris, a cidade das luzes)
2010
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Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos, os livros de poesia A Sombra do Leopardo (2011), Figuras Metálicas (2004), Fera Bifronte (2010) e Letra Negra (2010). É curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo e editor da revista Zunái. Mantém o blog Cantar a Pele de Lontra, http://cantarapeledelontra.blogspot.com E-mail: claudio.dan@gmail.com
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18 janeiro, 2012 as 14:01
18 janeiro, 2012 as 14:14
16 abril, 2012 as 17:36