Debaixo do vazio


 

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Debaixo do vazio

 

sem a merreca para um carlton,

de quente só um pingado na portaria

da repartição. sem mesmo nada,

nem para dizer que tá difícil.

o ketchup do hot-dog na camisa branca

tô de sangue por aí, procurando trampo.

é tudo muito certo, ninguém duvida,

o vermelho, manchando

o fundo dos olhos das pessoas, não erra,

agarra em meu peito sem direito,

até porque foi de uma dona que se esbarrou em mim.

sem a besteirinha do buzão,

paletando por entre caras desformes

em série, como a nota de dez no chão,

rasgada, valor sem valor em minhas mãos.

mas há um vento que vem vindo,

agora esqueço para ir que nem fumaça de cigarro.

 

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Temporã

 

a cara da recepcionista

tem um desejo de morte.

em cada segundo de sua fala

a repulsa me sobe à garganta.

cada sonho negado, como quem goza,

peida. suas mãos carregam a lembrança

da última encosta que cedeu na chuva,

de vez em vez até respondem

aos espasmos musculares que emanam taciturnos

bom dia! em que posso ajudar?

em seu nariz os corpos putrefatos,

a língua queimando na acidez

que deve ao alimento a digestão,

os bicos dos seios em paz

com o clitóris, vencidos pelos dias

bom dia! em que posso ser útil?

(queria socar a sua cara)

mas tive pena,

não dela – de mim

por ter cá esta inveja

vestida de saudade

 

 

 

O peso de sentir! O peso de ter que sentir

Livro do Desassossego – F.P.

 

 

olhávamos para as músicas

as palavras do jornal olhávamos

para o vento assobiando na greta

as valas abertas sob o sol olhávamos

para o voo do beija-flor

as marcas no tempo

para o dia que chegava olhávamos

para as pessoas apenas

não sentíamos mais nada

a não ser a sensação de termos

já sentido isso também

 

 

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O novo

 

vira e mexe me vem à cabeça o J. Pinto Fernandes,

como uma boleia para desgarrar do sal da praia,

do cansaço que aborrece depois do gozo.

sigo com ele no bolso da bermuda,

como um canivete suíço ou um isqueiro,

pronto para sacar – defender atacar –

um poema guardado para entender.

 

 

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Compreender o mundo ou estudar os gritos

 

deixemos que o sebastião salve a nossa fé,

com a sua morada no tempo,

na devida hora, será imbatível, deixemos

que o seu corpo perdido

seja encontrado aqui,

em alguma razão de mudança.

toda a espera seja finita, deixemos.

logo na primeira urina do dia

 

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Capítulo um

 

quando as tristezas unem os homens

tornando-se o fio no diálogo do dia

a conduzir a um mínimo de vida

(a respiração ante se conforta)

rompe-se a membrana que antecede

a casca parte-se a casca

mais um nascimento

na conversa do vento com o sopro

nosso de cada dia de cada dente

perdido de cada drenagem linfática

dar-te-ão muitos likes

a tarde e o movimento dos olhos / na tela

nada mais é preciso: há uma janela

lentamente

um rio

o movimento é o destino da dor – como

uma mensagem de amor

não há salvação

 

é preciso deixar-se ir

 

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Reflexões sobre o pé da bailarina

 

como pensar no peso

se o movimento encanta

espalha qualquer névoa

nódoa bolha de sangue?

perto do chão

conseguir-se altivo idílico

como

questionar a dor interpelar o segredo

a alimentar a beleza de carregar o peso

enquanto agrada a multidão

muito mais por aquilo que dela

passa contorcendo-se?

como

entender o limite equilíbrio

o entre: carregar o peso é dança

uma velhinha de xale

põe a boca no pescoço de outra

a saliva misturando-se com o perfume

a língua e os dentes como crucifixo

enquanto reificadas eram postas

em lugares comuns nos dias

que seus olhos fechados não viam

mergulhados no gozo calmo

das coisas que ficam

 

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imigração – novamente a Europa no centro do mundo: primeiro foram os pés aos milhares as mãos de todos os tamanhos suspensas na tentativa de agarrar uma garrafa de água um pedaço de pão nem o chão que pisavam nem o ar nenhum direito de existir os rostos amassados como um lenço usado guardado no bolso da calça e quando o dia nasceu a dor se transformou em notícia em seguida em dó em notícia em dó em notícia até migrar naturalmente perdendo o frescor para o pão quente sobre a mesa depois para as mensagens no celular em seguida para o cigarro e para a marginal e o acidente e a fumaça e para o carro da campanha e para os movimentos bruscos do motociclista ao lado e para as conversas de ontem – assim

 

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Primeiro passeio de bicicleta

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O homem que pedala que ped’alma

com o passado a tiracolo,

ao ar vivaz abre as narinas:

tem o por vir na pedaleira.

 

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Alexandre O’neill

 

nos pedais o corpo

alto e baixo nos pedais

os dias sob a nudez

do metal lírico cortando

a potência que passou

a velocidade que atrai também

passou o cheiro do mato verde

sobre o guidão e o refluxo

pedalo perto do chão

flutuo com as marcas

do veludo ao Veloso ao veludo

a pele são os dias

tudo cabe tudo pode

nos pedais o corpo

alto e baixo nos pedais

 

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Sina de bom moço é colocar bem-me-quer na correnteza


ela estava entre

o entrudo e o carnaval

vendendo seus poemas

pintados no corpo nu

aqueles leitores jamais esqueceriam

do movimento de suas rimas

do verso quebrado em praça pública

da palavra rebolando

para caber na métrica perfeita

e de repente a poesia ganhava

finalmente um sentido social

 

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Ponto 1

 

amarrava uma corda no lastro do telhado,

incluía o pescoço nela (como se um

fizesse parte do outro) de pé

masturbava-se e a esticava

até sufocar: a vida,

a arma mais perigosa

 

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Segundo passeio de bicicleta

 

pedalo sem as mãos na direção

com o corpo em formato de cruz

tendo o caminho para as ondulações do movimento

as respostas se organizam

tudo está nos pedais

 

 

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Daqui para frente

 

não é para lembrar do moleque

chapado, roubando o outro,

é para mexer com a náusea

e o vômito, e o frio que treme

as pernas e atrás do olho.

a bala de menta batendo

nos dentes, tic-tac,

como os ponteiros,

marca tudo

o que vamos

lembrar

daqui

para

fren

te

 

 

 

 

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Tiago D. Oliveira, de Salvador-BA, professor e pesquisador, estudou letras na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade Nova de Lisboa (UNL). Tem poemas publicados em portais, revistas e jornais especializados como Cultverso, Cronópios, Hyperion (UFBA), Escamandro, Enfermaria 6 (Portugal), Subversa, Revista Saúva e Jornal Livre Opinião. Em 2014 teve seu primeiro livro editado de poesia, “Distraído”. Atualmente desenvolve pesquisas sobre a ética dos afetos em formas breves na literatura portuguesa. E-mail: tolidiasum@gmail.com

 




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